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Os novos desafios da luta política

Crescimento econômico, distribuição de renda, aumento do salário mínimo, expansão dos programas sociais, aumento dos investimentos em saúde e educação, universalização da banda larga. Estas são algumas respostas satisfatórias que a presidente poderá dar ao discurso raivoso lacerdista que volta a emergir com força no país.

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Dilma e crianças do MST. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.

Vivesse em nosso tempo,  Carlos Lacerda teria hoje muito melhores condições de ser candidato à presidência da república do que em sua época, pois hoje os meios de comunicação chegam em todos os brasileiros, não apenas em setores elitizados da classe média urbana, como nos anos 50 ou 60. Entretanto, mesmo chegando  a todos, a classe média urbana continua sendo a infantaria mais agressiva de seu exército. E quando falo exército, não uso metáforas. As ameaças do neolacerdismo a seus adversários são físicas, quase militares, como estas de Noblat em sua coluna de hoje, na qual dá “conselhos” ao novo presidente do Congresso Nacional:

Nada de voar em avião de carreira — a não ser para o exterior. E sob a condição de ser o último passageiro a embarcar na primeira classe, discretamente. Assim evitará o risco de ser ofendido pelos demais passageiros da econômica. Pelo mesmo motivo, nada de frequentar shoppings. Em Maceió, talvez seja possível. CUIDADO REDOBRADO quando estiver em Brasília. Aqui todo mundo conhece todo mundo. Nem mesmo disfarçado dá para bater perna à beira do Lago Paranoá. Matricular-se em academias? Nem pensar.

Ao escrever isso, Noblat não apenas ameaça Renan, ele também incita seus leitores a agredirem o senador.

Mencionei Lacerda porque a volta triunfal de Renan Calheiros ao centro do palco, como presidente do Congresso Nacional, num gesto de inesperado desafio do PMDB à mídia, meio que forçará a oposição, ou as oposições, a adotarem o discurso moral como bandeira número um.

O “corvo” seguramente saberia usar Renan Calheiros para fazer um excelente estrago na base eleitoral governista. De qualquer forma, mesmo sem Lacerda, haverá danos. O discurso da oposição em 2014 já está escrito. Mensalão, José Dirceu, Maluf, Sarney e Renan Calheiros. Eis a cara do governo Dilma. Vote diferente. Vote Marina, Aécio, Campos.

Os votos cativos da Dilma, ainda herdados de Lula, porém, estão mais ou menos garantidos. O que estará em jogo, mais uma vez, é tentativa de jogar a eleição para o segundo turno através da divisão do eleitorado. Marina Silva pode conseguir uma boa perfomance em 2014. Eduardo Campos, que eu antes achava não fosse candidato, por causa de suas reiteradas afirmações de apoio à reeleição de Dilma, hoje é uma incógnita. E uma incógnita em vários sentidos. Para ele, talvez seja útil ser candidato, por dar oportunidade a si mesmo de alcançar projeção nacional, e melhorar o desempenho de seus candidatos proporcionais. Para Dilma, o governador de Pernambuco poderá ser um interessante interlocutor na campanha, alguém com quem fazer dobradinha nos debates para bater no PSDB, além de possivelmente roubar votos mais da oposição (Aécio e Marina) do que do PT.

O maior desafio do petismo, nesse momento, é desenvolver um discurso coerente para justificar as alianças que tem feito, ao longo dos últimos anos. A foto com Maluf lhe valeu, por exemplo, um acordo político com o PP, cujo tempo de TV com certeza ajudou na vitória de Haddad em São Paulo. Mas trouxe um prejuízo de longo prazo à imagem do PT junto à setores mais sensíveis da classe média.

Repito o gráfico que publiquei há algumas semanas, extraído do Estadão, trazendo os  números mais recentes do Ibope :

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Esta semana, os brasileiros começam a receber o novo salário mínimo: R$ 678,00. O valor corresponde, no câmbio de hoje, a 340,46 dólares. Vale lembrar que, durante décadas, uma das principais bandeiras da esquerda brasileira era fazer o salário mínimo chegar a 100 dólares. Entretanto, ainda estamos longe da Argentina, onde o salário mínimo é de US$ 574/mês.

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Por outro lado, Dilma iniciou movimentos bem interessantes nos últimos dias, que indicam uma virada significativa na estratégia política do governo. Encontrou-se com Franklin Martins, ex-ministro de Lula, autor de uma proposta para regulamentar a comunicação de massa no país; deve ser reunir nesta terça com Wagner Freitas, presidente da CUT; e iniciou a semana num acampamento do MST, no Paraná, onde se encontrou com José Pedro Stédile e anunciou um programa de R$ 600 milhões apenas para assentamentos rurais de projetos de reforma agrária.

Esta virada consiste no esforço para reatar laços com setores estratégicos dos movimentos sociais, o que seria o único antídoto eficiente para rebater os ataques à política de alianças, que virão com muita força das legendas de oposição, incluindo aí uma ultra-esquerda vitaminada pela mídia.

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A presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (STE), Carmen Lucia, deu uma entrevista à Conjur na qual se enrolou um bocado ao defender a lógica constitucional do Ficha Limpa. Ela acabou por se sair com uma explicação bem clichê, mas esperta:

O que se percebe é que povo brasileiro não suporta mais corrupção, esse é o fato. Em qualquer lugar é possível ver a reação contra a corrupção.

A parte mais instrutiva, em vários sentidos, da entrevista é quando ela responde à primeira pergunta sobre a Ficha Limpa:

ConJur — A senhora citou a Lei da Ficha Limpa. Ao mesmo tempo em que o sistema democrático impõe que a vontade do eleitor prevaleça, cria-se a Lei da Ficha Limpa, que, de certa forma, substitui a vontade do eleitor. Não é contraditório?
Cármen Lúcia — Não. A Constituição estabelece que as condições de elegibilidade sejam definidas por lei. Restrições à candidatura existem desde sempre. Em Roma, na Antiguidade, quem quisesse representar o povo tinha que se apresentar em praça pública trajando apenas uma veste, espécie de tanga, deixando à mostra a maior parte do corpo. E essa veste era branca, cândida. Ele tinha que deixar à mostra o máximo do corpo para demonstrar que ele tinha condições físicas de exercer a representação, e a veste era branca com um símbolo de que ele tinha condições morais, que não havia manchas. A veste passou a se chamar cândida. Daí vem a palavra candidato. Portanto, sempre houve a ideia de que quem pode representar é aquele que possa trajar uma veste cândida a simbolizar exatamente a sua condição moral. A lei vem não para substituir o eleitor, mas para impedir que o eleitor seja fraudado na sua vontade. A vontade tem que ser legítima.

Vivendo e aprendendo. Eu não sabia que o termo “candidato” tinha origem nessa tradição. É sintomático, porém, que ela tenha citado essa história, porque ela ilustra bem a visão cândida e irreal que alguns magistrados têm da política. Legal saber a origem da palavra, mas essa tradição romana, se existia, era absolutamente ridícula, pois que ninguém pode identificar as qualidades morais de um homem apenas vendo-o de tanguinha branca, “cândida”, transparente. Provavelmente, tratava-se de uma daquelas tradições que os patrícios inventavam para afastar as classes populares dos pleitos, e que certamente teve que ser abolida após as terríveis guerras plebeias que forjaram e consolidaram a república romana como uma das nações mais modernas, livres e democráticas do mundo antigo.

Felizmente para as classes populares, a Lei da Ficha Limpa tem filtrado sobretudo candidatos da direita corrupta. Os últimos levantamentos do TSE mostram o PSDB na liderança absoluta dos “fichas sujas”. Entretanto, persiste o receio de que, após se adaptar à nova realidade, a direita rica poderá usar seus advogados para posar de vestal enquanto prepara armadilhas jurídicas para seus adversários.

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Não se pode subestimar o lacerdismo, contudo, porque ele manipula três grandes anseios profundos da sociedade brasileira:

  1. A mais legítima e saudável indignação contra o desvio de recursos públicos.
  2. A necessidade de uma imprensa livre e forte na luta contra a corrupção política.
  3. O desejo de participar de um pensamento coletivo; que é na verdade quase um medo, atávico, de ser diferente.

No artigo 49 do clássico da política norte-americana, O Federalista, Alexander Hamilton observa que “a razão do homem, assim como o próprio homem, é tímida e cautelosa quando deixada sozinha, mas adquire firmeza e confiança em proporção ao número de pessoas com o qual se associa”. O pensador lembra que, numa nação de filósofos, esta máxima não teria grande validade, mas que numa democracia de massas, como era os EUA, adquiria grande importância. É nisso que o PIG aposta, na construção de seu exército de zumbis, pensando homogeneamente, obedientemente, manifestando-se “espontaneamente” toda vez que seus editoriais assim o ordenarem. Felizmente, a máxima de Hamilton vale para os dois lados.

*

Daí que o sujeito pergunta: como é possível alguém que se diz de esquerda apoiar Renan Calheiros? É algo até diferente do que se deu em São Paulo, porque no caso, não se apoiou Maluf. O Maluf é que apoiou Haddad. E quando o PP de Maluf foi cobrar a conta pedindo a secretaria de Habitação, Haddad conseguiu driblar a todos nomeando um indicado não de Maluf, mas do Ministro das Cidades, Marcio Fortes; e o indicado foi um sujeito aparentemente livre da esfera de influência do malufismo, com especialização no programa federal Minha Casa Minha Vida, que oferece financiamentos subsidiados para aquisição da casa própria.

Dessa vez, o governo  e o PT emprestaram apoio à Renan Calheiros, no Senado. A esquerda reagiu com um silêncio constrangido, mas sabendo, no fundo, que não havia outro jeito, porque a outra opção, o senador Pedro Taques, é uma figura de oposição, e não apenas de oposição, mas um aliado entusiástico da mídia, e seu desempenho à frente do Casa Legislativa seria marcado pela instabilidade política.

Isso ainda não é suficiente, todavia, para dar uma resposta satisfatória ao assustado cidadão de classe média, interessado em política, que se informa exclusivamente pela grande imprensa, ou, o que é ainda pior, pelos debates circulares e neurastênicos que caracterizam boa parte das redes sociais.

O sujeito se posiciona no Facebook contra Renan Calheiros e vai dormir o sono dos anjos, sentindo-se o mais ético e combativo dos cidadãos. Entretanto, ele jamais refletiu com um pouco mais de profundidade sobre o que é moral, o que é ética, nem como esses valores são manipulados pelos meios de comunicação.

Afinal, porque os passageiros de um avião vaiariam Renan Calheiros, mas jamais vaiaram os tucanos envolvidos nas negociatas das privatizações, muitos deles denuciados recentemente, com provas (domínio de fato é só para petistas), pelo livro Privataria Tucana, e que ainda circulam por aí, a começar por José Serra?

Ah, tá. Talvez o fato do alto tucanato ter deixado, há tempos, de usar aviões de carreira, ajude bastante nesse sentido. Mas porque a Globo jamais inicitou seus leitores a vaiarem nenhum político do PSDB? Mesmo em relação aos pmdebistas, o ódio midiático apenas tomou corpo após estes se aliarem ao PT. Antes, eram aliados, e podiam circular livremente pelos aeroportos. No caso de Renan Calheiros, fizeram ainda mais: entregaram-lhe a chave da casa! Renan foi ministro da Justiça, ou seja, comandante de todas as grandes investigações criminais e políticas no país.

Claro, um erro não justifica o outro. Mas Renan não foi escolhido pelo governo. Foi uma escolha do PMDB, que por sua vez é aliado do PT.

Alguns segmentos sensacionalistas, inclusive da blogosfera, agora tentam pintar o domínio do PMDB sobre Congresso e Senado como um perigo para Dilma Rousseff. Não vejo assim. Mesmo com todos os seus defeitos, que são muitos e terríveis, o PMDB tem se revelado um partido comprometido profundamente com a estabilidade política do governo, na acepção mais nobre que se possa dar ao conceito de estabilidade (que é diferente de “estagnação”), tem apoiado quase todos seus grandes projetos sociais. Se o governo Lula foi um sucesso e o de Dilma acertou em alguma coisa, é injusto omitir que o PMDB é co-partícipe deste processo.

O mesmo agora tão satanizado Renan Calheiros já foi presidente do Senado, entre 2005 e 2007, período no qual emprestou apoio ao governo num de seus períodos mais difíceis, engavetando sem pestanejar as iniciativas de golpe da oposição, e ajudando o governo a aprovar medidas que, alguns anos depois, produziriam uma revolução social no país.  O PMDB merece algum crédito pelo apoio que tem dado ao PT, até porque possui parlamentares da mais alta qualidade moral, como o senador Roberto Requião.

Nesta segunda-feira, diante de ativistas da reforma agrária e agropecuaristas cooperativados ligados ao MST, a presidente declarou que, em março, o cadastro do governo para pessoas em situação abaixo da linha da pobreza estará inteiramente preenchido pelo Bolsa Família, que experimentou um avanço notável, em quantidade e qualidade, nos últimos dois anos. Convidou o MST a ajudar o governo a encontrar famílias não cadastradas, para receber o Bolsa Família e participar do programa Brasil Carinhoso, que visa ajudar crianças pobres. E anunciou o início de um programa gigantesco para trazer desenvolvimento aos assentamentos rurais.

Crescimento econômico, distribuição de renda, aumento do salário mínimo, expansão dos programas sociais, aumento dos investimentos em saúde e educação, universalização da banda larga. Estas são algumas  respostas satisfatórias que a presidente poderá dar ao discurso raivoso lacerdista que volta a emergir com força no país. E se ajudar, simplesmente cumprindo seus compromissos de campanha, os movimentos que combatem as arbitrariedades de uma mídia altamente concentrada, consolidada à sombra sinistra do regime totalitário, que tem sequestrado a subjetividade de segmentos sociais inteiros e causado irreversíveis danos culturais a várias gerações,  se tiver a coragem e a inteligência de ouvir os únicos que realmente estarão a seu lado em 2014, poderá encerrar seu mandato não apenas como gestora competente em cujo governo se registraram bons índices sociais. Poderá encerrá-lo – e iniciar outro – como uma estadista que ajudou o país a conhecer melhor a si mesmo. Poderá não apenas obter uma vitória eleitoral em 2014, mas construir, no médio e longo prazo, uma vitória simbólica e cultural que ponha o Brasil, por cem ou duzentos anos, num patamar de consciência política em posição de vanguarda no mundo.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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