Nessa semana, saiu a lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema com os 100 melhores curtas-metragem brasileiros da história do cinema. Com grande felicidade, o diretor baiano comemorou por dois curtas seus estarem na lista oficial: SUPEROUTRO e O REI DO CAGAÇO. E, no dia 20 de junho, sai seu novo filme: ABAIXO A GRAVIDADE! Ao encerrar o 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e vencendo os prêmios de Melhor Filme, Direção de Arte e Ator Coadjuvante para Ramon Vane no 12º Fest Aruanda, a obra é um grito de vitória, de alerta, de socorro. A história acompanha Bené (Everaldo Pontes), um velho sábio que leva uma vida pacata no interior da Bahia e tem sua vida transformada ao descobrir uma doença aparentemente terminal e conhecer a jovem Letícia (Rita Carelli), que o convence a sentir o caos da cidade grande, onde esbarra com vários personagens peculiares. No meio disso, um asteroide se aproxima da Terra e pode desregular a ordem da gravidade na região da Baía de Todos-os-Santos. No meio disso e enquanto não chega a estreia do filme, vamos acompanhar a entrevista exclusiva do Cafezinho com Edgard Navarro:
Cafezinho: Onde o filme ABAIXO A GRAVIDADE se encaixa na sua filmografia e no cenário do cinema nacional?
Edgard Navarro: ABAIXO A GRAVIDADE é um filme da maturidade, quando os arroubos da juventude cedem lugar à reflexão, o remanso sucede a cachoeira… Enquanto o SUPEROUTRO anuncia um salto temerário sobre o abismo, Bené enfrenta suas crises existenciais com admirável temperança… Eu quisera ter conseguido muito mais equilíbrio do que de fato consegui na vida, bem assim na condução do processo de realização desse último filme… Mas o resultado final terminou sendo satisfatório; o filme responde a minhas demandas filosóficas e estéticas, além de atender a outras mazelas que começam a me acometer nessa quadra da vida. Com relação a minha filmografia, direi que cantei essa pedra desde o primeiro filme que realizei; minha solidão e agonia desde sempre estiveram presentes, mesmo nos momentos em que cheguei a acreditar no canto da sereia do sucesso… E quanto ao cinema nacional, creio que sempre fui e serei um bicho esquisito, um patinho feio, ícaro-pégaso inconcluso, às vezes desesperado; às vezes acho que fui até mais longe do que pensava ser possível; embora no íntimo ainda guarde uma certeza inútil do muito que sempre quis: eu nunca quis pouco, embora “parecesse ser modesto, juro que eu não presto, eu sou muito louco…” etc.
C: O filme é uma série de contrapontos e dicotomias. Fé e racionalidade, meio rural e cidade grande, as personagens duplas de Rita Carelli e até o próprio título. Afinal, você quis buscar um equilíbrio na narrativa ou expor realmente essas desarmonias?
EN: Ambas as coisas. A grande lição do universo é justamente essa: buscar o equilíbrio no paroxismo da crise, o silêncio em meio à balburdia e o repouso no movimento vertiginoso, por exemplo, dos astros, em sua aparentemente eterna dança em demanda do espaço infinito… essas grandezas são autocontraditórias, complementares, fazendo parte de um enigma que parece insolúvel, imposto pelas limitações de tempo e de espaço a que estamos sujeitos… ou seja, a vida é curta para tanto mistério… Acho que ao expor essas desarmonias eu estava me aproximando intuitivamente de uma verdade libertadora/dilaceradora que sempre me acenou do fundo de meu ser.
C: Sendo um filme sobre deslocamentos e transcendências, o que você próprio traz de sua vida pessoal para esse filme, no sentido de o que Edgard Navarro precisou deslocar e transcender para chegar no resultado da obra?
EN: Cascas de nós mesmos temos que deixar pra trás, se quisermos crescer ao longo desse efêmero fenômeno chamado vida; muitos de meus desejos, desenganos, frustrações, dores, desamparos, tive que me esforçar pra transformar em luz… E nesse momento tenho a sensação de que estou me repetindo… mas é como se tudo isso fosse necessário… e por alguma razão que não consigo penetrar… De qualquer maneira, entretanto, me resta como consolo a certeza de que as muitas cabeçadas e burrices que cometi me trouxeram, a duras penas, certa sabedoria, mesmo que precária; e que todos os descaminhos percorridos me ensinaram a caminhar esse caminho que é o meu, o único que me serve; o que trago de mais precioso talvez seja esse aprendizado constante que se faz com o sermos assumidamente errantes, até quando cedemos à tentação arrogante de nos proclamarmos donos da verdade… Pulsando entre o super homem e um verme filho-da-puta qualquer. Nesse sentido Bené traz muito de minha própria condição miserável diante do medo da velhice, dos sintomas e das doenças que me afetam e me ameaçam…
C: As questões do passado são bem recorrentes nos seus filmes. EU ME LEMBRO é uma busca nostálgica e ABAIXO A GRAVIDADE tem saudosismo. O que o passado representa para você e o que você carrega de seus filmes anteriores para criar esse novo?
EN: Uma vez no ginásio o psicólogo me mandou desenhar uma árvore; tratava-se de um teste de personalidade, acho; o curioso é que desenhei a árvore sem me deter muito no tronco, galhos, folhas; fiz como se a terra ao redor dela fosse transparente, como se se pudesse ver as raízes, e me detive nas raízes… o religioso (era um colégio de padres) me disse que eu era muito preso ao passado… isso me acorreu ao espírito agora… talvez eu seja mesmo vítima de um passado em que os grandes traumas ocorreram… me lembro que optei por ignorar aquele mundo (que era sórdido) e apostei todas as minhas fichas na inocência, na poesia, no amor (quase sempre idealizado)… como era de se esperar, dei com os burros n’água; me lembro de ter ouvido muitas vezes essa frase: “se feche!” pronunciada num tom de ameaça e com evidente desprezo; dirigida a mim ou a outros circunstantes que aparentassem certa falta de malícia, certa singeleza, ou bomocismo… O fato é que continuo desse mesmo lado do mundo; pior pra mim e meus iguais, pois hoje mentalidades estão migrando, a delicadeza e a sensibilidade passa a ser tratada como coisa de tolos e de fracos… ou coisa pior.
C: O que você poderia definir como características típicas de um genuíno cinema “navarriano”? A esculhambação, talvez, como você constantemente fala em entrevistas?
EN: Acho que uma mistura radical de elementos opostos, tipo aspirar a alturas celestiais enquanto chafurda na lama… Acho que tenho sido um misturador de tintas fortes, criador de contrastes berrantes, talvez na crença/esperança de que o escândalo produzido nos espíritos de homens medianos sejam a única forma de deslocá-los (literalmente: tirá-los da loca); possa o choque assim produzido acordá-lo pra uma vida plena a que todos estaríamos destinados; daí uma certa compulsão minha de acordar a humanidade dessa suposta letargia malfazeja. Mas começo a achar que isso é uma tara minha, algo como uma ilusão que acalento como remédio contra a mediocridade a que todos estaríamos condenados… um sonho bonito, apenas. Será?
C: Você foi um artista e um estudante no meio da ditadura militar e estamos na iminência de uma possível nova repressão. Você acha que o cinema deveria ter uma contribuição mais forte no debate sobre a política nacional? Como seu cinema esbarra na nossa política brasileira?
EN: Os tempos atuais são desanimadores em nosso país e no mundo; como disse antes, influenciada por uma onda nefasta de machismo as mentalidades migram pra condenar a delicadeza e a sensibilidade como sendo coisa de tolos e fracos… a roda do tempo está dando um retrocesso de 50 anos e voltamos a ser ameaçados pelos dobermanns com violência e brutalidade; o cinema pode, sim (e deve) contribuir no sentido de uma crítica inteligente e tenaz da política imoral e da estupidez vigente… os artistas são portadores de uma luz poderosa, capaz de reacender a esperança e outros valores e virtudes; “basta ser sincero e desejar profundo e você será capaz de sacudir o mundo, vá: tente outra vez!”
C: Por fim, é possível pensar em um progresso no cinema nacional e no cinema da Bahia, apesar das diversas intempéries que a cultura vem sofrendo?
EN: Sim, sempre é possível acreditar em saídas para as crises, existe mesmo uma corrente que acredita que na crise o gênio humano se reinventa e produz coisas maravilhosas… ou seja, a crise produz seu próprio antídoto. A vocação primordial do ser humano é em demanda da luz e da alegria, do prazer, da felicidade, da paz, harmonia, do amor… enfim. Mais uma vez Chico cabe como uma luva: “apesar de você amanhã há de ser outro dia”.
maricelma
08/06/2019 - 09h37
Gostaria de saber onde posso encontrar o filme Eu me lembro. Sou pesquisadora e iria me ajudar muito! Desde já agradeço a oportunidade!