João Ricardo Dornelles *
* Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio
Rio, 09/03/2019
Existem momentos em que a história acelera o seu ritmo.
Como uma bateria de escola de samba, a história do Brasil acelerou a seu ritmo, com paradinhas, com intensidades maiores ou menores. Acelerou o ritmo a partir da Constituição de 1988, que reconheceu direitos até então desconhecidos do povo brasileiro, como o direito a uma saúde pública e universal, através do SUS, as políticas afirmativas em relação à população negra, indígena, os direitos das mulheres, dentre outros direitos. Mas também acelerou seu ritmo, aos solavancos, quando foram criadas a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Anistia e, muito tardiamente, a Comissão Nacional da Verdade, juntamente com uma série de comissões estaduais e setoriais da verdade. Acelerou com a Lei Maria da Penha, com os direitos da população negra, indígena, da comunidade LGBT etc. Acelerou muito com a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO/ONU, da retirada de cerca de 40 milhões de brasileiros da condição de miséria etc. Acelerou com políticas públicas que possibilitaram viver o sonho de um país mais justo, mais igual, mais plural, diverso, solidário e democrático.
Mas a história não acelera apenas no sentido da ampliação de direitos e de liberdades democráticas. Por vezes, a história empaca, como uma bateria de escola de samba que atravessa na avenida e não existe mais harmonia entre o samba cantado, os instrumentos tocados e os passistas sambando. Além de “atravessar na avenida”, a consequência é que, por vezes, a história acelera no sentido contrário, de retrocessos de direitos e liberdades democráticas.
Temos assistido tais movimentos na história recente do Brasil, especialmente a partir de 2016 com o golpe que subverteu a ordem democrática e as conquistas sociais do povo brasileiro.
O ambiente que levou ao golpe e ao seu aprofundamento revelou o que existe de pior na sociedade brasileira. Mas atenção. Não é nenhuma novidade. Nunca fomos um povo gentil, cordial, alegre, solidário, democrático, embora tenhamos sido formados acreditando nisso (“o povo brasileiro é o mais alegre, feliz e gentil do mundo”). Pura falácia.
Nossa história mostra muito bem os cinco séculos de um genocídio de gente pobre, negra, indígena e de todos os deserdados da terra.
O fascismo social brasileiro sempre esteve aqui, por vezes camuflado, às vezes envergonhado (nem sempre, é verdade). Na verdade um fascismo social fundado na colonialidade e no escravismo. A nossa especificidade de sociedade que articulou as barbáries pré-modernas do modelo colonial, com as barbáries modernas do capitalismo periférico e, por fim, com as novas barbáries das sociedades contemporâneas. Uma sociedade que articula o aparato tecnológico da indústria cultural e a produção de um simulacro de realidade, através das Fake News, da pós-verdade, da pós-democracia, do pós-humanismo com todo o arsenal de violências diretas, sem sutileza, das sociedades coloniais.
Uma sociedade construída sobre o sofrimento, a dor, a violência e a morte. Construída sobre alicerces do genocídio indígena, a escravidão, os massacres, as ditaduras e os períodos de democracias oligárquicas. E tudo embalado pela ideologia da cordialidade, felicidade e alegria.
Os períodos realmente mais democráticos – como o segundo governo Vargas, o período entre JK e o golpe de 1964 – foram o ponto fora da curva, exceções que confirmam a regra dos mais de quinhentos anos de colonialidade, patriarcado, racismo, exclusão em massa e controle, vigilância e massacre dos mais pobres.
O grande moinho onde gente vira farinha, a enorme engrenagem de “moer gente”, como disse Darcy Ribeiro.
Pois bem, o carnaval de 2019 entrará para a história, talvez como uma aceleração no ritmo da bateria tocando em compasso harmonioso com o resto da escola. Entra na história como o carnaval da resistência, do NÃO à barbárie que elimina direitos sociais e mata jovens pobres, quase todos negros ou não brancos, pelas periferias, campos e florestas pelo país afora. Resistência que se anuncia com o jeito brasileiro de ser, através da cultura, como obra de arte coletiva. Através do rechaço ao “presidente Fake News”, celebrador da ditadura e da tortura, através da crítica social e, significativamente, através das escolas de samba.
Duas delas se destacaram. Uma repetindo o ano anterior, a Paraíso do Tuiuti, mostrando que o rei está nu. A outra, Estação Primeira de Mangueira, a Verde-Rosa, que, “benjaminianamente”, visibiliza os silenciados da história. Como justiça anamnésica revela a verdade dos oprimidos, das vítimas, dos violentados, dos esquecidos da história. Mostra os dois mundos que completam a realidade, a história dos vencidos e oprimidos, como um tsunami humano e social, aparecendo e desmontando as narrativas históricas dos vendedores.
Quantas Marielles, Chico Mendes, Dandaras, Marighellas, Olgas, Zumbis tiveram que morrer na história não contada do Brasil? Vozes silenciadas e invisíveis para a história dos vencedores, a história oficial.
Quantas(os) foram e ainda são humilhadas(os) e oprimidas(os)? Temos cerca de 800 mil pessoas encarceradas no “navio negreiro” do sistema penal. Temos Lula preso, sem provas, com procedimentos extra-judiciais altamente discutíveis, vítima da guerra jurídica teleguiada pelo Império e operada por seus agentes locais. Guerra que tem como alvo as políticas públicas sociais, os direitos ampliados, a soberania nacional, as vozes que passaram a exigir mais direitos com seus corpos que ousaram ocupar os espaços antes apenas reservados aos senhores e senhoras das elites. Trata-se de uma guerra contra os pobres.
A Mangueira entrou na passarela do samba e deu um grito de basta, chega. Através da música, do tão brasileiro samba, do gingado, das evoluções, do colorido, mandou um recado para todo o Brasil e para o mundo. O recado de que só é possível a paz com a verdade histórica, com o exercício contínuo da memória, com a construção de uma justiça em que as vozes oprimidas, desaparecidas, silenciadas e mortas apareçam para toda a sociedade.
A Mangueira deu aula de história, foi o exemplo vivo do que Boaventura de Sousa Santos chamou de “Sociologia das Ausências”.
A luta por Memoria, verdade e justiça no Brasil passa por muitos outros caminhos distintos dos percorridos em outras sociedades. Por caminhos que representam como o povo brasileiro se expressa. Com seus ritmos, suas formas de resistência e luta, suas cores, seus odores e seus sabores.
O impecável e emocionante desfile da Mangueira, e o seu belíssimo samba enredo, redimiu os milhões de brasileiros que foram esquecidos em toda a sua história.
LUPE
10/03/2019 - 13h35
Caros leitores
Pela PRIMEIRA VEZ (pelo que eu saiba)
a GLOBO
nÃo
transmitiu o Desfile das Campeãs no sábado.
É difícil entender que a DENÚNCIA da Mangueira
não podia ser transmitida mais uma vez?
Globo ::::: >>> será que é a serviço de consertar o Brasil?
Ou a serviço de destruir o Brasil?
Como nossos inimigos querem?
paulo de tarso celebrone
10/03/2019 - 11h49
Concordo com o Zé maconha, mas acho que esse tempo pode diminuir, e muito, se vaidades políticas forem superadas e uma unidade dos progressistas, nacionalistas, for o quanto antes construída.Parcela importante e pensante do nosso povo anseia por isso.
Zé Maconha
10/03/2019 - 11h22
Muito bom.
Acredito que o retrocesso atual dará bons frutos no futuro.
Não se pode fugir da lei da ação e reação.
Infelizmente o povo sofrerá até lá.
Sergio Araujo
10/03/2019 - 10h06
Jogo do Bicho – Miliçias – Mangueira….ridiculo !!