Por Cláudia Versiani, enviado ao Cafezinho
Minas Gerais é o terceiro estado no ranking do PIB brasileiro. A capital, Belo Horizonte, já foi indicada pelo Population Crisis Commitee, da ONU, como a cidade com melhor qualidade de vida na América Latina, e, no mundo, a 45ª entre as 100 melhores do mundo. Em 2009 aparecia como uma das dez melhores para se fazer negócios na América Latina, à frente de Brasília, Rio e Curitiba. No entanto, a variação entre o rendimento da região mais rica e a mais pobre chega a 2.347%, segundo o IBGE. Ou seja, os moradores de bairros nobres ganham 24 vezes mais do que os da periferia. Tudo normal, ninguém se espanta.
Na capital mineira, na década de 60 do século passado era comum à noite, depois do jantar, pessoas baterem à porta das casas pedindo restos de comida. Geralmente traziam uma lata, na qual os restos eram postos misturados, como lavagem para porcos. Sem qualquer estranhamento. Talvez essas pessoas fossem vistas como pertencentes a outra espécie que não a humana.
Nos mesmos anos 60 a pobreza brasileira era romantizada nas canções – “o morro não tem vez, e o que ele fez já foi demais (…) quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar…”. Estrangeiros em visita ao Brasil, espantados com a indecente distribuição de renda, diziam que o país estava sobre um barril de pólvora.
A pólvora explodiu, como se sabe. Além da miséria, o tráfico de drogas, praticamente inexistente há poucas dezenas de anos, hoje é ameaça nacional, com ramificações perigosas e soldados arregimentados nas periferias. As cidades cantam hinos fúnebres para seus mortos das mais variadas origens, de pobres a policiais, passando por um ou outro membro da classe média – esses, com espaço nos noticiários, comoção generalizada e, dependendo das circunstâncias, exortações veementes à redução da maioridade penal.
Belo Horizonte é citada aqui apenas como exemplo. Apenas porque a cidade choca o incauto visitante pela quantidade de cercas de arame farpado, ou seu sucedâneo, em residências, escolas, prédios de apartamento, oficinas, construções. A cidade se precavê contra hordas de bárbaros – os pobres, cada vez mais vistos como de outra espécie que não a humana. Os pobres que assustam e enojam, dos quais as crianças correm e os adultos se esquivam. Os pobres quase bichos – e bem menos valiosos do que os animaizinhos de estimação atendidos em pet shops.
Os recentes massacres em presídios brasileiros – chamados de acidente pelo sujeito que se senta à cadeira presidencial e carece de um bom dicionário – expõem a face mais bárbara do apartheid. No presídio em Manaus não tinha santo, disse o governador do Amazonas. Deveria haver um massacre por semana, acrescentou o inacreditável secretário nacional da Juventude do sedizente governo Temer. Está tudo sob controle, garantiu o ministro da Justiça, antes do terceiro massacre, ocorrido em seguida numa cadeia no Centro de Manaus, e antes de ser desmascarado em cadeia nacional por ter mentido sobre pedido da governadora de Roraima para socorrer a periclitante situação prisional do estado.
A imprensa estrangeira mostra espanto pela indiferença da sociedade brasileira aos massacres de quase uma centena de presos, ocorridos com requintes de crueldade, como decapitações. Sem contar que, em 2016, nas prisões brasileiras morreu um preso por dia de forma violenta.
Mas o Brasil é um país reacionário, conservador, extremamente retrógrado, como bem disse o ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, em recente entrevista. E em certos segmentos da população impera a fantasia meritocrática, segundo a qual os pobres são culpados pela própria pobreza. Qualquer movimento para dirimir as diferenças sociais é visto como ameaça aos privilégios seculares das classes mais favorecidas, e como favor aos “vagabundos” incapazes de gerir a própria vida. Como corolário, presos não merecem respeito, que dirá compaixão. Nas prisões não há santos, detentos não têm direitos e deveriam se autodestruir com mais frequência para “limpar” a sociedade.
São de outra espécie que não a humana. As crianças aprendem isso desde a mais tenra idade. O rolo de arame farpado no muro de uma escola em Belo Horizonte, mesmo para atender a uma necessidade, é simbólico. Mostra às crianças, tanto as do lado de fora quanto as de dentro, a que espécie pertencem.
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Cláudia Versiani é jornalista, fotógrafa e professora do curso de Comunicação Social da PUC-Rio, além de autora dos livros “Os homens de nossas vidas” (crônicas) e “Bodas de Sangue: a construção e o espetáculo de Amir Haddad” (fotografias).
Luiz Ewerton Gazola
15/01/2017 - 07h29
O artigo é uma viagem , um panfleto de quinta categoria e populismo barato. A desigualdade de renda é um fato. E concordo que devemos promover mecanismos para diminuí-la. E não existe outra alternativa que não venha da educação de qualidade. Em vez de gastar bilhões com programas de transferência de renda o melhor seria investir na formação e educação dos jovens. Por outro lado, a distância de riqueza entre bairros com moradores ricos e os de periferia ocorre em quase todo os países. Contudo, são absurdamente menores naqueles que investiram em educação e saúde. O rfesto é propaganda barata PTista.
Fábio Camargo – Boeotorum Brasiliensis sp.
15/01/2017 - 15h30
Meu caro,
O longo prazo passar por tratar o curto prazo. Educação, saúde e saneamento básico compõem o tripé que apoia o aumento de produtividade da economia criando maiores e melhores oportunidades de investimento, geração de empregos, crescimento da renda média, aumento e qualificação do consumo e da poupança. Entretanto, isto depende de políticas e investimentos públicos e de resiliência das ações e propósitos para percorrer um trajeto com duração de uma geração, no mínimo.
Para que seja viável é preciso agir pontualmente para tratar os problemas de curto prazo que sufocam nosso país, tem um custo econômico e social gigantesco e drenam os recursos necessários para executar as medidas estruturantes no longo prazo. As ações positivas, como o Programa Bolsa Família, não são a solução definitiva, mas criam as condições mínimas e são indispensáveis para que estas sejam aplicadas e tenham sucesso.
Embora iniciativa do PT, seus objetivos extrapolam o partido, suas lideranças e as próximas eleições. São ações de tamanha importância que segundo o Banco Mundial […] “o programa mais bem sucedido de todos os tempos: o Bolsa Família. Em uma década de operação, ele conseguiu reduzir pela metade a pobreza no Brasil” […]. (Disponível em: http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2014/03/22/mundo-sin-pobreza-leccion-brasil-mundo-bolsa-familia. Acesso em: 15 de jan.2017). O Bolsa Família tornou-se referência e, com base nas suas diretrizes e integradas, originou o Brazil Learning Initiative for a World Without Poverty (WWP), resultado da parceria do Banco Mundial com o Brasil e com a ONU, por meio do International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG),dentro do United Nations Development Program (UNDP). Maiores informações podem ser obtidas em https://wwp.org.br/.
Minha iniciativa em pontuar seu comentário, em tão longa resposta, não é recriminá-lo. A divergência e a pluralidade de pensamentos, juntamente com a liberdade de expressá-los e ter sua opinião respeitada, são a essência do espírito democrático. A linha de pensamento que você afirma em seu comentário é comum, ainda que formada por dados equivocados e como resultado da desinformação a respeito, difundida de todas as formas e em todas as mídias. Você, a exemplo de outros na mesma posição social, a qual suponho permitir acesso à boa formação educacional e bom nível de renda, são formadores de opinião. Assim, o bem e o mal que causam ao transmitir ideias e opiniões influenciam pessoas e se multiplicam. Logo, peço que reflita sobre o que narrei aqui e tenha a curiosidade de buscar informações e dados sobre a desigualdade, suas causas, os danos que causa às sociedades e as suas economias e sobre as medidas que são preconizadas para dar-lhe solução. Tenho esperança que o faça e, neste caso, a certeza que chegará às mesmas conclusões que eu.
Saudações e Feliz 2017.
Fábio Camargo – Boeotorum Brasiliensis sp.
14/01/2017 - 20h01
A desigualdade tem sido denunciada, há anos, como o maior problema a ser enfrentado pela sociedade mundial. Economistas, sociólogos, antropólogos, cientistas e educadores, muitos laureados com o Nobel, têm estudado, publicado e divulgado inúmeros trabalhos sobre os nefastos efeitos da desigualdade. O mesmo é visto em relatórios, notas técnicas e estudos produzidos pelas organizações internacionais, como a ONU e a OCDE, organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI ou centros de estudos como Oxfam e o Institute for New Economic Thinking, dentre outros. O assunto ganhou especial relevância com a crise de 2008 e a forma com que os governos “equacionaram” o problema, socorrendo os bancos e as grandes corporações sob a alegação serem “too big to fail”. Concederam-se bailouts aos bancos e estatizaram-se o capital das gigantes montadoras automobilísticas. Mesmo que de forma temporária e parcial, viram-se instaladas como situações de dicotomias extremas ao se verificarem, também e especialmente, nos EUA, o pináculo do liberalismo econômico. Pode-se supor que tais medidas foram necessárias e sua ausência poderia ter elevado a amplitude e profundidade da crise. Contudo, é evidente para todos que, ao fim e ao cabo, não se tratava de salvar as empresas, mas os acionistas e executivos. Nos anos imediatamente seguintes, além de nenhum dos conhecidos responsáveis ter sido punido, foram e as suas empresas fartamente recompensados. A partir de 2009, os níveis de desigualdade e concentração de riqueza aumentaram ainda mais e continuam aumentando. As perdas foram “socializadas” e transferidas para a população enquanto os lucros, privados, se destinam a um número cada vez menor de organizações empresarias e seus acionistas e executivos.
No Brasil, por um tempo, se viu a alternativa correta aplicada e funcionando. A concentração de riqueza e renda diminuindo, uma gama de oportunidades sendo ofertada aos menos favorecidos com redução da miséria e de suas consequências. O mundo nos olhava, pela primeira vez na história, com crescente admiração e o modelo brasileiro era citado em artigos, estudos e planos de redução da pobreza. O sinal mais evidente era dado pelo crescimento do emprego, renda e do consumo. E, hoje, nos vemos em meio a tamanha catástrofe econômica e política que é evidente que todos os ganhos obtidos pela sociedade brasileira serão devolvidos com juros rápida e inevitavelmente se seguirmos o rumo atual.
As causas do problema têm sido atribuídas à fatores econômicos e políticos erradamente. O artigo em tela veio reforçar a evidência da verdadeira causa. O que estamos assistindo é uma reação visceral da parcela da população, privilegiada, mas longe de ser uma elite – alguém disse e eu li recentemente que o Brasil têm ricos, mas não elites – contra a possibilidade que se construiu de transformar pobres em cidadãos. Foi esse apartheid que possibilitou a reviravolta e o retorno aos descaminhos históricos que nos mantêm presos ao atraso.
Quando pensamos nisso os primeiros sentimentos que afloram são a tristeza, a melancolia e a desesperança. Em seguida vêm a revolta e a vontade de pegar em armas.
Susan Guggenheim
14/01/2017 - 13h37
Excelente artigo de Claudia Versiani. Descreve com perfeição as desigualdades em nosso país fruto das injustiças e desrespeito ao ser humano. A pobreza é um mal causado pelo acúmulo de riqueza por poucos e a falta da continuidade de políticas públicas que diminuam a vergonhosa desigualdade entre os brasileiros.
Carlos Alenquer
14/01/2017 - 11h48
Essa classe média que acredita piamente na meritocracia (e por isso imagina que estará antes do fim do mundo naquela exclusiva faixa de 1% que controla a riqueza mundial) poderia, ao menos, ser menos campos de concentração (vide o arame farpado) e um pouco mais à altura de suas aspirações elegantes (vidros fumê, essas coisas): quem sabe a democratização dos discretos fios eletrificados e das sofisticadas câmeras de vigilância?
Marcelo Padilha
14/01/2017 - 00h46
Ninguém escolhe ser miserável. Contudo é sua opção permanecer como tal.
Carlos Alenquer
16/01/2017 - 15h06
O cara nasce pobre, negro, na favela, miserável e ainda por cima cresce analfabeto, sem emprego — e opta por permanecer como tal? Brilhante!
Zeca Rodrigues
13/01/2017 - 19h07
Excelente matéria!
Anteontem conversei com um desses conservadores reacionários, na Praça JK, em BH, que logo depois de culpar os pobres pela própria desgraça e soltar os clichês de sempre, foi embora se dizendo descendente de italianos e soltando a pérola: “Fascio!”.