Trata-se de um ato de resistência política, principalmente, enfrentar os riscos em denunciar os segredos de Estado corruptor. “É um desafio dirigir-se a esses indivíduos e ajudá-los a entender que, como servidores públicos, sua aliança principal é com a sociedade em vez de com o governo em si”, afirma artigo do Intercept.
Complexo de Assassinato
Whistleblowing não é apenas vazamento de informações. É um ato de resistência política.
Retirado de The Assassination Complex: Inside the Government’s Secret Drone Warfare Program (O Complexo de Assassinato: Dentro do Programa de Guerra Secreto de Drones), por Jeremy Scahill e a equipe do The Intercept, com prefácio de Edward Snowden e posfácio de Glenn Greenwald, publicado por Simon & Schuster.
Tradução: Inácio Vieira
Venho esperando por alguém como você há 40 anos.” Essas foram as primeiras palavras de Daniel Ellsberg quando nos encontramos pela primeira vez no ano passado. Dan e eu sentimos uma afinidade imediata, já que conhecíamos a dimensão do risco em revelar fatos secretos e ter nossas vidas irreversivelmente afetadas por isso.
Um dos maiores desafios de um whistleblower é aprender a conviver com a ideia de que há funcionários trabalhando em seus escritórios, assim como fizemos, espalhados por todas as unidades da agência de segurança, vendo o que você viu, conformados em silêncio, sem reagir ou reclamar. Eles aprendem a viver não apenas com inverdades, mas com inverdades desnecessárias, inverdades perigosas e inverdades nocivas. É uma tragédia dupla. Aquilo que começa como uma estratégia de sobrevivência acaba por prejudicar quem pretendia proteger e desvirtuar a mesma democracia que justificava tamanho sacrifício.
Mas, diferentemente de Dan Ellsberg, não tive que esperar 40 anos para que outras pessoas rompessem o silêncio através da revelação de mais documentos. Ellsberg entregou os Papéis do Pentágono para o New York Times e outros jornais em 1971; Chelsea Manning cedeu os registros das guerras do Iraque e do Afeganistão, bem como o material do Cablegate (telegramas diplomáticos dos Estados Unidos) para o WikiLeaks em 2010. Eu decidi fazer a minha parte 2013. E aqui estamos, em pleno 2016, e mais uma pessoa embuída de coragem e consciência disponibilizou um extraordinário conjunto de documentos que foram publicados em The Assassination Complex (O Complexo de Assassinato), um livro de Jeremy Scahill e da equipe do The Intercept. (Os documentos foram publicados originalmente em 15 de outubro de 2015 na reportagem The Drone Papers.)
Estamos começando a compreender este período em que políticas de Estado nocivas se escondem nas sombras, aquele interim em que atividades inconstitucionais podem ser levadas a cabo antes de serem expostas por atos de consciência. Essa compressão temporal é importante não só no âmbito das manchetes jornalísticas; ela permite que cidadãos tomem conhecimento de medidas importantes do governo, não como parte do registro histórico, mas de forma que possam manifestar suas opiniões diretamente através do voto. Em outras palavras, de forma a capacitar uma sociedade mais bem informada para defender a tal democracia que os “segredos de Estado” dizem proteger. Quando vejo indivíduos capazes de divulgar informações importantes, tenho esperança de que não vamos precisar questionar as atividades ilegais de nossos governos incessantemente, como uma necessidade constante, tentando erradicar irregularidades com a mesma frequência com que cortamos a grama. (O curioso é que algumas pessoas começaram a descrever as operações de assassinato por drones como “cortar a grama”.)
Um ato isolado de um whistleblower não altera o fato de que há inúmeros setores do governo operando por debaixo dos panos, fora do alcance da fiscalização da sociedade. Essas atividades secretas vão continuar, apesar das reformas constitucionais. Porém, os responsáveis terão de conviver com o medo de serem legalmente responsabilizados caso se envolvam em atividades contrárias ao espírito democrático – basta que apenas um cidadão seja impelido a frear os mecanismos dessa injustiça. Essa igualdade perante a lei é o fio condutor que sustenta a boa governança, já que o único medo daquele que move essas engrenagens é acabar sendo vítima delas mesmas.
Mas há esperança em passarmos de revelações extraordinárias para uma cultura de responsabilização na comunidade de inteligência. Assim, teremos dado um importante passo para a solução de um problema que existe desde que governo é governo.
Nem todos vazamentos são iguais, assim como seus responsáveis. O Gen. David Petraeus, por exemplo, forneceu à sua amante e biógrafa informações tão secretas que desafiam o próprio conceito de confidencialidade, incluindo os nomes de agentes secretos e as opiniões privadas do presidente sobre assuntos de interesse estratégico. Petraeus não foi acusado criminalmente, conforme o Departamento de Justiça recomendara inicialmente. Foi permitido que o general se declarasse culpado por uma simples contravenção penal. Se um soldado de baixa patente levasse diversos documentos confidenciais e os passasse à sua namorada para arrancar-lhe um sorriso, estaria sujeito a muitas décadas na prisão, e não a diversas referências de caráter de um quem é quem do Coração do Estado.
Há vazamentos autorizados, assim como há revelações admissíveis. É raro ver figuras do alto escalão pedindo explicitamente que um subordinado vaze o nome de um agente da CIA em retaliação a seu marido, como parece ter sido o caso de Valerie Plame. É igualmente raro que um mês inteiro se passe sem que uma figura do alto escalão revele informações confidenciais com interesses partidários, porém, evidentemente “nocivos à segurança nacional”, de acordo com nossa legislação.
Esse tipo de dinâmica pode ser observada no caso da “conferência telefônica catastrófica” da al Qaeda, na qual agentes de inteligência, provavelmente tentando exagerar a dimensão da ameaça terrorista e evitar críticas à vigilância em massa, revelaram a um site neoconservador relatos detalhados de conversas específicas que haviam sido interceptadas, incluindo a localização das partes e o conteúdo exato das discussões. Se acreditarmos nas alegações dos agentes, pode-se concluir que eles perderam uma oportunidade extraordinária de descobrir os planos e intenções dos líderes terroristas em troca de uma vantagem política efêmera nos noticiários. Ninguém parece ter se tornado mais disciplinado após o resultado daquilo que nos custou a capacidade de ouvir o conteúdo da suposta linha direta da al Qaeda.
Se os danos causados e a autorização para divulgação não fazem diferença, qual a distinção entre uma revelação admissível e uma revelação inadmissível?
A resposta é o controle. Um vazamento é aceitável se não for visto como uma ameaça, como um questionamento às prerrogativas da instituição. Mas se todos os componentes distintos — não apenas a cabeça, mas suas mãos, pés e todas as partes do corpo — devem ser encarados como se tivessem o mesmo poder para discutir questões do interesse da instituição, há uma ameaça existencial ao monopólio do controle de informações no contexto político moderno, em especial quando falamos de revelações de irregularidades graves, atividades fraudulentas e ilegais. Se você não pode garantir que pode explorar sozinho o fluxo de informações controladas, então o conjunto de assuntos sigilosos de todo o mundo — incluindo os seus — representam mais um risco do que uma vantagem.
Revelações verdadeiramente proibidas são necessariamente um ato de resistência — isto é, se não tiverem a finalidade única de alimentar a imprensa e engrandecer a imagem ou reputação de uma instituição. Porém, isso não quer dizer que elas sempre virão dos mais baixos escalões. Em algumas ocasiões, aqueles que se manifestam estão próximos do topo da pirâmide do poder. Ellsberg pertencia ao alto escalão; ele se encontrava com o secretário de Defesa. Não se pode chegar mais alto do que isso a menos que você seja o próprio secretário de Defesa, mas não há por que um oficial do alto escalão se envolver em revelações de interesse público, visto que já possui a influência necessária para alterar políticas de Estado diretamente.
No outro extremo do espectro institucional, está Manning, um soldado raso, muito mais próximo da base da pirâmide hierárquica. Eu estava no meio da minha carreira profissional. Me reunia com o diretor-chefe de Informações da CIA, e estava orientando a ele e seu diretor-chefe de Tecnologia enquanto faziam declarações públicas como: “Tentamos coletar tudo e guardar para sempre”, e todo mundo achava aquilo um lema bonitinho. Enquanto isso, eu desenvolvia sistemas que eles usariam para cumprir essa promessa. Eu não orientava a ala política, como o secretário de Defesa, mas orientava a ala de operações, como por exemplo o diretor tecnológico da Agência de Segurança Nacional. Irregularidades por parte de oficiais podem servir como catalisadoras para que funcionários de todos os níveis revelem informações, mesmo que isso os coloque em risco, desde que estejam convencidos de que é necessário fazê-lo.
É um desafio dirigir-se a esses indivíduos e ajudá-los a entender que, como servidores públicos, sua aliança principal é com a sociedade em vez de com o governo em si. É uma mudança considerável na cultura de um funcionário do governo.
Já defendi que whistleblowers são escolhidos pelas circunstâncias. Não é uma virtude pessoal ou inerente às suas origens. Tem a ver com aquilo a que você se expõe, aquilo que você testemunha. Nesse momento, a pergunta passa a ser: “Você acredita sinceramente que tem a capacidade de remediar o problema e influenciar as políticas de Estado?”. Eu não encorajaria ninguém a revelar informações, mesmo que elas sejam sobre irregularidades, se não acredita que possam gerar resultados, já que esse momento prefeito pode ser tão raro quanto a própria disposição a agir.
Essa é uma consideração estritamente pragmática e estratégica. Whistleblowers são exceções à regra e, se pretendem ser forças políticas efetivas, é fundamental que maximizem os bens sociais produzidos a partir de uma semente tão rara. Quando estava tomando minha decisão, entendi que uma ponderação estratégica, como esperar o mês de uma eleição nacional, poderia ser superada por outra, como a obrigação moral de conter uma tendência global que já tinha ido longe demais. Eu estava concentrado naquilo que observava e no insuportável sentimento de que governo, no qual acreditei por toda minha vida, estava envolvido em um ato de tamanha falsidade.
No centro dessa evolução, encontra-se o fato de que whistleblowing é um acontecimento radicalizador — quando digo “radical” não me refiro a “extremo”, falo do sentido tradicional de radix, a raiz da palavra. De repente, você entende que não basta trocar algumas letras de lugar em uma página e torcer pelo melhor. Não basta mais informar seu supervisor a respeito do problema, como tentei fazer, porque é inevitável que supervisores fiquem temerosos. Eles consideram os riscos estruturais a suas carreiras. Têm medo de sacudir as estruturas e “acabar com fama”. Não há incentivos para se produzir reformas significativas. Fundamentalmente, em uma sociedade democrática, as mudanças vêm de baixo para cima.
Quem trabalha no seio da comunidade de inteligência abdicou de muitas coisas para fazer esse trabalho. Aceitou restrições tirânicas sem ressalvas. Submete-se voluntariamente a testes de polígrafo e conta ao governo todos os detalhes sobre sua vida. Abre mão de vários direitos, porque acredita que o valor intrínseco de sua missão justifica sacrificar mesmo aquilo que é mais sagrado. É uma causa justa.
E, quando se vê frente a provas – não em um caso extremo ou peculiar, mas em consequência direta do programa – de que o governo está infringindo a Constituição e violando os ideais que você defende fervorosamente, você tem de tomar uma decisão. Quando você constata que um programa ou uma política é inconsistente com os compromissos e obrigações que jurou observar ante a sociedade e a você mesmo, torna-se impossível conciliar isso com o programa. Qual dos dois merece mais sua lealdade?
Um dos aspectos extraordinários sobre o ritmo crescente das revelações dos últimos anos é o fato de ocorrerem num contexto em que os Estados Unidos são vistos como uma “superpotência inquestionável”. Temos incontestavelmente a maior máquina militar da história mundial, respaldada por um sistema político cada vez mais disposto a autorizar todo o tipo de uso de força militar em resposta a praticamente qualquer explicação. No contexto atual, essa justificativa é o terrorismo, mas não necessariamente porque nossos líderes estejam particularmente preocupados com esse fenômeno, nem porque acreditem que o terrorismo representa uma ameaça existencial para a sociedade. Eles reconhecem que o número de vítimas mortais em acidentes de carros e por doenças cardíacas continua sendo superior ao número de mortes se tivéssemos um ataque como o 11 de Setembro por ano, no entanto, não vemos o mesmo investimento de recursos em resposta a essas ameaças mais expressivas.
No fundo, tudo se resume à realidade política de termos uma classe política que se sente obrigada a se defender contra acusações de fraqueza. Nossos políticos têm mais medo da política em torno do terrorismo – de serem acusados de não levarem terrorismo a sério – do que do crime em si.
Por consequência, atingimos um poder inigualável, não restrito pela classe política. Ficamos dependentes do que apenas se destinava a funcionar como último recurso: os tribunais. No período após o 11 de Setembro, os juízes, conscientes de que suas decisões subitamente adquiriram uma importância política e impacto muito superiores ao que originalmente se previa, esforçaram-se para evitar rever as leis e as operações do Executivo no contexto da segurança nacional e definir precedentes restritivos que, mesmo se fossem perfeitamente adequados, imporiam limites à ação do governo por décadas ou, quem sabe, séculos. Isso significa que a instituição mais poderosa que a humanidade já testemunhou se transformou também na menos cerceada. Todavia, essa mesma instituição nunca fora concebida para funcionar dessa forma, tendo sido, muito pelo contrário, explicitamente fundada com base em princípios de regulação e equilíbrio. O nosso impulso fundador traduziu-se na afirmação: “Apesar de sermos poderosos, restringimos nossa força voluntariamente”.
Em sua primeira visita oficial ao quartel-general da CIA, você ergue a mão e presta juramento, mas não à agência nem à confidencialidade. Você faz um juramento à Constituição. Por isso, há um conflito, como uma disputa entre os deveres e valores que o governo pede que você cumpra e as atividades reais nas quais exigem que você participe.
As revelações sobre o programa de assassinatos da administração Obama confirmam que existe um aspecto do caráter americano que se preocupa profundamente com o exercício ilimitado de poder sem supervisão. E não há exemplo mais claro de poder sem supervisão do que chamar para si a autoridade para executar um indivíduo fora do contexto de guerra e sem o envolvimento de qualquer tipo de processo judicial.
Tradicionalmente, no contexto militar, sempre foi do entendimento geral que a força letal em situação de guerra não poderia se sujeitar a restrições judiciais prévias. No campo de batalha, entre dois exércitos, não há espaço para um juiz. Mas agora o governo decidiu – sem a participação da sociedade, sem nosso conhecimento e consentimento – que o mundo todo é um campo de batalha. Por meio da subversão da linguagem, indivíduos que não representam uma ameaça iminente em nenhum sentido são ressignificados para que se encaixem nessa definição de ameaça.
Inevitavelmente, essa subversão conceitual atinge seu objetivo, juntamente com a tecnologia que permite que as autoridades promovam ilusões confortáveis sobre os assassinatos cirúrgicos e a vigilância não intrusiva. Vejam, por exemplo, o Santo Graal da constância dos drones, uma capacidade que os Estados Unidos há muito pretendem obter. O objetivo é implementar drones movidos a energia solar que possam voar por semanas sem necessidade de aterrissarem. Quando isso for possível – e acoplando um dispositivo de coleta de sinais na parte inferior do drone para monitorar sem limites os sinais de endereços de rede de todos os laptops, smartphones e iPods – será possível saber a localização de um determinado dispositivo em qualquer cidade, assim como o apartamento onde se encontra cada dispositivo, e todos os percursos e deslocamentos efetuados. Conhecendo o dispositivo, conhece-se também o seu dono. Quando esse procedimento for implementado em diversas cidades, será possível monitorar não somente os movimentos de indivíduos, como também de populações inteiras.
Aproveitando-se da necessidade moderna de estar permanentemente conectado, os governos conseguem reduzir nossa dignidade à dignidade de animais marcados, com a única diferença de que nós pagamos pelas marcas que carregamos em nossos bolsos. Tudo isso soa a uma fantasia paranoica, mas, em nível técnico, é muito fácil de ser implementado, por isso, não consigo imaginar um futuro em que isso não venha a acontecer. Inicialmente, será um procedimento limitado a cenários de guerra, em conformidade com nossos costumes, mas a verdade é que a tecnologia de vigilância tende a nos seguir até as nossas casas.
Aí reside a dupla faceta de nosso nacionalismo à moda exclusivamente americana. Somos criados com a crença do excepcionalismo, para pensar que somos a melhor das nações, com o destino manifesto de governar o mundo. O perigo é que há quem acredite piamente nessa ideia, e algumas pessoas esperam que a concretização de nossa identidade nacional, ou seja, nosso governo, se comporte e aja em conformidade com ela.
O poder sem limites pode ser muitas coisas, mas não é um traço americano. É nesse sentido que o whistleblowing se torna cada vez mais um ato de resistência política. O whistleblower dá o alerta e ergue a tocha que lança luz sobre os fatos, perpetuando o legado de uma linhagem de americanos nascida com Paul Revere.
Os indivíduos responsáveis por essas revelações se sentem tão inflamados pelo que viram que se dispõem a arriscar suas vidas e sua liberdade. Eles sabem que nós, o povo, somos o mecanismo mais forte e confiável de controle do poder do governo. As fontes internas nos mais altos níveis do governo têm uma capacidade extraordinária, recursos extraordinários, amplo acesso à influência e ao monopólio da violência, no entanto, em última análise, há apenas uma figura que importa: o cidadão.
E estamos em maior número do que eles.
claudia martins
15/12/2016 - 22h44
Creio que nacionalismo é uma faca de dois gumes infelizmente…Mas acho fantástico quando uma pessoa sai desse meio e se eleva como fez Snowden, isso que faz a diferença, como diz Aristóteles “Sócrates é meu amigo, mas sou mais amigo da verdade” , então sempre penso antes de tudo somos Humanos… e talvez antes ainda de ser humanos temos que ser justos, isto é o máximo dos máximos.
Tudo que se passa é uma questão de justiça, sem essa de lado… simples e pura justiça.