Nem o Estadão, nem a Folha estão mais aguentando os destemperos histéricos de Gilmar Mendes. Acusar os outros com base no “ouvi falar” é demais. Ontem, o Estadão publicou um duro editorial contra o ministro. Hoje é a vez da Folha. Claro que ambos dão no ferro e na ferradura. A crítica é dura, embora sempre tentando calibrar a crítica a Gilmar com outra a Lula, mas o importante é que o bom senso começa a prevalecer sobre a onda de insanidade que engoliu a mídia durante os últimos dias.
No caso do Estadão, a crítica é particularmente dura porque acusa o ministro de querer minimizar o que seria uma infração ética de um ministro do STF: pegar carona em jatinhos pagos por terceiros.
Abaixo os dois textos citados.
De O Estado de S. Paulo
Até a divulgação do que teria sido a conversa entre o ex-presidente Lula e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), intermediada pelo seu ex-colega Nelson Jobim, havia só uma – e crucial – razão para desejar que finalmente começasse o julgamento dos envolvidos no escândalo do mensalão. Nada menos que cinco anos se passaram desde que a Corte acolheu a denúncia do então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, contra os cabeças, os operadores e beneficiários da compra do apoio de deputados ao governo Lula – e o risco de prescrição das penas a que viessem a ser condenados os 36 réus do processo evidentemente aumenta na razão direta da passagem do tempo. Sem falar que este ano se aposentam dois membros do Supremo e a escolha de seus substitutos pela presidente Dilma Rousseff se daria à sombra das especulações sobre os seus votos na hora do veredicto sobre os mensaleiros.
No entanto, desde o último fim de semana, quando Mendes apareceu na revista Veja acusando Lula de pressioná-lo no citado encontro para adiar o julgamento e de indicar que, em troca, impediria que a CPI do Cachoeira respingasse nele, pelo que seriam as suas relações com o senador Demóstenes Torres, parceiro do contraventor, dois outros motivos vieram a se agregar ao imperativo inicial de se levar o processo ao seu desfecho, com a presteza possível. O primeiro é óbvio: se o STF deixar de incluir o mensalão na sua agenda para os próximos meses, ainda que seja por alguma razão absolutamente legítima em matéria de procedimentos, será impossível remover da opinião pública a impressão desabonadora de que a Corte se curvou aos desejos do ex-presidente, tão cruamente manifestados, de acordo com o que saiu na revista. O segundo motivo para o Supremo Tribunal apressar os trâmites do caso – sem prejuízo do devido processo legal – também se relaciona com a preservação de sua integridade.
Com efeito, o STF não ficou imune à (tardia) iniciativa de Mendes de trazer a público o que teriam sido “as insinuações despropositadas” de Lula, nem ao torvelinho político levantado por suas afirmações, nem, principalmente, à destemperada entrevista convocada pelo magistrado, anteontem, numa dependência do tribunal. Tanto faz se as instituições fazem os homens ou se estes fazem as instituições, como os pensadores do poder discutem há uma eternidade. O fato é que, já não bastasse um ex-titular da Corte (e ex-colaborador de Lula) produzir relatos desencontrados sobre o que se passou no seu escritório e sobre por que se dispôs a abri-lo aos seus especiais convidados naqueles idos de abril; não bastasse o ministro do STF ter permanecido ali depois de ouvir as enormidades que diz ter ouvido; não bastasse Lula sugerir agora que ele mentiu, eis que, envergando a toga, Mendes o acusou de ser o irradiador de boatos construídos por “gângsteres, chantagistas, bandidos” para “melar” o julgamento do mensalão.
Uma nota austera e cabal teria sido – para o ministro e para o tribunal que integra – a melhor resposta aos rumores de que as suas relações com o senador à beira da cassação seriam impróprias, além de tangenciar o bicheiro unha e carne do político goiano. Anexados ao texto os comprovantes divulgados na entrevista de que ele não foi nem voltou de Berlim nas asas de Cachoeira, quando ali esteve em companhia de Demóstenes – a questão que Lula teria sacado para acuá-lo -, e o assunto morreria. Em vez disso, excedendo-se, fez um comentário que muitos podem considerar constrangedor para a mais alta instância do Judiciário. Falando dos dois voos que fez no País com um colega e uma juíza do Superior Tribunal de Justiça, em aviões fretados pelo senador, perguntou, retoricamente: “Vamos dizer que o Demóstenes me oferecesse uma carona num avião que ele tivesse. Teria algo de anormal?”.
Certa vez, ao apoiar a divulgação individualizada dos salários do funcionalismo, o atual titular do STF, Carlos Ayres Britto, observou: “É o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano”. No caso da magistratura, a conta inclui a recusa a convites que outros cidadãos podem aceitar com naturalidade.
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Na Folha:
Recato no Supremo
Excessos cometidos por ministros do STF nos últimos dias, após encontro de Lula com Gilmar, vêm confirmar a deterioração de padrões
O Supremo Tribunal Federal se compõe de 11 ministros, escolhidos entre cidadãos de notável saber jurídico -e reputação ilibada. Assim exige a Constituição.
Não há honra maior, para um jurista, que ser escolhido para integrar esse corpo de guardiões da Carta. O preço que lhes cabe por tal distinção é manter sem mancha o renome com que ali chegaram, pois de seu comportamento como ministros passa a nutrir-se o prestígio da própria corte.
É lamentável constatar que, ao longo da última década, o zelo para com essa obrigação vem decaindo paulatinamente. Nas últimas semanas, acentuou-se o descaso até o ponto de suscitar alarme.
E não se trata só do efeito das palavras e narrativas impensadas que emergiram nestes dias conturbados, com as entrevistas ocasionadas pelo encontro que o ministro Gilmar Mendes aceitou realizar com Luiz Inácio Lula da Silva no escritório de Nelson Jobim -três ex-presidentes, ressalte-se, um da República e dois do Supremo.
Muito já se falou e escreveu sobre a impropriedade da reunião. Impropriedade evidente, em face da conjuntura politicamente aquecida pela vizinhança da CPI do caso Cachoeira, centrada na figura de um senador com que o ministro Gilmar mantinha relacionamento próximo o bastante para aceitar caronas de avião. E, também, do julgamento, pelo STF, do mensalão, na negação do qual Lula concentra sua atividade de ex-presidente (embora em reunião ministerial de 12 de agosto de 2005 tenha pedido desculpas pelo que então chamava de “práticas inaceitáveis”).
Erraram Gilmar, Jobim e Lula, concluíram muitos. Mais que repetir o que está claro como o dia, cabe destacar que o padrão de excessos verbais e de comportamento não é novo. Há coisa de um mês, o ministro Cezar Peluso, que deixava a presidência do STF, criticou o colega Joaquim Barbosa em entrevista; este retorquiu, também pela imprensa, com adjetivos como “caipira”, “tirano” e “corporativo”.
O STF já exibiu até bate-bocas em plenário. Em pelo menos duas ocasiões (2007 e 2009), altercaram-se os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes. Há quem veja aí o produto da combinação de personalidades ególatras com a transmissão de sessões pela TV Justiça.
A transparência dos trabalhos do STF, no entanto, é algo que veio para ficar. Não é ela que precisa ser contida, mas os impulsos e costumes dos próprios ministros.
Recomenda-se começar com algumas regras básicas: não se pronunciar sobre casos por julgar; restringir contatos com políticos a cerimônias públicas; receber partes e advogados só no recinto do STF, com divulgação prévia da agenda.
Entre as prerrogativas dos ministros, em sua independência, não está a de macular a reputação da corte a que servem.
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