Essas lúmpen burguesias trazem mais crises à crise já conhecida, apesar das manipulações midiáticas que tentam demonstrar o contrário
por Jorge Beinstein, na Carta Maior / Tradução: Victor Farinelli
Com a chegada de Mauricio Macri à presidência da Argentina, se desatou, em alguns círculos acadêmicos argentinos, a reflexão em torno do “modelo econômico” que a direita tenta impor. Se tratou não só de buscar perfis específicos e homogêneos de currículo para os novos ministros, secretários de Estado e outros altos funcionários, como também de uma avalanche de decretos que se precipitaram sobre o país desde o primeiro dia de governo. Buscar coerência estratégica a esse conjunto foi uma tarefa árdua, que chocava com contradições a cada passo, obrigando a descartar hipóteses, sem que se pudesse chegar a um esquema minimamente rigoroso. A maior delas foi provavelmente a flagrante contradição entre medidas que destroem o mercado interno para favorecer uma suposta onda exportadora, evidentemente inviável devido à recuperação da economia global. Outra medida contestável é o aumento das taxas de juros, que comprimem o consumo e os investimentos, esperando uma ilusória chegada de fundos provenientes de um sistema financeiro internacional em crise, e que só pode render a configuração de certas “bicicletas especulativas”.
Alguns optaram por resolver o tema adotando definições abstratas pouco específicas e pouco operativas (“modelo favorável ao grande capital”, “restauração neoliberal”, etc.), outros decidiram seguir o estudo, mas cada vez que chegavam a uma conclusão satisfatória aparecia um novo fato que derrubava o edifício intelectual construído. E, finalmente, também há uns poucos, entre os quais me encontro, que chegamos à conclusão de que buscar uma coerência estratégica geral nessas decisões não é uma tarefa fácil, embora tampouco difícil, já que é simplesmente impossível. A chegada da direita ao governo não significa a substituição do modelo anterior (desenvolvimentista, neokeynesiano ou como se queira qualificar) por um novo modelo (elitista) de desenvolvimento, mas simplesmente pelo início de um gigantesco saque, onde cada bando de saqueadores obtém o botim que pode no menor tempo possível, e, depois de reunir o que foi possível, tenta conseguir mais, torcendo ainda mais as vítimas e, se também é necessário, inclusive dos seus concorrentes. A anunciada liberdade do mercado não significou a instalação de uma nova ordem, mas sim a de um sistema de forças entrópicas, o país burguês não realizou uma reconversão elitista-exportadora, mas sim uma submersão a um gigantesco processo destrutivo.
Se estudarmos os objetivos econômicos reais de outras direitas latino-americanas como a da Venezuela, do Equador ou do Brasil, encontraremos similitudes surpreendentes com o caso argentino, incoerências de todos os tipos, autismos desenfrenados que ignoram o contexto global, assim como as consequências desestabilizadoras de suas ações ou “projetos” geradores de destruições sociais desmesuradas, e possíveis efeitos bumerangue contra a própria direita. É evidente que o curto-prazismo e a satisfação de apetites parciais dominam el cenário.
Na Década de 80, mas sobretudo na seguindo, nos Anos 90, o discurso neoliberal desbordava otimismo, o “fantasma comunista” havia implodido e o planeta estava à disposição da única superpotência restante: os Estados Unidos. O livre mercado aparecia com sua imagem triunfalista, prometendo prosperidade para todos. Como sabemos, essa avalanche não era portadora de prosperidade, mas sim de especulação financeira, enquanto as taxas de crescimento econômico real global seguiam caindo tendencialmente desde os Anos 70 (e até a atualidade), a massa financeira começou a se expandir em progressão geométrica. Estavam sendo produzidas mudanças de fundo no sistema, mutações nos seus principais protagonistas, que obrigaram a uma nova conceitualização. No comando da nave capitalista global, começavam a ser substituídos os burgueses titulares de empresas produtoras de objetos úteis, inúteis ou abertamente nocivos, e sua corte de engenheiros industriais, militares uniformados e políticos solenes, para dar lugar aos especuladores financeiros, palhaços e mercenários sem piedade. A criminalidade anterior, medianamente estruturada, foi trocada por um sistema caótico muito mais letal. Se retirava o produtivismo keynesiano (herdeiro do velho produtivismo liberal) e começava a se instalar o parasitismo neoliberal.
O conceito de lúmpen burguesia
Existem antecedentes desse conceito, por exemplo em Marx, quando descrevia a monarquia orleanista da França (1830-1848) como um sistema sob a dominação da aristocracia financeira, mostrando que “nas cúpulas da sociedade burguesa se propagou a inconsequência em nome da satisfação dos apetites mais insanos e desordenados, que a cada passo chocavam com as próprias leis da burguesia. Inconsequência que, pela lei natural, vai buscar sua satisfação na riqueza procedente do jogo, o prazer dos que se tornam conscientemente crápulas, em esquemas onde o dinheiro o sangue fluem e confluem. A aristocracia financeira, tanto em seus métodos de acumulação quanto em seus prazeres, não é mais que o renascimento do lúmpen proletariado nas altas cúpulas da sociedade burguesa”. A aristocracia financeira aparecia nesse enfoque claramente diferenciada da burguesia industrial, classe exploradora inserta no processo produtivo. Se tratava, segundo Marx, de um setor instalado no topo da sociedade, que conseguia enriquecer “não graças à produção, mas sim pelo escamotear da riqueza alheia já criada”. Coloquemos essa descrição dentro do contexto do Século XIX europeu ocidental, marcado pelo ascenso do capitalismo industrial, onde essa aristocracia, navegando entre a usura e o saqueamento, aparecia como uma irrupção historicamente anômala, destinada a ser derrubada cedo ou tarde pelo avanço da modernidade. Marx afirmava que, durante o final do ciclo orleanista, “a burguesia industrial via seus interesses em perigo, a pequena burguesia estava moralmente indignada, a imaginação popular se sublevava. Paris estava inundada de libelos. `A dinastia dos Rothschild´, `os usureiros´, `os reis da época´, etc. Neles, se denunciava e anatematizava, com mais ou menos engenho, a dominação da aristocracia financeira”.
É notável ver os Rothschild, reconhecido clã de banqueiros de origem judeu-alemã, aparecendo como “usureiros”, imagem claramente pré-capitalista, durante as décadas que se seguiram e até a I Guerra Mundial, que simbolizou o capitalismo mais sofisticado e moderno. Karl Polanyi os idealizava como peça chave da Haute Finance europeia instrumento decisivo, segundo ele, no desenvolvimento equilibrado do capitalismo liberal, cumprindo uma função harmonizadora, se colocando por cima dos nacionalismos, emaranhando compromissos e negócios que atravessavam as fronteiras estatais, acalmando assim as disputas inter imperialistas. Descrevendo a Europa das últimas décadas do Século XIX, Polanyi explicava que: “os Rothschild no estavam sujeitos a um governo – como família, incorporavam o princípio abstrato de internacionalismo –, sua lealdade se entregava a uma firma, cujo crédito se havia tornado a única conexão supranacional entre o governo político e o esforço industrial, numa economia mundial que crescia com rapidez”.
O que para Marx era uma anomalia, um resto degenerado do passado, para Polanyi era uma peça chave da “Pax Europeia”, do progresso liberal do Ocidente, quebrado em 1914.
A permanência dos Rothschild e de seus colegas banqueiros durante todo o longo ciclo do avanço e da consolidação industrial da Europa demonstrou que não se tratava de uma anomalia, mas sim de um componente parasitário indissociável (embora não hegemônico nesse ciclo) da reprodução capitalista. Por outra parte, o estampido de 1914 e o que se seguiu a ele desmentiu a imagem de cúpula harmonizadora, estabelecendo acordos, negócios que impunham equilíbrios. Seus refinamentos e seu aspecto “pacificador” formavam parte de um jogo duplo perigoso, mas bastante rentável: por um lado estimulavam, de forma discreta, todo tipo de aventuras coloniais e ambições nacionalistas – como, por exemplo as corridas armamentistas, que passavam da conta rapidamente – e por outro as acalmavam, quando ameaçavam produzir desastres. Mas essa sucessão de estimulantes e calmantes aplicadas aos monstros que absorviam drogas cada vez mais fortes terminou como tinha que terminar: com um gigantesco conflito, a I Guerra Mundial.
O conceito de “lúmpen burguesia” aparece pela primeira vez no final dos Anos 50, através de alguns textos de “Ernest Germain”, pseudônimo usado por Ernest Mandel, fazendo referência à burguesia do Brasil, que o autor considerava uma classe semicolonial, “atrasada”, não completamente “burguesa” (no sentido moderno ocidental do termo). Foi retomado, mais adiante, nos Anos 60-70, por André Gunder Frank, como uma generalização das burguesias latino-americanas. Tanto Mandel quanto Gunder Frank estabeleciam a diferença entre as burguesias centrais: estruturadas, imperialistas, tecnologicamente sofisticadas, e as burguesias periféricas, subdesenvolvidas, semicoloniais, caóticas, enfim: lúmpen burguesas (burguesias degradadas).
Mas esse esquema foi desmentido pela realidade a partir dos Anos 70, com o declínio do keynesianismo produtivista e seus acompanhantes reguladores e integradores. Se desatou um processo de transnacionalização e financeirização do capitalismo global, que nos Anos 90, com a implosão da União Soviética e a aceleração da entrada da China na economia de mercado, adquiriu um ritmo desenfreado e uma extensão planetária. Enquanto a economia produtiva se desacelerava, crescia exponencialmente a especulação financeira, e um de sus componentes principais, os produtos financeiros derivados, equivaliam a duas vezes o Produto Bruto Mundial de 2000 – e em 2008 representavam doze vezes esse mesmo Produto Bruto Mundial. Por sua parte, a massa financeira global (derivados e outros papéis) equivalia, nesse momento, a 20 vezes o Produto Bruto Mundial. Hegemonia financeira avassaladora, que transformou completamente a natureza das elites econômicas do planeta, a desregulação (ou seja, a violação crescente de todas as normas), o curto-prazismo, as dinâmicas predatórias, foram os comportamentos dominantes, que produziram concentração de renda de forma veloz, tanto nos países centrais como nos periféricos, marginações sociais, deterioração institucional (incluindo as crises de representatividade).
Tudo isso foi se agravando desde a crise financeira de 2008, confirmando a existência de uma lúmpen burguesia global dominante (resultado da decadência sistêmica geral), cujos hábitos de especulação e saque se relacionam com um afã militarista que potencia essa irracionalidade. Os Estados Unidos se encontram no centro dessa perigosa escalada militar, por exemplo, no Leste da Europa, no Oriente Médio e no Leste da Ásia, acompanhada por claros sintomas de descontrole financeiro, enquanto o Deustche Bank acumula atualmente cerca de 75 bilhões de dólares em produtos financeiros derivados, papéis altamente voláteis, que representavam, em 2015, cerca de 22 vezes o Produto Interno Bruto da Alemanha, e 4,6 vezes o de toda a União Europeia. Do outro lado do Atlântico, cinco grandes bancos norte-americanos (Citigroup, JP Morgan, Goldman Sachs, Bank of America e Morgan Stanley) acumulavam derivados que somam cerca de 250 bilhões de dólares, equivalentes a 3,4 vezes o Produto Bruto Mundial, ou 14 vezes o Produto Interno Bruto dos Estados Unidos. Imaginemos as consequências econômicas globais do muito provável desabamento dessa massa de papéis, enquanto os grandes lobos de Wall Street jogam pôquer alegremente, admirado pelas pequenas aves carniceiras da periferia, que incitadas a desejar essa “abertura ao mundo”, sonhando em participar desse festim.
América Latina
A América Latina não ficou fora dessa mutação de carácter global. Existe um consenso bastante amplo em quanto à configuração das elites econômicas latino-americanas durante as duas primeiras etapas da “modernização” regional (ou seja, sua integração plena ao capitalismo), entre o final do Século XIX e meados do Século XX: a elite agro-mineira exportadora, com suas correspondentes “oligarquias”, seguida pelo chamado período (industrializante) de substituição de importações com a emergência de burguesias industriais locais. Especificidades nacionais de distinto tipo mostram casos que vão desde a inexistência da “segunda etapa” em pequenos países quase sem indústrias até desenvolvimentos industriais significativos como no Brasil, na Argentina ou no México, com burguesias e empresas estatais poderosas. Desde prolongações industriais das velhas oligarquias até as irrupções de classes novas, adventos não completamente admitidos pelas velhas elites, até as integrações de negócios onde os velhos sobrenomes se mesclam com os dos recém chegados.
Entre os Anos 60 e 70, o processo de industrialização foi sendo encurralado pela debilidade dos mercados internos e sua dependência tecnológica e das divisas proporcionadas pelas exportações primárias tradicionais, avassalado por um capitalismo global que impôs ajustes e destruiu ou se apoderou de tecidos produtivos locais. A transnacionalização e financeirização globais se expressaram na região como o desenvolvimento do subdesenvolvimento, firmas ocidentais que passaram a dominar áreas industriais decisivas, enquanto bancos europeus e norte-americanos faziam o mesmo com o setor financeiro, ao mesmo tempo se agudizava a exclusão social urbana e rural. A chamada etapa de industrialização por substituição de importações havia significado o fortalecimento do Estado, e, em vários casos importantes, a “nacionalização” de uma porção significativa das elites dominantes, com a emergência de burguesias industriais nacionais instáveis, mas isso começou a ser revertido desde esses Anos 60-70, e o processo de colonização se acelerou nos Anos 90.
O que agora constatamos são combinações entre assentamentos de empresas transnacionais dominantes na banca, no comércio, os meios de comunicação, a indústria, etc, rodeados por círculos multiformes de burgueses locais completamente transnacionalizados em seus níveis mais altos rodeados, por sua vez, por setores intermediários de diferentes pesos. Os grupos locais se caracterizam por uma dinâmica de tipo “financeiro”, combinando todos os tipos de negócios legais, semilegais ou abertamente ilegais, desde a indústria ou o agro business até o narcotráfico, passando por operações especulativas ou comerciais mais ou menos opacas. É possível investigar a uma grande empresa industrial mexicana, brasileira ou argentina, e descobrir laços com negócios turvos, uso de paraísos fiscais, ou com uma importante empresa de cereais realizando investimentos imobiliários em esquemas de lavagem de dinheiro proveniente de uma rede narco, que por sua vez está associada a um grande grupo midiático. As elites econômicas latino-americanas aparecem como parte integrante da lúmpen burguesia global. São sua sombra periférica, nem mais nem menos degradada que seus paradigmas internacionais. Muito por baixo de todo esse universo, sobrevivem os pequenos e médios empresários industriais, agrícolas ou pecuários, que não formam parte das elites, mas que conseguem ter acesso ao elevador da prosperidade, e são inevitavelmente capturados pela cultura dos negócios confusos. Se não o fazem, na melhor das hipóteses, se estancam, ou começam a trilhar o caminho da ruína.
Embora o estudo dessas elites nos leva a descobrir rapidamente que sua dinâmica puramente “econômica” só existe em nossa imaginação. Um negócio imobiliário de grande envergadura certamente requer conexões judiciais, políticas, midiáticas, etc. Por sua parte, para chegar aos níveis mais altos da máfia judiciária é necessário dispor de boas conexões com os círculos de negócios, políticos, midiáticos, etc. E ter sucesso na carreira política requer fundos e coberturas midiáticas, e judiciárias. Em suma, se trata, na prática de um complexo conjunto de articulações mafiosas, grupos de poder transetoriais vinculados a, mais ou menos subordinados a (ou formando parte de) tramas extrarregionais, através de canais de diversos tipos: o aparato de inteligência dos Estados Unidos, um mega banco ocidental, uma rede clandestina de negócios, alguma empresa industrial transnacional, etc.
No começo do Século XX, as elites latino-americanas formavam parte de uma divisão internacional do trabalho, onde a periferia agropecuária-minera exportadora se integrava colonialmente com os capitalismos centrais industrializados. Naquele tempo, a Inglaterra era o polo dominante. Logo, o século foi avançando e foram transcorrendo as crises, as guerras, as revoluções e contrarrevoluções, keynesianismos, fascismos, socialismos…
Porém, no final desse século, todo esse mundo já estava enterrado, com o triunfo do neoliberalismo e do capitalismo globalizado. Quando este entrou em crise na América Latina, emergiram e se instalaram as experiências progressistas que tentaram resolver as crises de governabilidade com políticas de inclusão social a sistemas que eram mais ou menos reformados, buscando fazê-los mais produtivos, menos submetidos aos Estados Unidos, mais igualitários e democráticos. As elites dominantes se tornaram histéricas. Embora não tenham sido seriamente deslocadas, perdiam posições de poder, negócios suculentos escapavam entre as suas mãos e sua agressividade foi aumentando na medida em que a crise global dificultava suas operações. Por sua parte, os Estados Unidos, em retrocesso geopolítico global, acentuou suas pressões sobre a región, tentando sua recolonização. Ao começar o ano de 2016, os progressismos se encontram encurralados, como no Brasil e na Venezuela, ou derrubados, como no Paraguai e na Argentina. Obama esfrega as mãos e seus abutres se lançam ao ataque. Os capriles e macris cantam vitória, convencidos de que estamos retornando à “normalidade” (colonial), mas não é assim: na verdade, estamos ingressando numa nova etapa histórica, de duração incerta, marcada por uma crise deflacionaria global, que vai se agravando, e vem acompanhada por sinais alarmantes de guerra.
As elites dominantes locais não são o sujeito de uma nova governabilidade, mas sim o objeto de um processo de decadência que as desborda. Pior ainda, essas lúmpen burguesias trazem mais crises à crise já conhecida, apesar das manipulações midiáticas que tentam demonstrar o contrário, acreditando ter muito poder, mas sem perceber que não são mais que instrumentos cegos de um futuro sombrio. Embora o declínio real do sistema abra a possibilidade de um renascimento popular, seguramente difícil, doloroso, não escrito em manuais, nem seguindo rotas bem pavimentadas e previsíveis.
Lucas Cello
27/05/2016 - 11h16
Eu não entendo uma coisa. Qdo o autor fala nos PIBs, os números são absurdamente baixos. Por exemplo: ele cita 250 bilhões de dólares e diz que esse valor é equivalente a mais de 3 vezes o PIB americano. São números sem sentido algum. O PIB americano vai pra casa das dezenas de trilhões de dólares; aliás, msm o PIB brasileiro ultrapassa os dois trilhões de dólares.
Há erro na tradução ou o erro é do autor?
LL Vanderlei
24/05/2016 - 11h40
Muito bom. Publiquem mais artigos desse nível. Mas convém uma revisão para reduzir os equívocos de tradução.