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Perder, ganhar, viver!

Diante da tristeza e vexame causados pelas duas últimas derrotas da seleção, esta crônica de Drummond andou circulando bastante pelos blogs. Acabou que eu só a reli ontem. De fato, é um texto primoroso, que permanece incrivelmente atual. Por isso, reproduzo aqui para incentivar que mais pessoas possam ler. * Perder, Ganhar, Viver Carlos Drummond […]

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Diante da tristeza e vexame causados pelas duas últimas derrotas da seleção, esta crônica de Drummond andou circulando bastante pelos blogs. Acabou que eu só a reli ontem. De fato, é um texto primoroso, que permanece incrivelmente atual. Por isso, reproduzo aqui para incentivar que mais pessoas possam ler.

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Perder, Ganhar, Viver

Carlos Drummond de Andrade (JB, 7/7/1982)

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…

Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.

Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.

Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.

E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Guilherme Scalzilli

15/07/2014 - 11h23

Depois do vexame

Enfim ocorreu a hecatombe da seleção brasileira de futebol, longamente gestada nas entranhas putrefeitas da cartolagem. Era questão de tempo: um dia o pragmatismo tosco, a arrogância e a mediocridade chegariam a uma combinação explosiva que a sorte, a arbitragem e o talento individual seriam incapazes de neutralizar.

Faltava o desequilíbrio emocional para inflamar esse caldo melífluo. O patriotismo histérico dos jogadores já não parecia alvissareiro, principalmente em meio à tola “obrigação” de vencer o título. A vitimização de Neymar e a falta de comando da comissão técnica terminaram de ruir a frágil estabilidade do elenco.

A crônica esportiva agora fala em “mudar tudo”, em “revolucionar” a administração futebolística do país, em “bom senso”. Mas são palavras ocas. Ninguém aponta soluções práticas ou medidas pontuais e viáveis que de fato ajudem a reformular o sistema. Há apenas discursos genéricos e propostas paliativas que seguem os interesses dos grandes times e dos veículos de comunicação, os maiores apoiadores de José Maria Marin.

Mudanças reais no futebol brasileiro só viriam com a distribuição igualitária de verbas televisivas, limitações do poder das emissoras, restrições ao assédio de jovens atletas, regulamentação da atividade dos empresários, projetos nacionais de apoio a aspirantes, fortalecimento dos times interioranos, profissionalização da arbitragem, moralização dos tribunais desportivos, mecanismos de controle das gestões da CBF e dos clubes.

Todas essas mudanças passam por um papel mais ativo do Estado. Nascem de uma decisão política de tratar o esporte como área de interesse público, e não um feudo particular de castas inatingíveis que funciona por regras próprias.

O medinho da imprensa ao enfrentar o assunto não tem nada a ver com as ameaças da FIFA, que jamais arriscará a desmoralização de punir um pentacampeão mundial, sede da mais festejada Copa da história. O fantasma do intervencionismo estatal oculta a tentativa de manter os privilégios do esquema vexatório. Da mídia não virá qualquer iniciativa moralizadora do futebol brasileiro.

http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com.br/

O Cafezinho

14/07/2014 - 00h44

Sim, Marceli Soares Pereira Duarte. Esse foi publicado na capa do JB em 1982.

Marceli Soares Pereira Duarte

13/07/2014 - 12h55

Tem certeza da autoria desse texto?

Suely Marques Rocha

13/07/2014 - 12h44

Só acho que comparar aquela Seleção mágica de 82 com essa Selecinha é forçar muito a barra, né??? Perdemos merecidamente, aliás, chegamos longe demais, simples assim… Agora, o que merece ser louvado foi a Festa da Copa … No mais, é patriotada, e nós não precisamos disso… “A César o que é de César”… Simples assim, e bora torcer pra que o encerramento desse evento louvável seja primoroso…

JuNinho da Adelaide

13/07/2014 - 09h32

Miguel, bom dia! Dê notícias do processo da Globo!

    Miguel do Rosário

    13/07/2014 - 09h42

    Oi Juninho, não posso falar muito sobre isso. Vocês terão que ter um pouco de paciência.

      JuNinho da Adelaide

      13/07/2014 - 10h03

      Ok Miguel. Se puder ainda que pouco, dar alguma pista, melhor. Se nem isso, respeitamos, e muito. Paciência de Jó. Cuidado e boa sorte! Abs.

      Marcelo

      13/07/2014 - 11h08

      O processo precisa ser devolvido imediatamente à Receita Federal, vocês correm risco de sofrer busca e apreensão.

        Miguel do Rosário

        13/07/2014 - 11h43

        Não está com a gente. Mas quando tivermos acesso à integra, iremos imediatamente entregar às autoridades.


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