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Transcrição revisada da entrevista de Elias Jabbour para o programa Reconversa, de Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde

O vídeo da entrevista pode ser assistido aqui: 00:00:11 Reinaldo Azevedo Estamos aqui com mais uma edição do Reconversa, eu e o fabuloso Walfrido Warde. 00:00:17 Walfrido Warde Fabulous. Eu acho isso tão bonito em inglês. Você poderia me chamar de “fabuloso” em inglês? 00:00:21 Reinaldo Azevedo Fabulous Walfrido Warde, para entrevistar… Os nossos internautas, […]

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O vídeo da entrevista pode ser assistido aqui:

00:00:11 Reinaldo Azevedo
Estamos aqui com mais uma edição do Reconversa, eu e o fabuloso Walfrido Warde.

00:00:17 Walfrido Warde
Fabulous. Eu acho isso tão bonito em inglês. Você poderia me chamar de “fabuloso” em inglês?

00:00:21 Reinaldo Azevedo
Fabulous Walfrido Warde, para entrevistar… Os nossos internautas, aqueles que se inscrevem no nosso canal, estão pedindo o Elias Marco Kalil Jabbour — o Elias Jabbour — há muito tempo aqui no programa.

00:00:38 Walfrido Warde
E os entrevistados também.

00:00:40 Reinaldo Azevedo
E os entrevistados também. E chegou a hora. Estamos aqui com Elias Jabbour.

00:00:46 Walfrido Warde
Seja bem-vindo.

00:00:47 Reinaldo Azevedo
Ele é formado em Geografia, com especialização em Geografia Humana, tem mestrado e doutorado também em Geografia, e depois se voltou aos estudos de Economia.

Virou um estudioso da China, trabalhou na China — dizem até que talvez seja um agente chinês. Dizem que, por baixo dele, quem está presente é o companheiro Xi. Será que é assim mesmo?

Vamos conversar com ele, falar sobre o mundo, sobre a China, sobre sua leitura dessa ordem em transição.

E claro, vamos falar também sobre a economia brasileira.
Tem livros que vamos mostrar aqui.

Hoje, ele é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, da Prefeitura do Rio de Janeiro, comandada pelo nosso amigo Eduardo Paes.

É também professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, além de integrar o programa de pós-graduação em Relações Internacionais da UERJ.

É isso. Com mestrado e doutorado pela USP. O rapaz estuda!

É um prazer tê-lo aqui, obrigado por ter aceitado o nosso convite.

00:01:57 Elias Jabbour
O prazer é meu, é uma honra e um sonho. Desde que conheci o Reinaldo Azevedo — e logo em seguida o doutor Walfrido — eu sempre tive esse desejo de vir aqui um dia.

Achava que nunca ia realizar, né? E acabou acontecendo!

00:02:11 Walfrido Warde
Então eu tô aqui… Não me ofende, só Walfrido, por favor.

00:02:14 Elias Jabbour
O nosso Walfrido.

00:02:15 Walfrido Warde
Seu colega aqui.

00:02:17 Elias Jabbour
Isso! Então hoje eu tô aqui feliz, até com certa emoção… Ao lado de corinthianos — o que é muito importante.

00:02:23 Reinaldo Azevedo
Muito bem! Uma mesa de corinthianos com uma diferença: eu sou minoria aqui. O Líbano está representado por vocês dois, e eu… sei lá de onde vim. Sou meio vira-lata.

00:02:36 Walfrido Warde
Você é de Dois Córregos. Cidade-Estado.

00:02:39 Reinaldo Azevedo
Cidade-Estado, Cidade-Estado.

Elias, sempre começamos pedindo que o convidado faça uma síntese da sua trajetória — o que chamamos de “Wikipédia pessoal”.

Que síntese você faz da sua vida, da sua caminhada, até chegar ao ponto alto da biografia, que é sentar a esta mesa?

00:03:04 Walfrido Warde
Esta mesa é de mármore.

00:03:06 Elias Jabbour
Eu sou um brasileiro, filho de um libanês com uma paraibana. E quando eu digo brasileiro, é porque os primeiros valores pátrios que me foram transmitidos vieram do meu pai. Ele veio do Líbano, encontrou um refúgio aqui no Brasil e cultivou um amor imenso por este país. E passou isso pra mim. É um sentimento que eu preservo até hoje.

Inclusive, eu me tornei marxista muito por conta do meu nacionalismo. Uma coisa bem terceiro-mundista, né? Meu pai também me trouxe outro sentimento. Ele chegou ao Brasil em 1954, justamente no ano do quarto centenário da cidade de São Paulo e do Campeonato Paulista daquele ano. O Corinthians foi campeão, e, com isso, ele também “foi campeão”. E me transmitiu essa loucura pelo Corinthians.

Eu não consigo… Olha, eu passei um ano e sete meses na China, durante o período em que a Dilma Rousseff assumiu a presidência do Banco dos Brics. E mesmo lá, de domingo pra segunda, às três da manhã, eu estava assistindo aos jogos. Chegava no banco no outro dia acabado, cansado… mas é a vida. Eu não conseguia ficar sem ver o jogo.

Ah, e eu sou geógrafo, formado pela USP.

00:04:12 Walfrido Warde
Playback não existia pra você.

00:04:14 Elias Jabbour
Não.

00:04:14 Walfrido Warde
Tinha que assistir ao vivo.

00:04:15 Elias Jabbour
Tinha, tinha. Não conseguia. Eu fiz meu mestrado de doutorado de geografia na USP. Desde a minha adolescência, adolescência assim, 17 anos, desde que eu entrei na universidade. Eu coloquei na minha cabeça uma pergunta que permeia a minha trajetória de pesquisa até hoje, que é se é possível uma sociedade orientada ao socialismo, ou uma sociedade superior ao capitalismo, ou seja, se essa tipologia, essa formologia histórica é possível, baseado cientificamente.

Uma coisa é lutar pela igualdade, relacionar o socialismo com igualdade, com o mundo de pantera cor-de-rosa, o mundo de paz e justiça. Outra coisa é saber se a ciência corrobora essa hipótese. Então, essa é a pergunta que eu tento responder desde 94, 95, com mais de 30 anos estudando na China.

E, evidentemente, pelas mãos do professor Milton Santos, eu comecei a estudar China. Pari passo, eu milito no Partido Comunista do Brasil, no PCdoB, desde 1991. Ainda hoje. Ainda hoje. Eu sou membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. É uma das honras… As pessoas me xingam de comunista, enfim, eu sou muito xingado.

00:05:24 Reinaldo Azevedo
Comunista!

00:05:26 Elias Jabbour
E pode continuar me xingando porque é um orgulho que eu tenho dessa condição e ser do PCdoB também há 34 anos e hoje da Direção Nacional há 10 anos. Alcancei na minha vida alguma coisa através de quase sete livros publicados. Esse aqui é o sexto, o último, que é um best-seller.

00:05:41 Reinaldo Azevedo
Me dá os livros aqui.

00:05:42 Elias Jabbour
É um pra cada um, tá aí as dedicatórias, né?

00:05:44 Walfrido Warde
Deixa eu ver qual que é o seu. Isso aqui é infundível. Rapaz…

00:05:52 Elias Jabbour
É, minha letra é bem horrorosa.

00:05:54 Walfrido Warde
Tá em chinês isso aqui? Ah, esse sou eu.

00:05:59 Reinaldo Azevedo
É o rei.

00:05:59 Walfrido Warde
Eu sei Walfrido em chinês.

00:06:00 Reinaldo Azevedo
Sabe por que me chamou de rei? Esse livro aí…

00:06:03 Elias Jabbour
Esse é o meu sexto livro. E é um livro que já virou um best-seller, com 32 mil cópias vendidas.

00:06:09 Reinaldo Azevedo
Puxa vida.

00:06:10 Elias Jabbour
Ganhei o prêmio de melhor livro escrito por um estrangeiro, concedido pelos chineses. E agora, neste ano, vai sair o meu sétimo livro. É uma obra que escrevi ao longo de 16 finais de semana, durante minha última passagem pela China, onde passei um ano e sete meses. Nesse período, percorri o país inteiro. Esse livro representa mais um passo na consolidação de uma teoria do socialismo para compreender a realidade chinesa — que, por si só, acaba também se tornando uma teoria do socialismo em sentido mais amplo. Podemos discutir isso mais adiante.

Além disso, escrevi 70 artigos acadêmicos e mais de 100 artigos de opinião, todos envolvendo China e Brasil. Entre os meus coautores, tenho a honra de citar meu mestre, Luiz Gonzaga Belluzzo, uma figura que levo comigo, que já esteve aqui, inclusive. Também o Alberto Gabrielli, com quem escrevi um dos livros — ele infelizmente faleceu.

Minha vida tomou outro rumo a partir de 2014. Passei em um concurso para professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Pode parecer curioso — Geografia e Ciências Econômicas, né? — mas durante minha graduação em Geografia, eu coloquei uma coisa na cabeça: queria descobrir qual era o “DNA” de uma sociedade. Me fazia essa pergunta: como se identifica o DNA de uma sociedade?

Foi então que o professor Milton Santos me disse: “O DNA da sociedade é o processo de produção de mercadorias.” A partir daí, entendi que, para responder à minha pergunta, eu teria que compreender profundamente esse processo. Então, comecei a estudar os clássicos da economia: Marx, Smith, Ricardo. Depois os neoclássicos, os desenvolvimentistas latino-americanos, os anglo-saxões, os monetaristas da Escola Austríaca… toda essa pleiade de autores. E, assim, acabei migrando para a economia política.
Hoje, sou professor da cadeira de Teoria e Política do Planejamento Econômico na UERJ. E, nos últimos dois anos, atuei como consultor sênior do Novo Banco de Desenvolvimento — o Banco dos Brics — ao lado da presidenta Dilma Rousseff. Voltei para o Brasil no fim do ano passado. Logo em seguida, assumi uma função no primeiro escalão do governo Eduardo Paes, no Rio de Janeiro.

Só para esclarecer: não troquei a presidenta Dilma pelo prefeito Eduardo Paes. Isso virou até meme, mas não é verdade. Minha volta ao Brasil já estava acertada com a presidenta, por questões familiares e também por entender que minha missão na China estava cumprida.

Acabei entrando no governo do Eduardo Paes com muito orgulho. Tenho grande admiração por ele, por vários motivos que posso explicar depois. Estou atualmente no Instituto Pereira Passos, um instituto de urbanismo que o Eduardo quer transformar em um think tank para pensar o futuro do Rio — para os próximos 10, 20, 30, 40 anos.

Aceitei esse desafio porque acredito que vai dar certo. Tenho tanto orgulho de ter trabalhado com a presidenta Dilma Rousseff quanto tenho agora em estar ao lado do prefeito Eduardo Paes. Esse sou eu. Esse é o Elias.

00:08:58 Reinaldo Azevedo
Querido Elias, vamos lá, vamos começar aqui. Por que é que a China, é socialista. Por que não cabe à China a classificação de um capitalismo de Estado? Quando se pensa o modelo chinês, existe uma classe trabalhadora organizada, existe uma Os marxistas não gostariam da palavra, mas você vai entender. Existe uma metafísica operária, da classe operária, que está presente naquele Estado e que orienta as escolhas daquele Estado. O que a gente tem hoje num país que é o segundo país em número de bilionários do mundo, que tirou da miséria 700 milhões de pessoas em bem pouco tempo, com, me parece, economia de mercado. Por que se diz que aquilo é socialismo?

00:10:09 Elias Jabbour

O capitalismo não se realiza apenas como uma forma histórica: ele só se concretiza quando os capitalistas alcançam o poder político. É nesse contexto que Cromwell corta a cabeça do rei na Inglaterra. A partir dali, tem início um ciclo de mais de cem anos de reformas institucionais que criam as condições para as Leis dos Cercamentos e para a tomada do poder pela burguesia. Ou seja, não existe capitalismo sem capitalistas no poder.

É justamente aí que começa a diferença no caso da China. Os capitalistas não estão no poder na China. Quem está no poder é um bloco histórico liderado pelo Partido Comunista e seus aliados — a chamada frente patriótica, que chega ao poder em 1949 com a missão de conduzir o país rumo à construção do socialismo e, mais adiante, do comunismo.

Na China, portanto, existem capitalistas, sim — bilionários, inclusive —, mas vale lembrar que, nos últimos cinco anos, metade desses bilionários e milionários deixaram o país, em consequência das políticas adotadas por Xi Jinping. Esse é um ponto fundamental que diferencia a China de qualquer outra formação histórica contemporânea, como as dos Estados Unidos, Alemanha, Japão ou Coreia do Sul: lá, os capitalistas estão no poder; na China, não.

Ou seja, não existe capitalismo sem capitalistas no poder.

Outro ponto importante: falar em “capitalismo de Estado” é um pleonasmo. A moeda é uma criação estatal. O mercado e suas instituições são construções estatais. O próprio capitalismo, em última instância, é uma criação do Estado. Portanto, “capitalismo de Estado” é uma redundância — e, além disso, não se sustenta como conceito, categoria ou noção dentro de uma classificação mais rigorosa, como a hegeliana.

Essa expressão, “capitalismo de Estado”, soa até estranha para mim. Ainda que Lenin tenha trabalhado com essa ideia, considero que, nesse ponto, ele se equivocou. Claro, cem anos depois é mais fácil dizer isso. Mas o fato é que, ao empregar essa noção, Lenin acabou reforçando uma visão etapista do socialismo, como se fosse uma transição obrigatória a partir de um suposto “capitalismo de Estado”. Nesse aspecto, eu discordo dele. Concordo em outros pontos, mas não nesse, relacionado à transição socialista.

00:12:09 Reinaldo Azevedo
Mas o etapismo do capitalismo está no Marx também, não está só no Lenin, não?

00:12:15 Elias Jabbour
Mas o Marx nos entrega, ambos entregam possibilidades de uma visão de processo histórico, de transições, do novo e o velho convivendo, a noção de combinações entre diferentes formas históricas, gerando uma terceira forma histórica. Ambos nos trazem essa possibilidade. Talvez não seja tão preciso, porque o Lenin coloca isso, talvez E ele usa isso dentro de um contexto de necessidade de ampliar o horizonte do setor privado na Rússia, até por conta da existência de recursos sociais na agricultura.

00:12:49 — Reinaldo Azevedo
Está falando da primeira NEP.

00:12:50 — Elias Jabbour
Da NEP, né? De recursos sociais na agricultura. Então, dentro dessa visão, até pode caber uma noção de capitalismo de Estado. Pode. Mas eu não concordo. Isso daria outro programa só pra discutir essa polêmica.

A China não é um capitalismo de Estado — a China é um Estado socialista. E eu digo isso por dois motivos: pelo poder político e pela base produtiva e financeira do país serem públicas. Hoje, a China tem 96 conglomerados empresariais estatais, controlados pelo Partido Comunista — não pelo Estado, o que já é uma diferença importante. Não é estatal, é público. E o sistema financeiro também é público, igualmente controlado pelo Partido Comunista.

Existe aí uma distinção importante. O modelo State-led development, como se vê na Ásia — no Japão, na Coreia, até mesmo na Alemanha ou nos Estados Unidos —, é frequentemente confundido com o caso chinês. Mas a China não segue esse padrão. A China é um Estado que eu classifico como Communist Party-led development, ou seja, uma dinâmica de acumulação liderada diretamente pelo Partido Comunista.

As diferenças entre esse modelo e os modelos desenvolvimentistas são enormes. Uma delas é a questão da grande propriedade pública — não só sobre os meios de produção, mas também sobre o sistema financeiro. O setor privado que existe na China, que é de fato imenso, não é tão privado assim. Isso porque o conceito de propriedade privada na China não é o mesmo que o do Ocidente. Na Inglaterra, por exemplo, a propriedade privada surge após as Leis dos Cercamentos e passa a ser sacralizada. Já na China, a propriedade privada é uma concessão estatal. São duas formas históricas completamente diferentes.

Além disso, esse setor privado chinês vem se tornando cada vez mais “não público”. Por quê? Porque o Partido Comunista avança sobre ele. Há cinco anos, apenas 5% das ações das grandes empresas privadas estavam sob controle estatal. Hoje, esse número já é de 30%. Ou seja, é um setor privado que vai se tornando progressivamente dependente dos efeitos de encadeamento gerados pelo setor público da economia — que, por sua vez, é o responsável por gerar os chamados ciclos de acumulação.

Outro ponto importante: o Partido Comunista está presente em todas as empresas não públicas com mais de 100 funcionários. Essas empresas precisam ter um CEO do Partido — ou seja, um militante comunista influenciando diretamente as decisões de investimento privado. Então, se formos chamar isso de capitalismo, é um capitalismo muito estranho. E isso é só o começo da conversa.

00:15:20 Reinaldo Azevedo
Eu vou fazer uma pergunta e depois vou passar para o Walfrido. E quem controla o Partido Comunista?

00:15:25 Elias Jabbour
Quem controla o Partido Comunista é a sociedade chinesa. Existe uma herança do modo de produção asiático, daquela meritocracia confuciana, que acaba se incorporando ao Partido Comunista. E esse partido, na medida em que é capaz de entregar para a sociedade os resultados que ela espera, continua tendo o “mandato dos céus”..

Diferentemente da União Soviética, que possuía uma sociedade um tanto quanto amorfa na sua base, na China não é assim. A classe trabalhadora, por exemplo: a China é o país que mais realiza greves no mundo atualmente. E os salários cresceram cerca de 170% em dez anos — acima do PIB, da inflação e da produtividade.

Portanto, por mais que possa parecer uma loucura, trata-se de um partido comunista que é, sim, controlado pela sociedade chinesa. Porque, se ele não entregar aquilo que a sociedade espera, ele cai — assim como caíram, ao longo dos últimos dois mil anos, todas as dinastias chinesas que não conseguiram realizar as obras públicas necessárias para atender ao povo.

Acho que existe um véu em torno do Partido Comunista Chinês que precisa ser levantado. Precisamos olhar para ele com mais sofisticação, com mais profundidade, inclusive.

00:16:37 Walfrido Warde
Há muito desconhecimento a respeito da China, e eu quero explorar a sua condição de insider — por ter vivido no país e por ser um estudioso dedicado da realidade chinesa. Porque uma coisa é ler livros sobre a China; outra, bem diferente, é viver lá e presenciar situações que confirmam — ou até mesmo contradizem — teses que você já havia formulado como pesquisador.

Quando se descreve historicamente o comunismo soviético, uma das críticas recorrentes é a ineficiência e a profunda corrupção que se instaurou na burocracia do regime. Já na China, o que se observa é o oposto: uma burocracia altamente eficiente. E os números falam por si. Por mais que o Ocidente, às vezes, conteste esses dados — o Reinaldo até trouxe alguns deles —, basta ir à China. Eu estive lá algumas vezes, em diferentes períodos, e é impressionante: trata-se de um país que se transforma a cada dois, três anos. As grandes cidades mudam de forma acelerada. É algo incrível.

A pergunta que fica é: como o Partido Comunista Chinês consegue isso? Você chegou a tocar nessa resposta quando mencionou a forte pressão que a sociedade chinesa exerce sobre o Partido. Mas não é só isso. Existe alguma técnica específica para recrutar pessoas tão competentes? Algum método que assegure que essas pessoas trabalhem para o país, e não apenas para si mesmas? Como se evita esse desalinhamento de interesses?

É claro que não existe mundo perfeito, e certamente há problemas na China. Mas como se atinge esse grau de eficiência no serviço público a ponto de produzir tamanha riqueza, distribuir essa riqueza e, com isso, transformar o país na segunda maior economia do mundo?

00:18:34 Elias Jabbour
É tanta coisa porque uma das características desse Estado que nasce em 1949 é que ele herda uma série de instituições criadas durante o modo de produção asiático. Por exemplo: o concurso público na China existe há cerca de 1.500 anos. O mercado na China — o primeiro registro de trocas comerciais — tem mais de 3.600 anos. E já havia, Reinaldo, trocas comerciais nas zonas liberadas entre o Partido Comunista e o Kuomintang, por exemplo, nas bases. Ou seja, eles já tinham uma experiência de 15 anos de governo — algo que os bolcheviques não tiveram na Rússia. Isso foi fundamental. Essas heranças que vêm do passado são decisivas para entender a China de hoje.

A cultura do planejamento, por exemplo: a China executa grandes obras desde a antiguidade. O canal que liga o Rio Amarelo ao Rio Yangtzé tem mais de dois mil anos — é uma obra com altíssimo grau de planificação territorial. A própria Muralha da China também é um exemplo. Então o Partido Comunista acabou se tornando o depositário de toda essa tecnologia social e histórica. Eles herdaram isso e elevaram essa capacidade à décima potência.

Uma das teses que eu defendo é a seguinte: a China não transita de uma economia centralmente planificada para uma economia de mercado. O que acontece é uma transição para uma economia de planejamento baseada no mercado, e, hoje, para uma economia baseada em projetos. E, nessa nova transição, o mercado vai desaparecendo enquanto instituição.

A chamada “lei do valor” passa a ter uma atuação muito restrita numa sociedade como essa. Por exemplo: a microeconomia — que é a economia da firma, que a gente estudou na universidade — e a macroeconomia — que é a contabilidade social —, essa relação tensa entre as duas vai deixando de fazer sentido na China. Isso porque ambas passam a ser subordinadas a uma nova lógica de contabilidade — a contabilidade dos projetos, dos planos nacionais.

00:20:39 — Walfrido Warde
Desculpa, eu não entendi. Você se referiu à teoria da firma do Coase [Ronald Coase]?

00:20:43 — Elias Jabbour
Sim. Você tem organizações na China, você tem empresas. Mas a lógica das empresas privadas chinesas, a relação custo-benefício delas, está deixando de ser baseada exclusivamente na busca pelo lucro. O foco está se deslocando para aquilo que elas podem entregar à sociedade como resultado final.

Essa microeconomia baseada no “olho cego” do mercado, na busca pelo lucro, no animal spirits, vai sendo progressivamente incorporada pela contabilidade social. Daí vêm as tensões recentes entre Xi Jinping e os bilionários chineses.

A China caminha para a formação de uma economia que supera a dicotomia entre micro e macroeconomia, e também a dicotomia entre planejamento e mercado. Esse é o pulo do gato para entender a China.

Tanto é assim, Reinaldo, que eu acredito que o grande desafio das ciências sociais no Ocidente é construir uma ciência capaz de entender a China. A ciência que estudamos na universidade — economia clássica, keynesianismo, desenvolvimentismo, neoclássicos — não consegue oferecer uma visão de totalidade sobre a experiência chinesa. Essa é a grande questão.

Hoje, o que se observa são leituras parciais: “a China tem trabalho escravo”, “a China tem capitalismo” — são partes, não o todo. Falta uma ciência que seja capaz de captar o conceito que se manifesta no movimento real da sociedade chinesa.

É isso que eu tento apresentar neste livro, por exemplo, e no próximo: um conceito de socialismo adaptado à nossa época histórica.

O que a China faz para dar certo é basicamente enfrentar os desafios e as contradições colocadas pelo próprio processo de desenvolvimento — a partir da criação de instituições que capacitam o Estado chinês e o Partido Comunista a enfrentar as próximas contradições. Como? Por meio de uma imensa máquina de previsão que eles construíram.

Um dado interessante, que acho que vocês e quem está nos assistindo vão gostar: na União Soviética, havia uma matriz chamada “matriz insumo-produto” — que norteava o planejamento central soviético. Essa matriz servia para identificar setores superinvestidos e subinvestidos, e para realizar a transferência intersetorial de recursos — que é, no fundo, o processo de desenvolvimento.

Na época soviética, essa matriz levava cerca de seis meses para ser produzida. Hoje, na China, ela é atualizada a cada seis a dezoito minutos. O Partido Comunista e o Estado chinês têm, literalmente nas mãos, uma visão em tempo real da economia: quais setores estão subinvestidos, quais estão superinvestidos, e quais reformas institucionais e jurídicas são necessárias para enfrentar os próximos gargalos do desenvolvimento.

Isso é capitalismo? Eu acho que não. Isso é uma outra forma histórica.

00:23:41 Reinaldo Azevedo
No entanto, tem características de uma tirania perfeita, do ponto de vista político, ou não?

00:23:58 Elias Jabbour
Não, eu acho que não. Primeiro, porque a China… Enfim, eu não acho.

00:24:01 Reinaldo Azevedo
Só pra esclarecer: não estou perguntando onde está a democracia burguesa…

00:24:06 Elias Jabbour
Não, eu não entro nessa…

00:24:08 Reinaldo Azevedo
Eu quero saber o seguinte: do ponto de vista da expressão das vontades da sociedade que se organiza, da livre organização dos protestos, daquilo que, enfim, nas democracias ocidentais — pelo menos até outro dia — era garantido. Daqui a pouco, já nem sei mais. É uma sociedade livre?

00:24:34 Elias Jabbour
Eu vou lançar uma provocação aqui.

00:24:36 Reinaldo Azevedo
Ou vamos falar “liberdade pra quê”?

00:24:37 Elias Jabbour
Não, eu não entro nesse nível. Meu nível de debate não é esse, porque eu acho que, por exemplo, ditadura e democracia são categorias falsas, conceitos frágeis, cujas bases epistemológicas são muito frágeis, porque negam a história. Então, a China é uma ditadura?

00:24:53 Reinaldo Azevedo
Bom, Elias, mas quem quer se organizar, quem quer falar e não pode, vai dizer pra você que isso é muito real.

00:24:59 Elias Jabbour
Não, é real. Mas a questão é observar o conteúdo de classe do Estado. E, na China, é garantida — garantida — a possibilidade de alguém se manifestar livremente. Eu falo aqui por testemunho próprio. Visitei assembleias populares na China em que as pessoas falavam livremente sobre as medidas do governo. Você entra nas redes sociais na China e o pau quebra o dia inteiro.

As pessoas criticam o governo. Isso não é opinião minha, eu peço que as pessoas verifiquem atentamente. Vão à China, peguem alguém que fale chinês e descubram qual é a próxima reunião de base do partido em tal lugar. Vão lá e vejam o que acontece. Ou então vão a uma fábrica e observem os trabalhadores se auto-organizando, como acontece em muitos casos.

Hoje, parece que a China é o país com mais greves no mundo. Então, essa história de que existe uma restrição à associação… é verdade, não estou negando isso. Mas, dialeticamente, talvez seja a sociedade em que o Estado e o partido governante absorvem com muito mais tranquilidade as críticas e demandas da sociedade do que qualquer país ocidental, por exemplo. E nem precisa acreditar em mim. Basta ir à China e perceber. Eu ouso dizer que um trabalhador chinês… eu tenho dúvidas se um trabalhador brasileiro é tão livre quanto um trabalhador chinês. E quando eu falo trabalhador chinês, eu estou falando com base na história: ele é muito mais livre que o pai, muito mais livre que o avô e muito mais livre que o tataravô.

00:26:35 Reinaldo Azevedo
A China realizou um pouco aquela ideia que o Gramsci falava, do partido como…

00:26:41 Elias Jabbour
O príncipe moderno.

00:26:41 Reinaldo Azevedo
O príncipe moderno.

00:26:42 Elias Jabbour
Ah, sim, totalmente. Porque é um modernizador.

00:26:44 Reinaldo Azevedo
Vamos explicar pro público? Você explica ou eu explico?

00:26:46 Elias Jabbour
O príncipe do Maquiavel é o modernizador. Na medida em que, por exemplo, na Rússia com Kerensky e na China com Mao Tse-Tung ou Chiang Kai-Shek, nenhum dos dois foi capaz de levar adiante a modernização capitalista como Bismarck fez na Alemanha, ou Getúlio no Brasil. O Partido Comunista acabou assumindo esse papel, cumprindo as tarefas históricas que, teoricamente, caberiam à burguesia. Por isso o Partido Comunista, em grande estilo, encarna esse papel do príncipe moderno.

00:27:13 Reinaldo Azevedo
O príncipe moderno. E aí tem uma frase que a gente pode citar — pode ser o totalitarismo perfeito ou a sociedade perfeita — mas é uma frase espetacular.

00:27:23 Elias Jabbour
Não é perfeita, pessoal. Eu não sou um agente chinês, não sou um laudatório daquela experiência.

00:27:27 Reinaldo Azevedo
Mas tem uma frase espetacular do Gramsci: até para se opor ao príncipe moderno, será preciso pertencer ao príncipe moderno.

00:27:38 Elias Jabbour
Com certeza. Eu falo isso porque, no Partido Comunista da China, por exemplo…

00:27:41 Reinaldo Azevedo
Para se opor ao Partido Comunista Chinês, é preciso pertencer ao Partido Comunista Chinês.

00:27:44 Elias Jabbour
Exatamente. Várias vezes já foi dito isso.

00:27:45 Reinaldo Azevedo
Não tem um quê de totalitarismo nisso?

00:27:47 Elias Jabbour
Acho que tudo é e não é totalitarismo. Como o Hegel diz, tudo é sim e não. Então, tudo é totalitarismo e, ao mesmo tempo, não é. O que eu coloco é o seguinte…

00:27:56 Reinaldo Azevedo
Ah, você é capaz de algo melhor do que isso…

00:27:59 Elias Jabbour
Não sei se sou capaz. A questão que coloco é: precisamos observar essas questões historicamente. A China é um Estado totalitário? Vamos olhar para a história. Minha tendência é sempre jogar tudo para uma discussão histórica. Analisar como se fosse uma fotografia leva a pensar que é uma ditadura cruel.

Mas passaram-se cem anos, o “século de humilhações” foi vivido pela China, não pelos Estados Unidos. Quem enfrentou um bloqueio infernal entre 1949 e 1978 foi a China, não o Brasil. Então, precisamos considerar a história daquele espaço geográfico para formular uma resposta que se aproxime de uma visão científica da realidade. Chamar simplesmente de totalitarismo ou ditadura me parece, posso estar enganado, muito pobre.

Acho que dá pra ser mais sofisticado. Por exemplo, pensar no modo de produção asiático, na forma de organização das famílias camponesas, e tirar daí ensinamentos para entender como as pessoas se organizam hoje na China, a partir dessas tendências históricas. Eu acredito que fora da história, fora da totalidade, não há verdade. Essa é a grande questão. Então, dizer que não há ditadura ou que há totalitarismo, para mim, enquanto cientista que me considero, não resolve o problema. O que resolve é entender o DNA daquela sociedade, entender por que ela funciona como funciona. Basicamente, é isso.

00:29:24 Reinaldo Azevedo
Mas… vou te apertar mais um pouco aqui, porque o público está pensando nisso agora: não é uma sociedade em que as pessoas podem se organizar livremente. Se eu tiver a ideia de fundar um partido, reunir um grupo… o que acontece?

00:29:41 Elias Jabbour
Não, não é. Quem controla a China é o Partido Comunista, que controla o Exército, controla tudo. Existem oito partidos chamados “democráticos”, mas que não se opõem ao Partido Comunista.

00:29:53 Reinaldo Azevedo
Tem até uma igreja católica que também não se opõe a ele.

00:29:57 Elias Jabbour
Sim. E sabe o que eu imagino, Reinaldo? Eu imagino se o PCdoB — que é o meu partido — estivesse prestes a chegar pertinho do poder no Brasil… O que aconteceria? A gente vive dizendo que na China não pode ter um partido liberal, um partido de oposição. Mas onde pode, de fato, isso? Vamos lá: o que são os Estados Unidos? São duas tendências da mesma oligarquia. E a Europa? Por isso que eu digo: cada formação social vai encontrar sua própria forma de representatividade.

00:30:43 Reinaldo Azevedo
E sua própria forma… Vou te ajudar, hein? Talvez, você pode falar assim, ajuda de merda, mas…

00:30:49 Elias Jabbour
Não, não, não.

00:30:54 Reinaldo Azevedo
Encontra sua própria forma de representação e você poderia dizer e de repressão.

00:31:01 Elias Jabbour
Com certeza.

00:31:03 Walfrido Warde
Vamos para um exemplo prático, que é mais fácil para as pessoas entenderem. Porque eu acho que tem uma coisa… há situações práticas. O Reinaldo colocou uma. As pessoas podem criar partidos para disputar o governo com o Partido Comunista? Não. Mas tem outras questões, que são mais frugais — ou talvez nem tanto — que, na China, não funcionam. Se eu tentar mandar uma mensagem pelo WhatsApp na China, não consigo. Tenho que usar o WeChat.

00:31:34 Elias Jabbour
Sim.

00:31:35 Walfrido Warde
Ou seja, se eu quiser usar redes sociais do Ocidente, na China não funciona. Não tem Facebook, não tem Instagram. Tem o TikTok, porque é chinês.

00:31:45 Reinaldo Azevedo
Você está querendo me convencer que a China é boa?

00:31:49 Walfrido Warde
Eu só quero que o Elias explique por que o governo chinês não permite o funcionamento das redes sociais ocidentais na China.

00:32:02 Elias Jabbour
Por que um Estado nacional sob cerco, como é o caso da China, seria obrigado — onde está escrito? — a entregar os dados dos seus cidadãos para uma Big Tech estrangeira? É uma questão que, eu acho, Reinaldo e Walfrido, precisamos encarar de frente. Sem rodeios. A gente sabe muito bem o papel das Big Techs no Ocidente hoje. E pra que elas servem? O TikTok virou um “caso de Estado”, e as outras? Pra que elas servem?

00:32:30 Reinaldo Azevedo
Em 2018, por exemplo, no Brasil…

00:32:31 Elias Jabbour
As eleições foram amplamente manipuladas pelo WhatsApp. O rapaz lá do Facebook vive dizendo que trabalha para o Estado americano. Eu fico me perguntando: se eu sou um país como a China, que tem um projeto nacional — um projeto que, em certa medida, pode se antagonizar com o projeto nacional dos EUA — e esse outro projeto nacional tem 80 bases militares ao meu redor, além de capacidade de implementar várias formas de guerra de sexta geração contra mim… eu vou ter que proteger minha sociedade disso. Então aqui não se trata de defender uma ditadura. Trata-se de defender a integridade nacional de um país.

00:33:21 Reinaldo Azevedo
Os Estados Unidos criaram agora uma espécie de… bom, o Trump de algum modo centralizou as redes sociais, naquela posse com todos os chefes das Big Techs ali presentes. Aquilo foi muito eloquente.

00:33:34 Elias Jabbour
E vocês querem que a China entregue o Instagram…

00:33:36 Reinaldo Azevedo
Eu vou te ajudar, bonitão. Vou te ajudar.

00:33:40 Elias Jabbour
Não é pra vocês, é pro público aqui.

00:33:43 Reinaldo Azevedo
Vou te ajudar mais ou menos. Eu tô te entrevistando, vou te encher o saco também. Você tem ali a “frentona” dos senhores das Big Techs…

00:33:53 Elias Jabbour
Democráticos, né?

00:33:55 Reinaldo Azevedo
O Zuckerberg, que deve estar com saudade de vestiário. Ele disse que está sentindo falta de mais testosterona no mundo. É um rapaz que jogou pouco futebol, ficou pouco no vestiário, está com saudade de vestiário.

00:34:07 Walfrido Warde
Ele pode jogar rugby.

00:34:08 Reinaldo Azevedo
Com aquele corpinho? Vai levar uma porrada e quebrar no meio. Então, o TikTok é o seguinte: ou vende para um americano, ou vende para um americano. Porque estão dizendo que vocês estão coletando dados dos americanos para os chineses. Mas ninguém pergunta: as Big Techs americanas coletam dados para os Estados Unidos? Por óbvio que sim. Agora vem a provocação. Até agora eu estava com você, agora vou te cutucar. Os Estados Unidos ficaram com inveja da China? “Se chinesaram” na questão das Big Techs? É “sim e não”?

00:34:49 Elias Jabbour
Sim, porque eles usam as Big Techs para isso mesmo — isso é fato. E a China usa as suas Big Techs, que inclusive eram privadas e agora têm “golden share” do Partido Comunista, também para se proteger. Mas os EUA, historicamente, têm uma oligarquia empresarial que controla a imprensa — e também a usa para espalhar informações pelo mundo. Não vamos esquecer que as informações que chegam a nós sobre política internacional são filtradas pela France Press, pela Reuters, pela AP.

00:35:27 Reinaldo Azevedo
Eu diria: bons tempos quando ainda era assim. Hoje, tudo é filtrado por essa algaravia de maluquices nas redes sociais.

00:35:35 Elias Jabbour
É, mas ainda existe esse filtro. E agora existe o filtro dos algoritmos — o que é ainda mais grave e poderoso. Isso coloca o mundo diante de uma ditadura global, na qual a do Partido Comunista virou fichinha. E isso afeta diretamente, aí sim, os interesses nacionais do Brasil. Estou falando da China aqui, mas essa ditadura que está se implantando via Big Techs ocidentais vai de encontro aos interesses nacionais brasileiros.

Repare: de encontro, no sentido de confronto. Isso significa que eu não estou aqui para defender o que a China faz. A questão é outra: é saber que o mundo não é “divertido”, ele gira em torno da disputa entre diferentes blocos de capital — chinês, americano, europeu, russo. E a gente aqui discutindo se o WhatsApp deveria ou não funcionar na China… não é o caso de vocês dois, claro, mas essa discussão muitas vezes ignora a realidade. O mundo é matéria contra matéria. Ou cada país se organiza com um projeto nacional autônomo, ou desaparece. E os chineses estão preparados para isso, com todos os instrumentos — questionáveis, sim — que têm.

00:36:46 Reinaldo Azevedo
Desde que os outros não estejam, né? Porque, vamos lá, a China hoje tem uma presença brutal na África. A nova rota da seda… O Brasil não entrou nisso porque há a percepção de que são acordos comerciais com a China bem estabelecidos, mas a China não preza exatamente pelos projetos nacionais de cada país. Ela também tem uma vocação imperial nas relações que estabelece. A negociação da China com o Brasil, por exemplo, é difícil. Eles são negociadores duros.

00:37:30 Walfrido Warde
Como nós deveríamos ser.

00:37:31 Reinaldo Azevedo
Em muitos aspectos, mais duros até do que os americanos. Eles também disputam influência global. O Trump chegou a propor uma nova Yalta, mesmo sem guerra. Seria ele, o Xi Jinping e o Putin: “vamos dividir o mundo”.

00:37:52 Walfrido Warde
Quer saber? Faz todo sentido.

00:37:54 Reinaldo Azevedo
Isso a gente pode discutir. Porque, de certo modo, eu também acho. Mas é preciso explicar direito, e agora não vai dar tempo. Vamos fazer um programa só sobre isso?

00:38:05 Walfrido Warde
Aliás, tem um livro muito bom do Dobbs, 1945, que fala sobre a Conferência de Yalta.

00:38:12 Reinaldo Azevedo
A Conferência de Yalta.

00:38:13 Walfrido Warde
Michael Dobbs.

00:38:14 Reinaldo Azevedo
Exatamente. Roosevelt, Stalin e Churchill ali dividindo o mundo. O Churchill, coitado, já não estava dividindo mais nada, só se preparando para se ferrar. Agora, a China também tem uma vocação imperialista, não?

00:38:30 Elias Jabbour
Não.

00:38:31 Reinaldo Azevedo
Eita! Polêmica!

00:38:36 Elias Jabbour
É polêmica, se formos olhar pela história. A China só foi expansionista quando governada por dinastias estrangeiras — os manchus e os mongóis.

00:38:44 Reinaldo Azevedo
Mas imperialismo é econômico, né?

00:38:45 Elias Jabbour
Sim, imperialismo é econômico. Vamos lá. Como podemos caracterizar isso? A China não obriga nenhum país a comprar ou vender exclusivamente com ela. Se compararmos os investimentos chineses na África hoje com as ferrovias inglesas do século XIX, vemos que ali eram corredores de exportação. Com a China, há integração produtiva regional e dentro de cada país. Basta observar como as rodovias são construídas: há uma diferença enorme. É claro que a China tem interesse na África. Ela não é “boazinha”. Mas quem é?
Além disso, o Ocidente, ao negociar com a periferia, costuma infantilizá-la: “precisamos civilizar vocês”. A China, não. Ela trata os africanos e latino-americanos como adultos. Por exemplo, a Bolívia bateu o pé e exigiu que o lítio fosse industrializado em seu território. Os chineses aceitaram. O Zimbábue, um dos países mais sancionados do mundo, proibiu a exportação de lítio in natura para a China e exigiu a instalação de fábricas lá. E os chineses toparam.

Isso tudo é documentado, não é opinião minha. São dados. A China não tem um “Banco Mundial chinês” ou um “FMI chinês” impondo políticas de austeridade. Não há imposição de reformas internas.

E o mais importante: a China nunca invadiu um país. A única exceção foi o Vietnã em 1979. Mas, no geral, a China não tem um histórico militarista. Ela não tem bases militares pelo mundo — só uma em Djibuti, e é uma base de observação. Então, colocar um sinal de igualdade entre o imperialismo chinês e o americano não se sustenta historicamente. São formações completamente diferentes. De um lado, temos o “destino manifesto”, ideologia que nasce no Mediterrâneo Oriental. Do outro, filosofias civilizatórias e tolerantes que vêm do vale dos rios Yangtzé e Amarelo: confucionismo e taoismo.

A política externa americana é o Velho Testamento. A da China é Confúcio. A noção de “comunidade de destino compartilhado” não foi inventada pelo Partido Comunista — vem de Confúcio.

E, na minha opinião, a chance de reindustrialização do Brasil — e falo isso para o Eduardo Paes — passa por uma integração produtiva total com a China. Total, Reinaldo. Total, Walfrido. Só que a gente precisa dialogar com os chineses como adultos.

00:41:49 Reinaldo Azevedo
O que é isso? O que é “integração total”? E o que é “discutir como adulto”? E o que seria “discutir como criança”?

00:41:58 Elias Jabbour
Discutir como criança é pensar — como muita gente dentro do Estado brasileiro pensa — que os superávits comerciais com a China compensam a não adesão à nova Rota da Seda.

00:42:10 Reinaldo Azevedo
Desculpa, você falou muito rápido. Acho que o público pode não ter entendido. Repete: o que seria discutir como criança?

00:42:15 Elias Jabbour
Discutir como criança é acreditar que os superávits comerciais com a China, por si só, resolvem o que deveria ser resolvido com investimento produtivo chinês no Brasil.

00:42:23 Reinaldo Azevedo
Ou seja, não querer entrar na Rota da Seda.

00:42:28 Elias Jabbour
Exatamente. Isso é discutir como criança. Porque esse tipo de comércio que temos hoje com a China é um comércio colonial. Ele não traz retorno estratégico. Não entrega futuro. É imediatista.

00:42:41 Reinaldo Azevedo
Você acha que foi um erro o Brasil não ter aceitado entrar na Rota da Seda?

00:42:44 Elias Jabbour
Sim, foi um erro. Um erro grave, eu diria. Chocante, até.

00:42:47 Reinaldo Azevedo
Só para explicar: é um processo de integração, de investimento e industrialização junto com a China. E no Brasil surgiu a conclusão de que a China nos “jantaria” nesse processo — e que perderíamos. Mas você está dizendo que não perderíamos.

00:43:01 Elias Jabbour
Não perderia. E acredite… Vamos pegar aqui o exemplo do JK, o Juscelino Kubitschek. Na periferia do capitalismo, os processos de industrialização — como no caso do Brasil ou do México — ocorrem em condições muito específicas. Não somos um país onde os meios de produção e as soluções estão sob controle do Estado, nem somos um país capitalista desenvolvido, onde banco e indústria se fundem. Então, nos resta olhar para o mundo, identificar as oportunidades e tendências globais, e a partir disso planificar nossa inserção internacional.

O JK foi genial ao perceber a tendência do automóvel, trazer as montadoras para o Brasil e construir uma rede de estradas que respondesse a essa tendência. Ao mesmo tempo, surgiram aqui duas a três mil pequenas empresas no setor automotivo, que logo depois colocaram o Brasil na liderança mundial em parque metal-mecânico. Nos anos 1980, o Brasil chegou a ter o maior parque metal-mecânico do mundo — algo que nasceu daquelas pequenas empresas dos anos 50.

Ou seja, o Brasil identificou uma tendência, absorveu essa tendência de forma competente e se transformou, em pouco tempo, na sétima economia industrial do mundo. Hoje, ao olharmos para o cenário internacional, onde estão as novas tendências para o nosso processo de industrialização — ou melhor, de reindustrialização? Estão na China. Através da importação de bens públicos — ferrovias, estradas, portos, aeroportos — há uma série de possibilidades.

E a partir disso, eu vislumbro — e já falei isso com muita gente — que podemos discutir com os chineses os termos dessa integração produtiva total. A ponto de o Brasil recuperar toda a sua indústria destruída nos últimos 40 anos, especialmente pela Operação Lava Jato. Esse é o ponto central. Para mim, isso é discutir como adulto com os chineses: reconhecer que não existe essa equidistância entre China, Europa e Estados Unidos. Isso é ilusório.

00:45:04 Reinaldo Azevedo
Mas a China não vai querer dizer: “Deixa que a gente faz”?

00:45:08 Elias Jabbour
Não, não. Reinaldo, Walfrido, não existe esse histórico da China dizer “deixa que eu faço”. Não existe. Eu desafio qualquer um a mostrar onde e quando a China impôs algo assim a um país. Estou falando com base em ciência, em pesquisa, no que tento fazer todos os dias. Não há registros de a China impor sua vontade ou seu projeto nacional a outros países. Muito pelo contrário: o grau de tolerância da China com os projetos nacionais dos outros é muito maior do que o de qualquer país ocidental. Isso não é opinião minha — é algo que pode ser verificado ao longo da história.

00:45:46 Walfrido Warde
Elias, fala um pouco da tua experiência na China em relação ao BRICS. Recentemente, o presidente Trump disse que o BRICS está ultrapassado, que é coisa do passado, um projeto que fracassou. Como é que você vê isso? Claro que você está aqui falando do Brasil…

00:46:06 Reinaldo Azevedo
E se criarem uma moeda para o comércio… [ameaçou Trump].

00:46:09 Walfrido Warde
…local, aí eu vou taxar 100%! Enfim, você mencionou o que seria uma integração — eu também vejo isso como algo muito positivo. Sempre pensei assim, embora não com o grau de organização com que você expôs. Mas o BRICS seria o indutor de tudo isso. E não só em relação à China, mas aos outros países emergentes que compõem o grupo. Qual é o futuro desse acordo de cooperação entre os países emergentes? Não o que se projeta, mas como você vê isso — tendo participado do banco dos BRICS, na China?

00:47:01 Elias Jabbour
É o futuro, só que esse futuro vai acontecer com vais e vens para lá e para cá, ou seja, a história não é uma linha reta. Então acho que esse é o primeiro ponto. Segundo ponto é que, por exemplo, o que eu percebo… Eu não posso falar do Banco dos Bricos porque eu estou em quarentena, então não posso dar nenhuma informação de…

00:47:17 Walfrido Warde
Mas pode falar em tese.

00:47:18 Elias Jabbour
Em tese, por exemplo, algo que eu percebi muito e tem me chamado muito a atenção é a unidade africana, por exemplo. Os africanos têm um discurso muito unitário em relação a necessidade de se industrializarem. Tanto é que existe o Fórum China-África em que o Xi Jinping toda reunião é uma sova que ele toma. Uma sova mesmo, nós queremos indústria, queremos indústria, não queremos exportar commodities. Então existe uma pressão coletiva da África sobre a China, por exemplo, para que a China os apoie em processos de industrialização.

00:47:48 Reinaldo Azevedo
É usando de autonomização.

00:47:51 Elias Jabbour
Exatamente. E os chineses nunca disseram não. Muito pelo contrário, se a gente for colocar um mapa na mesa de corredores econômicos que os chineses estão instalando na África, vai haver milhares desses corredores econômicos.

00:48:01 Walfrido Warde
E o que você está dizendo é que a nossa elite política tem fracassado em pedir a coisa certa para a China.

00:48:05 Elias Jabbour
É, aí vem uma outra questão que eu coloco, né? A falta de uma organização sul-americana capaz de, em bloco, também fazer essa mesma pressão sobre a China. Essa que é a questão. E aqui eu vou colocar o seguinte, quando eu falo assim elite, vai que é naquela velha história da esquerda, né? Da falta de uma burguesia nacional. E eu aprendi a pular fora de bodes expiatórios. Pra mim, elite é Reinaldo Azevedo, Walfrido Warde, Zeca Pagodinho, Dona Ivone Lara, Caetano Veloso, Gilberto Gil… Isso é elite. O que nós temos no Brasil não é elite. Nós temos uma outra coisa. Quem deveria ser capaz de tocar adiante esse projeto…

00:48:45 Reinaldo Azevedo
As elites, etimologicamente, é separar os melhores. Definitivamente, não é mesmo.

00:48:50 Walfrido Warde
Eles não podem ser ruins, como são.

00:48:53 Elias Jabbour
Ou seja… Mas vocês são parte da elite, na minha opinião.

00:48:56 Reinaldo Azevedo
No nosso caso, vale.

00:49:00 Walfrido Warde
Você está definindo aqueles que comandam o país, o que é economicamente, que não são os melhores.

00:49:05 Elias Jabbour
Agora, sobre a questão das elites — aí eu vou jogar no nosso colo. Hoje, no Brasil, nós não temos uma esquerda que tenha assumido o lugar da antiga burguesia nacional com a capacidade de pensar, de forma sofisticada, o futuro do país. Quando se fala em crise da esquerda ou crise do governo Lula — e não estou falando aqui especificamente do governo Lula — o que existe, na verdade, é uma crise de pensamento no Brasil. Uma crise de pensamento estratégico.

Por que eu estou emocionado de estar aqui? Porque, pela primeira vez em muito tempo, eu posso vir a um lugar, conversar com duas pessoas geniais e trabalhar minhas hipóteses — sendo contestado ou não — a partir de categorias que lidam com a totalidade: projeto nacional de desenvolvimento, forças produtivas, socialismo, capitalismo, industrialização, política industrial, planejamento… Essas são categorias de totalidade. E, quando elas são discutidas no debate público, constroem justamente essa totalidade de um projeto nacional. Isso desapareceu do debate público brasileiro. Ninguém discute mais isso. Nem a direita, nem a esquerda.
Existe, portanto, uma crise de pensamento que nos impede de enxergar o futuro do Brasil como parte dos BRICS, como parte do Sul Global. E o problema que eu coloco aqui — respondendo à sua pergunta como alguém que se vê como patriota — é que há, sim, uma crise de pensamento no Brasil. E uma esquerda — da qual eu faço parte — que está hoje incapacitada de pensar o país com sofisticação.

Vamos pegar a relação Brasil-China. Existe uma desinformação que mata — e, inclusive, é reproduzida pela própria esquerda. Por que difamar o nosso maior parceiro comercial, o nosso maior investidor, aquele que tem o maior potencial para nos ajudar no processo de reindustrialização?

Quarenta anos atrás, nós abraçamos uma agenda de estabilidade monetária, que nos impôs uma alta taxa de juros, câmbio flutuante. Compramos a ideia de que o Brasil precisava se alinhar ao Ocidente coletivo e desregulamentar sua economia, esperando que o capital estrangeiro viesse nos salvar. A China não fez isso. Portanto, não é culpa da China a nossa situação. A culpa é nossa. Fomos nós que fizemos essa escolha há quarenta anos.

00:51:21 Walfrido Warde
Faz um break. O presidente Lula indicou para a presidência do banco dos BRICS um dos seus melhores quadros. Indicou um ex-presidente da República. Não é qualquer pessoa. Não colocou um tecnocrata ou um especialista apenas, mas uma figura política de enorme importância — muito querida por uns, odiada por outros, mas isso é outra história. Indicou alguém que foi eleita duas vezes para a Presidência. Ou seja, está levando os BRICS a sério. O que temos feito, objetivamente, para explicar isso às pessoas? O que a presidenta Dilma tem feito, se é que você pode falar…

00:52:07 Elias Jabbour
Posso opinar, sim.

00:52:08 Walfrido Warde
O que ela tem feito dentro do banco dos BRICS para ter uma postura no sentido de avançar essa cooperação? de modo favorável para todos os membros, mas também para o Brasil.

00:52:22 Elias Jabbour
Primeiro que eu acredito que a Presidenta Dilma Rousseff cumpre um papel de emprestar o nome dela, a história dela a uma instituição e quando ela faz isso, ela recoloca a instituição em seu lugar histórico. Acho que esse é o primeiro ponto que a Presidenta Dilma faz, porque o banco passou a ter uma visibilidade internacional muito grande. Agora, o banco tem políticas e estratégias, delimitadas por ela inclusive, que eu acho que nós não sabemos.

00:52:46 Walfrido Warde
Se você puder explicar um pouco… O banco dos BRICS empresta dinheiro? Se eu quiser tomar um empréstimo com o banco, eu posso?

00:52:52 Elias Jabbour
O banco dos BRICS empresta para os países-membros, especialmente para investimentos em infraestrutura. Como é uma instituição relativamente nova, o banco ainda está passando por um processo de learning by doing — ou seja, de consolidação institucional. E isso envolve estabelecer metas e um planejamento estratégico.

A presidenta Dilma Rousseff assumiu o banco em um momento em que ele estava fora do mercado internacional de capitais. Ela conseguiu recolocar o banco nesse mercado e voltar a captar recursos. Isso, por si só, já foi uma vitória enorme. Em seguida, ela definiu metas com uma visão geopolítica bastante sofisticada.

00:53:39 Walfrido Warde
Ele capta no mercado de dívida? E no mercado de ações também?

00:53:41 Elias Jabbour
Mercado de capitais.

00:53:43 Walfrido Warde
Sim, mas você sabe se é dívida ou ações? Ele emite ações?

00:53:46 Elias Jabbour
Não, não. É mercado de dívida. E a presidenta Dilma estabeleceu, por exemplo — com o que eu concordo totalmente — que houve um rompimento nas cadeias globais de valor. Isso leva a uma tendência de fortalecimento das economias regionais: América do Sul, África, Ásia. Paralelamente, surge a tendência de sistemas locais de pagamento. Ela colocou como meta que 30% dos empréstimos do banco sejam feitos em moedas locais — e isso antes do prazo. Eu considero isso, usando um termo da esquerda, algo revolucionário. Ela muda, por exemplo, a geografia econômica…

00:54:33 Reinaldo Azevedo
O Trump prometeu que não deixaria, mas…

00:54:37 Elias Jabbour
Outro desafio estratégico que ela enfrenta — e que eu acho impressionante — é justamente esse: mudar a geografia econômica da captação do banco. Antes, o banco buscava recursos no Ocidente para investir principalmente na China. Agora, se não me engano, 70% da captação do banco já ocorre dentro da própria China, mesmo em dólares, e não mais no Ocidente. Essa é uma transformação relevante.

E agora o banco parte para um novo patamar: a expansão para novos membros. Cada passo nesse sentido envolve uma mediação complexa entre países e interesses distintos. E, na minha visão, a presidenta Dilma está enfrentando esse desafio de forma brilhante.

00:55:33 Reinaldo Azevedo
Na nova ordem mundial, essa é uma das formas de o Brasil ter uma voz. De reequilibrar um pouco, porque, do jeito que está, está ficando difícil.

00:55:45 Elias Jabbour
Exato. Um dos desafios que a presidenta Dilma deve enfrentar nos próximos anos é justamente esse: como reposicionar o banco em um mundo tão confuso. E aqui eu preciso parar, porque a partir desse ponto já não posso mais comentar.

00:55:59 Walfrido Warde
Só uma pergunta sobre os números do banco: o Brasil toma dinheiro emprestado?

00:56:03 Elias Jabbour
Sim, toma. Há informações no site do banco sobre os projetos financiados.

00:56:09 Walfrido Warde
Só para as pessoas entenderem.

00:56:10 Elias Jabbour
Sim, o Brasil tem linhas de crédito com o banco. Inclusive, o banco teve uma atuação muito importante durante as enchentes em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Foi feito um grande aporte — algo em torno de 1 bilhão de dólares — para apoiar a reconstrução. Nesse aspecto, o banco cumpriu um papel fundamental.

Agora, claro, ele ainda opera dentro do sistema do dólar, o que impõe certas limitações. E esse é, na minha opinião, o próximo grande desafio da presidenta Dilma. Era nisso que estávamos trabalhando até minha saída do banco, e acredito que ela vai enfrentar esse desafio com muito sucesso.

00:56:51 Reinaldo Azevedo
Desculpa, cortei sua frase.

00:56:53 Elias Jabbour
Imagina. O que eu ia dizer é que, na minha opinião, ela vai conseguir enfrentar esse desafio com muito sucesso. Inclusive, ela foi convidada pelo presidente Putin para um novo mandato de mais cinco anos. A Rússia vai entregar esse novo ciclo a ela.

00:57:09 Walfrido Warde
O comando do banco?

00:57:11 Elias Jabbour
Isso mesmo. E, para mim, isso representa uma vitória geopolítica brasileira de grande importância.

00:57:15 Reinaldo Azevedo
É um baita reconhecimento.

00:57:18 Reinaldo Azevedo
Elias, vou te propor uma questão. O velho Consenso de Washington… o Trump é a negação disso. Não exatamente da globalização, mas do que ela traz junto: o globalismo. Ele está impondo uma nova disciplina, seja via tarifas — que estamos vendo que ainda não foram plenamente aplicadas — ou por outras vias. Por exemplo, ele já chegou para a Ucrânia e disse: “Zelensky, esquece, meu filho. Acabou. Um pedaço da Ucrânia é da Rússia mesmo, a Crimeia também. Para de torrar o nosso saco.”

E quando você olha os analistas internacionais — especialmente os ligados ao establishment ocidental, aos think tanks — eles dizem: “Trump está entregando o mundo à China.” Você já deve ter lido isso umas 500 vezes. Só a China está contente com o que o Trump está fazendo.

00:58:27 Walfrido Warde
Acho que é o contrário.

00:58:28 Reinaldo Azevedo
Pois é. Estão dizendo que o Xi Jinping está satisfeito com as ações do Trump. Como você vê essa análise?

00:58:34 Elias Jabbour
Acho essa leitura muito equivocada, simplista e pobre. Como os chineses estão enxergando isso agora? Eles devem pensar: “Ele está se alinhando com a Rússia, vai desmontar a festa da Europa, talvez desestabilize a Coreia do Sul, vai buscar alianças pontuais e, em seguida, se voltar contra nós, China.”
O que os chineses observam é o aumento do cerco e o aprofundamento do bloqueio tecnológico contra eles.

00:59:06 Walfrido Warde
E a redução da influência chinesa sobre a Rússia.

00:59:09 Elias Jabbour
Exato. Um dos efeitos disso é a diminuição da influência chinesa sobre a Rússia.

00:59:11 Reinaldo Azevedo
O que, me parece, é o objetivo principal. Por isso te perguntei.

00:59:14 Elias Jabbour
E aí está a questão. Quando falei aqui sobre uma integração produtiva total do Brasil com a China, não estou dizendo que o Brasil deve virar uma colônia chinesa. O que proponho é uma relação entre dois projetos nacionais. É fazer com a China o que o Brasil fez com os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. O que estou dizendo aqui não é “pró-China”, é pura racionalidade histórica.

00:59:34 Reinaldo Azevedo
Puxa, eu já estava me vendo aqui como um agente chinês, nadando em dólares… Mas então não é bem assim.

00:59:39 Elias Jabbour
A questão é que Rússia e China estão em um grau de integração produtiva, financeira e tecnológica muito intenso. No caso, por exemplo, de projetos chineses no Brasil — são mais de 3 mil projetos em andamento entre os dois países, com investimentos que chegam à casa do trilhão de dólares. Rússia e China estão completamente integradas em todos os aspectos. Esse decoupling (desacoplamento) que os Estados Unidos tentam promover é praticamente impossível. Essa aposta americana tende a dar errado. Pelo menos, é o que eu acredito.

01:00:10 Reinaldo Azevedo
Essa aposta americana de chegar pro Putin e dizer: “Ok, a Crimeia é sua”. Bom, já era. A Crimeia, desde sempre… eu nunca…

01:00:17 Walfrido Warde
Mas o discurso é: “Vamos acabar com a guerra.”
01:00:19 Reinaldo Azevedo

Exato. Mas também dizendo: “O leste da Ucrânia vai ficar com vocês.” O que ele falou para o Zelensky foi duríssimo. Deu uma patada pesada no cara: “Você é um comediantezinho de quinta… Chega! Acabou a brincadeira. Estou pagando tudo isso, e vou parar de pagar.”

01:00:35 Walfrido Warde
Para onde foi essa grana toda?

01:00:36 Reinaldo Azevedo
Pois é. A dúvida é essa: virou uma mina de ouro pra você, essa guerra? Não. Então entrega o que sobrou. Acabou. E disse mais: “Para com isso enquanto você ainda tem um país.”

01:00:50 Walfrido Warde
É isso. Está tudo devastado.

01:00:53 Reinaldo Azevedo
E o Putin, no dia seguinte, respondeu com bombardeios pesados. Mandou ver. O Trump quer quebrar essa unidade — e fez isso sem conversar com os parceiros europeus. Que, aliás, já nem são tão parceiros assim. Mas ele consegue quebrar a unidade China-Rússia?

01:01:12 Elias Jabbour
Acho que não. Primeiro, porque nem chineses nem russos confiam nos americanos.

01:01:16 Reinaldo Azevedo
Então o Trump é um idiota?

01:01:19 Elias Jabbour
Não acho que ele seja um idiota. Podemos fazer uma outra análise aqui.

01:01:23 Reinaldo Azevedo
Mas ele está entregando o mundo para a China. A tese então faz sentido.

01:01:27 Elias Jabbour
Eu fico com uma visão hegeliana, que muitos podem chamar de “em cima do muro”, mas que reconhece que tudo é sim e não. Acho que o Trump percebe a necessidade de movimentos geopolíticos, tenta quebrar a unidade China-Rússia, mas o objetivo dele, ao meu ver, é colonizar a Ucrânia. A Ucrânia é um país riquíssimo em vários aspectos, então não é uma brincadeira…

01:01:50 Reinaldo Azevedo
Ele já falou sobre as terras raras, por exemplo.

01:01:52 Elias Jabbour
Exatamente. Ele está de olho nos metais valiosos. Está fazendo um jogo que também envolve administração política. O Marco Rubio, por exemplo — eu leio tudo que ele escreve — é uma figura sofisticada dentro desse meio de malucos. Podemos levantar a hipótese de que o Trump está tentando administrar a decadência americana. Porque quando ele diz que, ao comparar uma cidade americana com uma chinesa, os EUA parecem o país subdesenvolvido, é porque ele percebe que o jogo virou. Então, talvez ele esteja, sim, tentando administrar essa decadência.

01:02:33 Reinaldo Azevedo
Mas isso não seria uma coisa consciente. Não é como se ele dissesse: “Vou administrar o declínio do império americano.” É mais uma situação contingente.

01:02:41 Elias Jabbour
Exato. Não é deliberado.

01:02:42 Reinaldo Azevedo
Não é: “Vou administrar o declínio.” Mas, então…

01:02:48 Elias Jabbour
Mas ele vai vai morrer atirando…

01:02:49 Reinaldo Azevedo
E isso, de algum modo, justifica a maneira como a China observa esses movimentos?

01:02:53 Elias Jabbour
Sim. Aí é que está. A China é um país com 5 mil anos de história e um Estado nacional com 2.300 anos. Ela tem dois corpos filosóficos vivos até hoje. A China joga parada. Os americanos anunciam um pacote de sanções e a China espera uma semana antes de responder. Aí responde com sanções pontuais contra os agricultores americanos, terras raras, etc.

01:03:18 Reinaldo Azevedo
Isso é brilhante do ponto de vista estratégico — não é questão de concordar ou não. Não é só impor tarifa de importação. Ela impede a exportação. Isso é genial. Vocês precisam de coisas que só nós exportamos.

01:03:38 Elias Jabbour
E mais: faço um apelo para que as pessoas olhem para dentro da China. Eles estão se preparando para esse embate há sete anos. É aí que entra o papel do Estado, via Partido Comunista, pressionando o setor privado. A economia da firma foi incorporada à macroeconomia, à contabilidade nacional — com foco em função social.

Isso é parte da preparação para o embate com os Estados Unidos. Hoje, a China é uma máquina de investimento público, queimando dinheiro em ciência e tecnologia para alcançar os EUA na fronteira tecnológica. Ela acelera esse processo. O Biden tenta avançar a fronteira do conhecimento, mas a financiarização da economia americana impede isso. A capacidade de inovação dos EUA é muito menor do que a da China hoje.

E por quê? Porque a China tem uma economia baseada na grande propriedade pública dos meios de produção. Se você não entende isso, não entende nada sobre a China. Esse é o coração do modelo — e é o que torna a economia chinesa imparável. A Hillary Clinton, que é uma das mentes mais brilhantes dos EUA na minha opinião, teria dito — não sei se foi ao Mises ou ao Hayek — algo como: “As suas ideias são boas, eu até concordo, mas é impossível competir com uma economia como a chinesa.”

Eu também acho. É impossível concorrer com um modelo como o da China.

01:05:06 Walfrido Warde
Falou para os institutos, Mise e Hayek.

01:05:08 Elias Jabbour
Não, acho que ela falou para um dos dois isso daí. Não sei quem morreu por último.
01:05:14 Walfrido Warde
Já estava achando que era uma instituição.

01:05:16 Elias Jabbour
Não, ela falou exatamente isso. Para um dos dois. E convenhamos, ela também não é propriamente uma menina, né? A economia chinesa, a meu ver, é imparável, com características institucionais muito únicas. E, diferente da União Soviética, conseguiu desenvolver uma estrutura capaz de planejar até mesmo o processo de destruição criativa schumpeteriana — algo que os soviéticos não conseguiram. Isso, inclusive, ajuda a explicar a queda da União Soviética. Já os chineses conseguiram incorporar elementos dessa destruição criativa e planejar esse processo.

Desculpa o entusiasmo, mas isso me encanta como cientista. Porque esse tipo de planejamento nos ajuda a entender, por exemplo, como a China conseguiu tirar 200 milhões de pessoas do campo e colocá-las nas cidades em apenas 10 anos — sem os efeitos colaterais típicos de processos semelhantes.

01:06:17 Reinaldo Azevedo
É um Brasil.

01:06:18 Elias Jabbour
É um Brasil inteiro. Então, Reinaldo e Walfrido, esse é um processo cujo nível de coordenação e planejamento escapa à inteligência humana comum. É por isso que muitos dizem que é preciso uma teoria específica para entender a China.

01:06:30 Walfrido Warde
Agora, Elias, não é uma certa ingenuidade pensar que a economia americana não é planificada também? Se a gente observar autores econômicos americanos até os anos 70, o termo “planificação” foi meticulosamente apagado da literatura econômica — por uma razão simples: criar uma oposição ideológica entre os Estados Unidos e a União Soviética. Mas não dá pra acreditar que uma economia tão pujante quanto a americana, que venceu a Alemanha na Segunda Guerra graças ao seu mercado de capitais e à poupança interna, não seja sistematicamente pensada e replanejada por seu deep state — não pelo Trump e outros que entram e saem…

01:07:26 Reinaldo Azevedo
Não fala “deep state” que as pessoas ficam nervosas…

01:07:28 Walfrido Warde
Ficam mesmo. Mas a verdade é que imaginar que os EUA funcionam ao sabor do vento é ingenuidade. Claro que há planejamento na economia americana.

01:07:41 Elias Jabbour
Concordo, e vou além: a economia americana tem um grau de planejamento comparável ao da economia chinesa.

01:07:50 Walfrido Warde
Exatamente isso.

01:07:52 Elias Jabbour
Alexander Hamilton já mostrava isso. Eu até mencionei isso num debate com a Renata Barreto — dei o livro do Hamilton pra ela. Os EUA sempre usaram compras governamentais como mecanismo de desenvolvimento. A gente achava que era livre mercado…

01:08:08 Walfrido Warde
A terceirização da NASA, por exemplo — o Elon Musk é fruto de uma decisão deliberada do Estado. Fingimos que não é um projeto estatal.

01:08:15 Elias Jabbour
Exato. Fingimos que não é uma empresa pública.

01:08:17 Walfrido Warde
Fingimos que não é pública, mas é.

01:08:18 Reinaldo Azevedo
O Biden, por exemplo, importou uma empresa inteira de chips e a levou para o Arizona.

01:08:25 Walfrido Warde
Tudo por causa da inteligência artificial.

01:08:26 Elias Jabbour
Isso é o Estado, não tem outra explicação. O Nixon, por exemplo…

01:08:30 Walfrido Warde
Chega à economia privada.

01:08:32 Elias Jabbour
O próprio Nixon estatizou praticamente todo o sistema ferroviário federal americano.
Precisamos tirar as crianças da sala para discutir esse tipo de coisa, porque não dá pra viver achando que tudo é mercado. A “Guerra nas Estrelas”, por exemplo, foi um keynesianismo militarizado de nível… espacial!

01:08:56 Walfrido Warde
O complexo industrial-militar é o carro-chefe da economia americana.

01:09:00 Elias Jabbour
Mais do que isso. Se a gente estuda seriamente, observa que os gastos públicos dos países capitalistas centrais só aumentaram nos anos 90. Enquanto isso, exportavam pra nós a ideia de Estado mínimo, de que não se pode gastar, de que o Estado deve ser como uma casa. Mas, na prática, os déficits públicos deles só cresceram. A ideia de que dívida pública é um problema é uma falácia — dívida pública é uma arma política. Dizer que um país não pode gastar porque tem que se comportar como uma família é simplesmente falso. Isso não se aplica a americanos, japoneses, sul-coreanos, chineses, alemães… ninguém.

Portanto, enfrentar essas amarras ideológicas no Brasil é essencial para o nosso futuro. E aqui, veja bem, não estou falando de comunismo.

01:09:58 Walfrido Warde
É sobre o que serve ou não serve.

01:10:00 Elias Jabbour
Exatamente. Eu sou pragmático. Se você me vender o capitalismo sul-coreano, eu compro. É um capitalismo de grandes conglomerados, de grandes bancos, onde os empresários têm metas de exportação — se não cumprem, perdem o negócio. O capitalismo alemão pré-Nord Stream 2, altamente organizado, também compro. Eu costumo dizer aos meus amigos de esquerda — e por isso sou odiado tanto pela direita quanto pela esquerda — que o capitalismo alemão seria excelente para o Brasil.

01:10:32 Walfrido Warde
Eu estou gostando muito de você, quero deixar claro.

01:10:34 Elias Jabbour
(risos) Mas é isso. Eu não tenho tempo pra ficar sonhando. Walfrido, Reinaldo, eu me coloquei na posição de estudar cientificamente o socialismo. Eu poderia ficar balançando bandeira, vivendo no mundo da fantasia, da “Pantera Cor-de-Rosa”, mas não. Eu não sou anticapitalista. Quero superar o capitalismo. Não sou contra a propriedade privada. A propriedade privada tem uma história. Ela existe até onde consegue entregar à sociedade aquilo que se espera dela. Quando deixa de entregar, será substituída. Mas não por decreto — “a partir de agora tudo é público”. Isso não funciona. Não é assim: “acabou o mercado”. Isso não existe.

01:11:13 Reinaldo Azevedo
Eu entendo por que a direita te odeia. Mas você diz que a esquerda também te odeia. Por quê?

01:11:21 Elias Jabbour
Porque eu não gosto de discurso fácil, Reinaldo. Quando venho aqui debater…

01:11:27 Reinaldo Azevedo
Além de você ser muito aborrecido — porque estuda demais (tô brincando, claro) — você é o tipo de cara que assusta, porque cita livros, estuda, pergunta o que o outro leu… E ninguém gosta muito de discutir com alguém que leu. Se você cita, a pessoa se irrita: “Ah, tá se achando só porque leu.” Às vezes é isso mesmo: leu, logo sabe. Mas, do ponto de vista ideológico, qual esquerda não gosta de você?

01:12:07 Elias Jabbour
A chamada esquerda radical. Eles dizem que sou reformista, que não acredito na revolução…

01:12:13 Reinaldo Azevedo
Sério?

01:12:14 Elias Jabbour
Sim, tem tudo isso.

01:12:15 Reinaldo Azevedo
Te chamam de reformista?

01:12:16 Elias Jabbour
Reformista. Dizem que não acredito na revolução, que sou moderado demais, enfim…

01:12:20 Reinaldo Azevedo
Jura que ainda tem isso?

01:12:21 Elias Jabbour
As pessoas confundem o que é ser radical. Acham que radical é ser “porra louca”. Mas, na verdade, radical é ter visão de processo histórico. Eu me considero um radical porque vou à raiz das coisas, porque tenho essa visão histórica. E muita gente se esquece de que, muitas vezes, ser amplo na política é ser radical no conteúdo.

Por exemplo, perguntam: “Como é que um comunista vai trabalhar para o Eduardo Paes?” E eu respondo: primeiro, porque a figura do Eduardo Paes, e o projeto que ele encabeça, não representa uma contradição antagônica que me obrigue a me colocar em oposição a ele. A contradição antagônica hoje no Brasil é entre fascismo e democracia — e entre destruição e projeto nacional de desenvolvimento.

E, inclusive, para que haja uma transição ao socialismo no Brasil, eu preciso sobreviver enquanto força política. Comunista isolado é comunista morto. Isso é uma lição histórica. A independência, a república, a abolição, a Revolução de 30, a eleição do Lula em 2002 — todos esses marcos civilizatórios só aconteceram porque se formaram maiorias heterogêneas. Não foi um partido sozinho que construiu isso.
E hoje, dentro dessa maioria heterogênea que vai se formando ao longo do processo político, eu vejo o Eduardo Paes da seguinte forma: ele simboliza duas coisas. Primeiro, ele derrotou o bolsonarismo em seu próprio reduto. Segundo, é uma figura que realiza…

01:14:09 Reinaldo Azevedo
Pô, meu irmão, no primeiro turno ainda!

01:14:12 Elias Jabbour
Exato. Ele realiza um movimento que vai de uma visão originalmente liberal de mundo — que é a origem dele — para uma abertura de mente voltada a uma visão desenvolvimentista. Ele acaba sendo, na minha visão — não sei se ele se vê assim — uma figura que transita entre JK e Teotônio Vilela.

JK porque o Eduardo Paes pensa grande. Ele é alguém que vai fazer o que for necessário para alcançar um objetivo estratégico, que é recolocar o Rio de Janeiro como vanguarda da resistência nacional. Inclusive, como contraponto ao esvaziamento dos ideais brasileiros na região leste, por conta da hegemonia do agronegócio.

A ideia do ponto de saída para Xangai (no Peru) pode transformar o Centro-Oeste no novo centro dinâmico da economia brasileira. O Eduardo resiste a isso. E para isso, ele abraça um projeto de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, ele carrega algo do Teotônio Vilela. Por quê? Porque a história vai empurrando o Eduardo para um dilema: ele pode acabar se tornando um símbolo da resistência democrática. Alguém que saiu de um campo e foi para outro. Não por vontade própria, mas porque a história coloca isso diante dele.

01:15:30 Reinaldo Azevedo
E o que coloca isso diante dele, me permita dizer — o Eduardo é meu amigo há muitos anos, nosso amigo agora — é que ele vai fazendo as escolhas certas. E quando eu digo escolhas certas, falo também do ponto de vista ético. Ele é colocado diante de dilemas… e escolhe o lado bom.

01:15:54 Walfrido Warde
É o dilema do Bonner no Instagram: vinho tal ou vinho tal?
01:15:58 Elias Jabbour
(risos) Ele me colocou à frente do principal instituto de pesquisa do Rio de Janeiro, o Instituto Pereira Passos, mesmo enfrentando resistência de parte da opinião pública carioca. Disseram: “Vai colocar um comunista? Vai transformar isso num aparelho ideológico?” Mas não tem nada disso. Eu tenho uma trajetória como cientista. E o Eduardo bancou essa escolha. Sou grato por isso. Mas minha opinião sobre ele não tem relação com isso. É sobre a figura histórica que ele está se tornando.
01:16:31 Reinaldo Azevedo
Também acho. No Rio de Janeiro e na política nacional.
01:16:36 Elias Jabbour
Sim, com certeza. Eu sou muito preocupado com o pós-Lula. E o Eduardo é uma das figuras que considero essenciais nesse cenário. Acho que ele transita mesmo entre JK e Teotônio Vilela. É assim que devemos observá-lo, na minha humilde opinião.

01:16:48 Walfrido Warde
Daqui a pouco a gente vai ter que encerrar, pelo que ouvi dizer. Mas queria saber um pouco mais de você: como é que era a sua vida na China?
01:16:57 Elias Jabbour
Então, eu visito a China já há mais de 20 anos.
01:17:01 Walfrido Warde
Mas agora, nesse período mais recente, em que você ficou um ano e pouco lá.

01:17:04 Elias Jabbour
Então, eu passava o dia inteiro no banco, chegava em casa à noite e estudava. E nos finais de semana ou eu estava estudando pro livro que escrevi, ou viajando pelo país. Porque decidi repetir o que fiz em 2004 e 2009, quando fui terminar o mestrado e o doutorado na China.

01:17:23 Walfrido Warde
Você não ia, de vez em quando, comer um pato de Pequim com a presidenta Dilma?
01:17:26 Elias Jabbour
Não.
01:17:27 Walfrido Warde
Nada?
01:17:27 Elias Jabbour
Não, não. A presidenta Dilma… Ela tem tantas qualidades.
01:17:34 Reinaldo Azevedo
“Odeio pato.”
01:17:36 Elias Jabbour
A presidenta Dilma é workaholic, né? Então ela passava os finais de semana trabalhando — e ainda passa. No meio de relatórios e tudo mais. Praticamente não tinha vida privada na China. Não tem. Porque ela gosta de trabalhar. Ela é alcoólatra de trabalho, digamos assim — e vejo isso como uma virtude. E eu também sou. Então, nos finais de semana, eu fazia minhas leituras de pesquisa e viajava o país inteiro, como fiz agora. Refiz o mesmo trajeto que percorri em 2004 e 2009. Só que, dessa vez, viajei a China inteira de trem de alta velocidade. Fui ao Xinjiang, a várias províncias, a todas as capitais de província e regiões autônomas, parando pelo caminho. Então, passei praticamente todos os finais de semana na China fazendo isso: estudando, escrevendo e viajando pelo interior do país.
01:18:25 Walfrido Warde
Quais são as regiões da China que ainda permanecem como China “não plenamente desenvolvida e pujante”?
01:18:31 Elias Jabbour
Há regiões muito pobres? Sim, há. Por exemplo, uma parte central da província de Gansu — achei muito pobre, inclusive. Agora, mesmo assim, está mais rica do que em 2004, quando a visitei pela primeira vez. No Xinjiang, por exemplo: em 2004, a ideia era transformá-lo no maior parque petroquímico da Ásia Central. Eu achava aquilo uma loucura. Hoje, o Xinjiang é o maior parque petroquímico da Ásia Central. Em 2004, eles tinham o sonho de transformar o deserto em mar, por exemplo. E eles vão fazer isso.
01:19:18 Reinaldo Azevedo
Antônio Conselheiro vai baixar lá.
01:19:19 Elias Jabbour
Vai mesmo. São três rios que vão usar as geleiras do Himalaia para irrigar todas aquelas terras, reflorestar. A China é o país que mais refloresta no mundo.
Então, quando me perguntam — veja bem, abrindo um parêntese aqui — o que é socialismo? É uma forma histórica com um checklist de itens A, B, C, D…? Não. Pra mim, não é.
O socialismo, enquanto conceito que se manifesta no movimento real, é essa sociedade que entrega 45 mil quilômetros de linha de trem de alta velocidade, 44 cidades com metrôs — sendo que 41 eram deficitárias — e que planeja transformar o Xinjiang num parque petroquímico.
O que isso quer dizer? Que ela faz a transição do campo pra cidade usando mecanismos como inteligência artificial, Big Data, 5G — explorando ao máximo essas inovações tecnológicas disruptivas para a física e para a planificação econômica.
Então, o que acontece? Na China, quando um engenheiro de projeto ou um economista de projeto observa, por exemplo, uma ponte, ele tem que analisar: isso vai gerar emprego ou desemprego? Se for gerar desemprego, o projeto pode ser deixado de lado por enquanto. Porque é preciso priorizar a criação de 12 milhões de empregos urbanos por ano.
O socialismo chinês, portanto, se caracteriza pela transformação da ciência em instrumento de governo. Num mundo obscurantista — esse mundo que está aí — eu acho que o socialismo hoje se manifesta no movimento real como essa transformação da ciência, da razão, em instrumento de governo. É essa a forma histórica que vejo na China hoje.
01:21:04 Reinaldo Azevedo
Elias… Você, um quadro do PCdoB, estudioso, geógrafo, mestre, doutor, professor… O que está acontecendo com a avaliação do governo Lula?
Outro dia eu brinquei: se colocassem o governo Lula num tomógrafo, iriam encontrar um monte de coisas boas, alguns achados complicados, mas muitos achados bons.
O Datafolha pode estar um pouco errado com aqueles 24% de aprovação, mas não muito. Eles têm pesquisas internas também. E os 41% de reprovação, idem.
O que está acontecendo? Não basta mais ter o menor desemprego, a maior renda desde o real… Ok, a inflação dos alimentos pesa, mas nem tanto assim.
O que está acontecendo? E como é que a gente sai dessa?
01:22:01 Elias Jabbour
Primeiro, tem algo mais profundo: a transformação da nossa sociedade à imagem e semelhança da sociedade americana. É um fenômeno típico do Império Romano. O Império romanizava sua periferia, e a periferia passava a se comportar como Roma.
O Brasil hoje é muito mais parecido com os EUA. E o que aconteceu lá? O Biden entregou o país com inflação baixa, desemprego baixo…
01:22:27 Reinaldo Azevedo
O Krugman, coitado, escreve sobre isso todo dia.
01:22:30 Elias Jabbour
…e não ganhou a eleição. O mesmo acontece no Brasil. Por quê? Porque nesses dois países existe um forte sentimento, em tese, antissistema. Mas, no fundo, é antipolítica.
Então, não adianta entregar o que tiver que entregar. Já está arraigado esse sentimento antipolítica.
A segunda questão é que o governo Lula, com todos os feitos que entregou até agora — dentro das mínimas possibilidades de um governo cercado, tutelado — ainda assim tem se mostrado incapaz, diante das circunstâncias, de entregar algo fundamental para enfrentar o fascismo: mobilidade social.
Mesmo com um programa como o Nova Indústria Brasil, que está andando, sendo a maior política industrial dos últimos anos — mais de 300 bilhões — o Brasil ainda está longe de uma reindustrialização.
E sem industrialização não há mobilidade social.
01:23:34 Reinaldo Azevedo
Você não tem o ganho de renda necessário para… Então, o principal alimento do…

01:23:39 Elias Jabbour
…do fascismo é exatamente a falta de mobilidade social. E nós não estamos entregando isso no Brasil.
01:23:43 Reinaldo Azevedo
Como bem sabe o Trump, né?
01:23:45 Elias Jabbour
Exatamente. Então, vejo isso. E aqui coloco o desafio de nós, da esquerda, pensarmos o país com mais sofisticação. Pensar o Brasil para daqui a 10, 20, 30, 40 anos.
Precisamos ser um país capaz de entregar esperança para nossa população. Eu não quero que meu filho precise morar fora. Ao mesmo tempo, quero que esse país se recolocar no mundo.
Mas hoje temos sido muito incapazes de fazer isso, Reinaldo. Nós, da esquerda mesmo, temos sido incapazes de entregar essa demanda estratégica — de pensar estrategicamente, com sofisticação, o futuro do Brasil.
A queda de popularidade do Lula, os problemas do governo Lula, também são problemas do campo progressista, da esquerda tradicional, que tem sido incapaz de pensar estrategicamente o país.
O deputado, nosso amigo Zé Genoíno, fala sempre de frente ampla. E eu digo: Genoíno, eu não acredito que o Brasil seja uma frente ampla.
O problema é que nós somos incapazes de construir uma ciência que nos capacite a governar o país dentro de uma frente ampla. Isso é ciência.
E essa falta de capacidade forma um caldo de impotência diante da tarefa de governar.
01:25:01 Reinaldo Azevedo
Eu venho ali da década de 80, quando comecei, estava na política e tal… Faltam pensadores. O debate está pobre no Brasil. Faltam seminários. Onde estão os nossos intelectuais? Onde estão os encontros?

01:25:22 Walfrido Warde
O que está acontecendo?
01:25:24 Elias Jabbour
Acho que o problema é o seguinte: a contrarrevolução que acometeu o Brasil nos anos 90, com a eleição do Collor em diante, atingiu em cheio a capacidade do país de pensar.
As ciências sociais e humanas passaram a ser cada vez mais especializadas. Hoje, um aluno de economia sai da faculdade sem capacidade de olhar o todo. É um mero especialista.
As métricas de produtividade científica no Brasil obrigam um jovem a escrever 4 ou 5 artigos por ano. Ele se concentra só na sua área e não tem tempo de pensar com visão de totalidade.
Criou-se um ambiente intelectual, pós-década de 90, muito parecido com o dos anos 20 no Brasil. País triste, mestiço, que não vai pra frente.
A década de 90 é uma reedição trágica da década de 20.
E surge uma intelectualidade de direita e de esquerda com esse pensamento: “esse país não vai pra frente”; “temos que entrar na globalização de forma subalterna”; “esse país tem um passado que o condena: escravista, patriarcal…” — todo esse revisionismo.
Acabamos incorporando uma visão pequena de país, de submissão.
01:26:43 Reinaldo Azevedo
É a primeira visão do Raízes do Brasil: estamos condenados por uma origem que nos marca para sempre.
01:26:50 Elias Jabbour
Exatamente isso.
01:26:51 Reinaldo Azevedo
E depois o Sérgio reviu tudo.
01:26:52 Elias Jabbour
Exatamente. A década de 90 é isso. Ela matou a capacidade brasileira de pensar. Matou.
Não surgem mais pensadores. A minha grande inspiração intelectual é o Inácio Rangel, um economista.
Hoje não temos mais um Inácio Rangel. Não temos um Celso Furtado. Não há mais pensadores com visão de totalidade.
Veja o professor Belluzzo, por exemplo — uma raridade. Você o coloca numa banca de Filosofia, ele vai. Numa de História, ele vai. Em qualquer uma…
01:27:19 Reinaldo Azevedo
Ele veio aqui e deu um show.
01:27:20 Elias Jabbour
Ele é isso. Mas é um dos últimos. A Maria da Conceição Tavares também era uma das últimas.
Agora, a minha geração… é terrível.
01:27:29 Reinaldo Azevedo
Você se sente meio solitário às vezes?
01:27:32 Elias Jabbour
Muito. Muito solitário.

01:27:34 Reinaldo Azevedo
Fale sobre isso.
01:27:36 Elias Jabbour
É aquela coisa… Enfim. Primeiro, tem as opiniões que tenho sobre a China. E, com modéstia à parte, são opiniões próprias. Eu construí minhas ideias sobre a China. Vocês vão perceber, ao lerem o livro, que são elaborações originais sobre o tema.
01:27:49 Reinaldo Azevedo
Você tem fãs fanáticos também, né? Você sabe disso. Fãs fanáticos.
01:27:54 Elias Jabbour
Não, mas eu acho que… Talvez as pessoas me admirem não porque eu sou um cara bom ou ruim.
01:27:59 Reinaldo Azevedo
Mas é bom.
01:28:00 Elias Jabbour
Eu trouxe uma visão que remonta às décadas de 1940 e 1950, de pessoas que pensavam com uma visão de totalidade. Isso é algo novo hoje em dia e, às vezes, causa choque. Agora, sim, eu sou solitário. Sofro com isso.
Evidente que tenho minha família: a Michele, minha companheira, e meu filho, o Kalil.
01:28:17 Reinaldo Azevedo
Quantos anos tem o Kalil?
01:28:18 Elias Jabbour
O Kalil tem 5 anos.
01:28:18 Reinaldo Azevedo
E é o seu sobrenome também, né?
01:28:22 Elias Jabbour
É, exatamente. Então, tenho pessoas ao meu redor que me ajudam muito — militantes do PCdoB — e isso ajuda a curar um pouco essa solidão. Mas é uma solidão intelectual muito grande.
Não sou um gênio incompreendido, longe disso. Sou apenas um cara muito esforçado. Conheço poucas pessoas com a minha determinação. Meu talento, talvez, não seja o maior — tem mais de 300 mil pessoas com mais talento que eu. Mas minha determinação é rara.
Sofro com isso porque tenho uma visão de socialismo diferente da média, uma visão de Brasil diferente da média, uma visão de capitalismo, de mercado, de propriedade privada… Tudo isso diferente da média.

01:28:58 Reinaldo Azevedo
Alguém do governo já te chamou para conversar? Tipo: “vem cá, me explica a China”?
01:29:04 Elias Jabbour
Não. Nunca fui chamado.
01:29:08 Reinaldo Azevedo
Esse governo conversa pouco com as pessoas.
01:29:10 Elias Jabbour
Estou sendo muito honesto. Nunca ninguém me chamou, tipo: “Elias, venha aqui no Planalto, faça uma exposição sobre como funciona a economia chinesa”. Nunca aconteceu.
E também acho que o Itamaraty, por exemplo, é uma burocracia tão autossuficiente, tão fechada em si mesma, que nem dá espaço.
Além disso, tenho opiniões que às vezes são iconoclastas. Para me convencer de alguma coisa é muito difícil. Eu abandono teorias importadas com facilidade. Não tenho apego a nada. Tenho apego à realidade, à verdade diante de mim, aos conceitos que se manifestam no movimento real.
Meu compromisso é captar o fluxo dos acontecimentos e, a partir disso, transformar em conceitos, categorias e teorias.
Isso me torna uma pessoa solitária. Porque eu não vou ficar repetindo que a China é a mesma coisa de 40 anos atrás.
O problema é que vivemos num positivismo, num neopositivismo pós-moderno, que vê tudo como fotografia. Para muitos, tudo se resolve com aplicação criativa de teorias prontas.
01:30:23 Reinaldo Azevedo
Seu livro ganhou o prêmio especial do Book Award of China 2022. A China te dá atenção?
01:30:31 Elias Jabbour
Com esse prêmio, sim. Mas aí é que está. Já me chamaram de agente chinês. Xi Jinping. O Demétrio Magnoli fez isso. Disse que eu era agente, propagandista chinês.
01:30:45 Walfrido Warde
Ele te chamou de Xi Jinping?
01:30:48 Elias Jabbour
Tudo isso nas redes sociais.
01:30:51 Reinaldo Azevedo
Mas é verdade ou é mentira? Porque uma vez falaram que eu era agente da CIA. Já fui da CIA e da China! Mas o dinheiro nunca chegou.
Eu falava pra minha companheira, minha mulher que está aqui: “Chegou o dinheiro da CIA?” Ela respondia: “Não chegou”.
01:31:06 Walfrido Warde
Já fui da CIA e da China, mas o dinheiro veio do Paraguai.
01:31:10 Reinaldo Azevedo
Você é agente chinês?
01:31:11 Elias Jabbour
Não. E é isso que eu digo: se alguém puder provar que eu sou agente…
01:31:17 Reinaldo Azevedo
O governo chinês já te chamou pra conversar? Algo sério?
01:31:21 Elias Jabbour
Agente chinês? Não, não. Já conversei com muitos chineses quando estive lá. Mas não foi nada parecido com o que faz o Wikileaks, tipo se reunir em embaixada para passar informação do Brasil.
Mas me sinto, talvez, até mais valorizado fora do Brasil do que aqui. Tenho mais espaço intelectual lá fora do que aqui. O que é incrível.
01:31:49 Reinaldo Azevedo
Indo pro encerramento: tem algum pensamento de direita no Brasil que você respeita?
01:31:54 Elias Jabbour
Tem.
01:31:55 Reinaldo Azevedo
Quem? Se não quiser falar…
01:31:58 Elias Jabbour
Não, tranquilo. Atualmente, muito poucos. Mas, por exemplo, gosto muito do Eugenio Gudin. Gosto de ler o Gudin.
01:32:07 Reinaldo Azevedo
Achei que você ia citar alguém contemporâneo. Mas eu também gosto.
01:32:12 Walfrido Warde
Os escritos do Napoleão Bonaparte.
01:32:14 Reinaldo Azevedo
(Risos)
01:32:15 Elias Jabbour
É que a direita brasileira não produz mais pensamento novo.
01:32:20 Walfrido Warde
Ela não produz um pensamento eficiente.
01:32:22 Elias Jabbour
É, mais eficiente. Mas hoje não tem um pensamento de direita no Brasil que eu leve a sério. O que levo a sério é o movimento político, a forma como eles fazem política diferente.
E como usam as ferramentas tecnológicas da sociedade a favor deles. Isso sim é digno de atenção.
01:32:40 Reinaldo Azevedo
Quem é o grande intérprete do Brasil, independentemente de ideologia? Ou, se não um só, três grandes intérpretes que a gente precisa ler para entender a alma brasileira, a metafísica do país, sua razão de ser?
01:33:23 Elias Jabbour
Tenho três. O primeiro, disparado, é Inácio Rangel — pensador marxista. A tese dele sobre “economia do projetamento”, de 1959, e o livro A Inflação Brasileira, de 1962, o tornariam Prêmio Nobel se fosse anglo-saxão.
Infelizmente, foi derrotado pelo Celso Furtado no campo da heterodoxia.
Rangel, pra mim, foi o mais capaz.
Os outros dois que admiro muito são Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro.
01:34:01 Reinaldo Azevedo
Fale um pouco de cada um e por quê.
01:34:04 Elias Jabbour
O Florestan é uma exceção na USP — no bom sentido. Porque a USP produziu um pensamento que se opunha ao varguismo. A USP, o São Paulo Futebol Clube e o Estadão surgem como instituições para contrapor o varguismo.
01:34:20 Reinaldo Azevedo
A piada é ótima.
01:34:22 Elias Jabbour
Mas é verdade!
01:34:23 Reinaldo Azevedo
Piada de intelectual, mas boa.
01:34:25 Elias Jabbour
Florestan pode ser comparado ao Clóvis Moura, que também compreendeu profundamente a dialética racial no Brasil.
Ele representa uma visão marxista sofisticada, que incorpora a questão racial à análise da revolução burguesa ou não no Brasil.
Eu sou fanático pelo Florestan.
E o Darcy… essa loucura apaixonada dele pelo Brasil é inspiradora. Ele se debruça sobre as entranhas da formação brasileira.
Essa ideia de que o Brasil é uma nova civilização, uma nova Roma, me inspira profundamente. Eu vejo o Brasil com esse papel no mundo.
O Inácio Rangel, apesar de comunista e nacionalista, trabalhou na assessoria econômica de Getúlio Vargas, junto com outros quatro — os chamados “boêmios cívicos”. Cada um de uma linha: ele comunista, outro positivista, outro integralista…
01:35:32 Walfrido Warde
Romulo Almeida trabalhava com a gente.
01:35:34 Elias Jabbour
Cinco nordestinos. E como nordestinos, não deviam satisfação a paulista nem a carioca.
Lá nos Estados Unidos, eles diziam: “Vamos te alcançar”.
01:35:45 Reinaldo Azevedo
Alguém já te disse que sua fala tem um certo ritmo do Darcy? Como ele, você come algumas sílabas, fala rápido, às vezes as ideias atropelam as palavras.
01:36:02 Elias Jabbour
É porque tenho um problema de comunicação.
01:36:04 Reinaldo Azevedo
Não, é maravilhoso. E você sempre está dizendo coisas boas. E é CDF, né? O Darcy escreveu tudo aquilo sobre o povo brasileiro, mas também O Processo Civilizatório, que é uma obra de gente que senta, estuda meticulosamente antropologia.
E você é esse cara. É um prazer falar contigo.
01:36:33 Elias Jabbour
Quero só fazer uma observação…
01:36:35 Reinaldo Azevedo
Todas as pessoas que recomendaram você pro programa estavam certas.
01:36:37 Elias Jabbour
Só quero me reportar a algo: tenho um problema de comunicação. Estou no espectro autista, diagnosticado tardiamente, o que prejudicou muito minha capacidade de me comunicar.
Com 5 anos de idade, eu não falava. Só fui falar com muito esforço depois dos 5 — e era muito gago.
01:36:58 Reinaldo Azevedo
Aqui você não gaguejou.
01:37:04 Elias Jabbour
Mas minha fama é de gaguinho por aí. Tenho essa questão de comunicação que me atrapalha por causa do espectro, mas também tenho hiperfoco — que é outra característica.

01:37:18 Reinaldo Azevedo
Que é boa, não atrapalha em nada. Você é o máximo.
01:37:23 Elias Jabbour
Obrigado, Reinaldo. Fico emocionado. Já me convido para voltar aqui outras vezes.
01:37:28 Reinaldo Azevedo
Já está convidado.
01:37:28 Elias Jabbour
E estar com vocês dois… Mesmo quando estávamos em campos políticos diferentes, Reinaldo, eu sempre te vi como um gênio da raça, entendeu?

01:37:35 Reinaldo Azevedo
Sabe que “gênio da raça” é uma expressão do Glauber Rocha, que ele usava para o Golbery do Couto e Silva?

01:37:41 Elias Jabbour
E era mesmo, né? Assim como o Geisel também era. Você é como o Geisel era: um gênio da raça. Um militarista, mas alguém que personifica essa capacidade. Igual ao Eduardo Paes, só que de outra forma, né?
01:37:53 Reinaldo Azevedo
Pô, meu irmão, eu sou muito mais bonito que o Eduardo Paes.
01:37:56 Elias Jabbour
(Risos) Não, mas você simboliza uma resistência democrática no Brasil que remonta ao Teotônio. Então, acho que vocês são Teotônios Vilela de formas diferentes.
E o Walfrido é o cara que…
01:38:06 Walfrido Warde
Que mais tem cabelo no Brasil.
01:38:09 Elias Jabbour
(Risos) Não, a questão do Walfrido é que, onde ele intervém, ele intervém com uma qualidade que é muito rara, entendeu?
01:38:17 Reinaldo Azevedo
Deixa eu falar uma coisa sobre o Walfrido — depois ele vai brigar comigo por isso. Mas somos muito amigos. Está aqui minha mulher, a mulher dele também…
É que, se não for assim, com tanta rasgação de seda…
01:38:29 Walfrido Warde
Daqui a pouco vamos terminar nus aqui.
01:38:31 Reinaldo Azevedo
Às vezes a gente viaja junto e fica fazendo concurso de palavra cruzada no avião. Porque eu sempre acho que o avião vai cair — e só não cai porque eu fico rezando pra ele não cair.
Mas o Walfrido é uma das pessoas mais brilhantes que eu conheço e, ao mesmo tempo, uma das mais discretas.
Porque boa parte do que ele sabe, a gente nem sabe que ele sabe.
01:38:58 Walfrido Warde
Nem eu mesmo sei (risos).
01:39:01 Elias Jabbour
Um grande brasileiro.
01:39:04 Reinaldo Azevedo
E, portanto, é uma delícia ser amigo de alguém assim — como também foi uma delícia te entrevistar.
01:39:10 Elias Jabbour
Eu que agradeço. Contem comigo para o que puderem, para o que precisarem. Contem com a minha… com a minha pouca capacidade, mas estou à disposição de vocês. Muito obrigado.
A China tem dois milhões de pessoas que são ao mesmo tempo engenheiros de projeto, arquitetos e economistas de projeto. Estão trabalhando, direta e indiretamente, no planejamento do país.
01:39:42 Reinaldo Azevedo
Dois milhões?
01:39:44 Elias Jabbour
Com três computadores na frente.

01:39:45 Reinaldo Azevedo
Já fica o gancho para a próxima entrevista.
Todos vocês que recomendaram o Elias Jabbour… fizeram muito bem. Inclusive o Igor, do Flow, lá atrás.
Estou até me penitenciando — deveríamos ter convidado antes.
Essa conversa foi uma delícia.
Você não está mais só. Agora somos seus amigos.
01:40:13 Elias Jabbour
Estou emocionado. Vou acabar chorando aqui. Obrigado.
01:40:16 Reinaldo Azevedo
Obrigado por essa entrevista maravilhosa.
Ó, se inscrevam no canal. Elias Jabbour, certo? Onde? Só aqui, né? É isso aí. Obrigado. Se inscrevam aí. Tchau.

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