Nosso querido Caetano Veloso comenta, numa de suas canções, que “alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.
A letra fala de meninos de rua, narcotráfico, as coxas duras da baiana, chicletes do ódio, Jorge Benjor, mas também remete a um tema, a nova ordem mundial, que, em 1991, quando Caetano compôs a música, não era tão quente.
Hoje é.
A emergência do Sul Global produziu, de fato, uma nova ordem mundial.
Para entender melhor o assunto, entrevistei o professor Dawisson Belém Lopes, professor de relações internacionais com passagem por várias universidades mundo à fora.
Nesse trecho, falamos da imprensa brasileira, e por isso lembrei de Caetano. Para o professor Dawisson, a velha imprensa brasileira, a tradicional, está “fora da nova ordem mundial”.
Enquanto as mídias, no mundo inteiro, tanto em países ricos do Ocidente, quanto no Norte Global, tem convergido para um intenso nacionalismo jornalístico, associando-se aos grandes interesses nacionais, a nossa segue na contramão, vinculada a “visões da velha elite de colonos”.
“E talvez os episódios da guerra na Ucrânia e do atual conflito em Gaza”, diz o professor, tenham mostrado com mais clareza uma subserviência exagerada a interesses nem sempre coincidentes com os do Brasil.
“A perspectiva brasileira dos problemas fica, por vezes, esquecida”, lamenta Lopes.
Chico Buarque, em outra jóia da MPB, parece analisar à perfeição os erros da nossa imprensa apontados pelo professor: “o tempo passou na janela, e só Carolina não viu”.
Essa é a primeira parte de uma entrevista com o professor Dawisson Belém Lopes. As outras partes podem ser lidas nos links abaixo.
Primeira parte: Imprensa brasileira está fora da nova ordem mundial
Segunda parte: Geopolítica de Lula recupera o sonho de uma diplomacia independente
Terceira parte: Forças Armadas precisam cortar o cordão umbilical com os EUA
Quarta parte: Rejeição a Lula entre evangélicos não mudou muito depois da polêmica sobre Israel
Quinta parte: O Brasil ainda tem uma elite de colonos
***
Segue o trecho da entrevista:
Cafezinho: O que você pensa sobre o papel da mídia tradicional no Brasil? Uma característica muito forte nela, a meu ver, é um repúdio, um ódio, um medo muito grande a qualquer plano de desenvolvimento. Não quer saber se o Estados Unidos faz, se a Europa faz, se a China faz. Aqui não pode fazer e pronto. O mundo inteiro está construindo o trem de alta velocidade, por exemplo, mas aqui não pode. O que você acha dessa campanha eterna da nossa mídia contra projetos de desenvolvimento?
Dawisson: A imprensa brasileira tem um histórico de independência em relação a governos desde o século 19, e é uma imprensa liberal. Pensando-a como um ator coletivo – o que é difícil, eu sei, pois há muita heterogeneidade dentro dessa categoria –, de fato, o que se passa no Brasil é um pouco diferente do que se vê ao redor do mundo. Há uma tendência crescente no mundo, hoje, a certo nacionalismo jornalístico.
Ou seja, os órgãos de comunicação costumam se alinhar e buscar uma perspectiva do país, da sociedade, da nação. Essa convergência é notada, inclusive, em democracias ricas. Existe uma proximidade entre as posições editoriais da grande imprensa estadunidense e as posições da Casa Branca, do Departamento de Estado, das principais burocracias dos Estados Unidos.
Acho que na Europa isso também acontece – na Alemanha, na França, no Reino Unido, na Itália. Para não falar dos grandes países emergentes – muitos deles nem têm instituições de democracia representativa, tais como são encontradas no Ocidente. É interessante notar que alguns desses países emergentes têm investido num caminho que são órgãos de imprensa criados para projetar internacionalmente a visão nacional do país. Eu estou pensando aqui no papel que tem a imprensa da China, da Rússia, da Turquia, do Qatar. Tais Estados buscam valer-se dessas ferramentas para difundir uma perspectiva nacional, quando não governamental, ao redor do mundo.
No Brasil, é bem diferente. Não se vê a convergência governo-imprensa das democracias desenvolvidas e muito menos o dirigismo dos grandes países emergentes do Sul Global, não é? É uma imprensa que, frequentemente, até se posiciona numa direção contrária à dos projetos de desenvolvimento nacional. Que evita tratar da necessária distribuição da renda do país. É uma imprensa que parece muito alinhada às visões da velha elite de colonos – do agronegócio, da Faria Lima, do grande capital industrial. E isso é outro problema persistente.
Novamente: há diversidade nesse universo, é preciso ressaltar.
É um universo heterogêneo. Mas quando se fala de grande imprensa, dos grandes jornais, das redes de televisão nacionais, aí a visão de mundo é padrão: conservadora nos temas econômicos, americanizada culturalmente, muito ocidental no alinhamento geopolítico. E talvez os episódios da guerra na Ucrânia e do atual conflito em Gaza tenham mostrado com mais saliência ainda, com mais clareza, como há essa predominância de valores do Ocidente, essa visão de mundo enviesada. A perspectiva brasileira dos problemas fica, por vezes, esquecida.
Quem é Dawisson Belém Lopes
Professor de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi pesquisador visitante na University of Oxford (Reino Unido, 2022-2023) e no German Institute of Global and Area Studies (Alemanha, 2013); e professor visitante da Université Catholique de Louvain (Bélgica, 2016). É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, conselheiro internacional do British Journal of Politics and International Relations (BJPIR) e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Realizou comunicações sobre temas internacionais a convite dos governos de Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Portugal, Uruguai e Brasil, além da ONU e de diversas universidades ao redor do mundo. Colabora regularmente com os cursos de formação do Instituto Rio Branco, academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Rede social: https://x.com/dbelemlopes
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