Seca, conflito, corrupção: os motivos da crise alimentar no país africano são variados. Etíopes têm ido para a cama com fome, enquanto a distribuição de ajuda emergencial sofre reveses.
Em 1985, o músico e ativista Bob Geldof organizou os lendários shows beneficentes Live Aid em Londres e na Filadélfia para arrecadar doações em resposta a uma devastadora crise de fome que durava dois anos na Etiópia.
Quase quatro décadas depois, Geldof talvez precise voltar à ativa e planejar outro evento de tais proporções se as previsões de especialistas em fome na Etiópia se confirmarem. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, cerca de 20 milhões de pessoas na Etiópia precisam urgentemente de assistência alimentar.
Um ex-diretor do PMA, que não quis ser identificado, disse à agência de notícias Associated Press que o país está “marchando em direção à fome” mais uma vez.
Em algumas regiões, apenas uma minoria consegue receber ajuda – Million Haileselassie/DW
Getachew Reda, presidente da administração interina da região do Tigré, no norte do país, declarou recentemente que mais de 90% da população da área corria risco de fome e morte. As autoridades do Tigré alertaram sobre uma “fome crescente” que poderia se igualar ao desastre de 1984-85, que custou a vida de centenas de milhares de pessoas.
O governo em Adis Abeba inicialmente tentou ignorar esses relatos e os definiu como “imprecisos”, acusando Reda de “politizar a crise”.
Do conflito à fome
Em 2022, um painel da ONU publicou um relatório acusando o governo da Etiópia de usar “a fome como método de guerra”, entre outras violações de direitos humanos cometidas durante o conflito do Tigré.
Tendo em vista a cada vez maior conscientização sobre a cumplicidade do governo com a fome, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, decidiu suavizar seu tom acusatório e divulgou uma declaração conjunta com a ONU na sexta-feira (02/02).
Nela, o primeiro-ministro “associa a situação atual ao fato de as comunidades civis nessa região ainda não terem se recuperado do impacto do conflito”, disse Laetitia Bader, vice-diretora para a África da Human Rights Watch (HRW).
Após anos de combates mortais, o governo agora está reconhecendo discretamente que as pessoas das regiões do Tigré e de Amhara estão enfrentando um novo inimigo: a fome.
“Conflito e seca estão intrinsecamente ligados”
De acordo com os números mais recentes, pelo menos 372 pessoas já morreram em consequência da fome nos últimos seis meses no conflituoso norte do país. A escassez de alimentos se acelerou principalmente devido à guerra na região do Tigré e na vizinha Amara – e a pior seca em décadas no Chifre da África só agravou a situação.
“Não há dúvida de que o conflito e a seca estão neste momento intrinsecamente ligados no norte da Etiópia e contribuem para a devastadora situação de insegurança alimentar lá”, disse Bader à DW.
O persistente estado de insegurança no local, tanto no aspecto político como agrícola, fez com que apenas metade das terras agrícolas do Tigré fosse usada na principal estação de plantio no ano passado, de acordo com a ONU.
Milhares de pessoas foram forçadas a se deslocar como resultado da guerra no Tigré – Million Haileselassie/DW
Na maioria dos casos, apenas cerca de um terço da produção estava aproveitável. Em algumas áreas do Tigré, esse rendimento chegou a 2%.
“Nada do que plantamos [neste ano] resultou em colheita, e agora há fome no país”, disse à DW Fitsum Woldegbriel, do distrito de Atsbi, no leste do Tigré. Ela acrescentou que, em todo o ano de 2023, só viu chuva na província duas vezes.
A senhora de 65 anos disse que nem sabe mais como alimentar sua família. “No passado, quando havia um problema semelhante, você ia a algum lugar e implorava [por algo] para comer. Agora não temos nem mesmo energia para ir.”
Corrupção governamental
O PMA decidiu suspender a ajuda alimentar ao Tigré em março de 2023 após relatos de roubo generalizado de doações de ajuda, especialmente grãos. Em junho, a suspensão foi ampliada para toda a Etiópia em resposta ao desvio contínuo de doações.
“A programação da ajuda alimentar foi interrompida na Etiópia em um momento crítico por muitos meses, enquanto a ONU e o governo dos EUA investigavam as alegações de roubo generalizado de suprimentos de ajuda em todo o país”, disse Bader.
As autoridades norte-americanas disseram acreditar que o roubo de grãos pode ter sido o maior desvio deliberado de grãos da história – quando essas commodities seguem com alta demanda em meio às exportações limitadas da Ucrânia devido à guerra contra a Rússia.
“Obviamente, é essencial que os doadores e a comunidade de ajuda investiguem e tomem medidas contra o roubo de suprimentos de ajuda”, disse Bader. “Mas, ao mesmo tempo, é fundamental que isso não ocorra às custas das muitas pessoas necessitadas.”
Para onde foi a ajuda?
Ainda não está claro quem se beneficiou com o roubo de doações de ajuda. Alguns grupos humanitários culparam os funcionários do governo etíope, enquanto outros apontaram o dedo para os poderosos militares do país.
“Esse é um governo – e as forças que [o primeiro-ministro] supervisiona – que deliberadamente impediu o acesso de civis a alimentos como parte de sua estratégia de guerra na região do Tigré”, disse Bader.
Laetitia Bader, da HRW: Investigação sobre roubo de alimentos não pode impedir que ajuda chegue aos necessistados – Human Rights Watch
Após a descoberta da fraude generalizada, o PMA tomou uma série de precauções para evitar futuros roubos, e retomou parte de sua limitada distribuição de ajuda à Etiópia há apenas seis meses. Os EUA só reiniciaram seu programa de ajuda em dezembro.
Mas um mês depois da retomada das entregas de ajuda pelo PMA e por outras agências de ajuda e governos, apenas uma pequena fração das pessoas no Tigré disse estar recebendo ajuda alimentar.
O Tigray Food Cluster, grupo de agências de ajuda copresidido pelo PMA e que trabalha com autoridades etíopes, anunciou há duas semanas que somente 14% das mais de 3 milhões de pessoas previstas para receber ajuda na região puderam se alimentar.
Crianças mais afetadas
Yosef Gebremichael, enfermeiro infantil na região do Tigré, está preocupado que a fome se torne novamente a maior causa de morte de crianças no país, e disse à DW que a taxa de desnutrição infantil triplicou nos últimos meses.
“Em apenas alguns meses, mais de 80 crianças com desnutrição grave receberam apoio em nosso hospital. E mesmo aquelas que receberam alta do tratamento tiveram que voltar novamente.”
Enquanto isso, na região vizinha de Amhara, a distribuição de ajuda também parece estar sofrendo contratempos, dificultada por uma rebelião desde agosto passado, que, segundo especialistas, está obstruindo as iniciativas das organizações humanitárias no local.
Bader, da HRW, preocupa-se com o fato de que qualquer possível escalada do conflito em Amhara resultaria em mais sofrimento. “As forças do governo e seus aliados restringiram a assistência humanitária, visaram atores humanitários, visaram deliberadamente fontes de alimentos e fontes de subsistência durante todo o conflito [no Tigré]”, disse.
“Homenagem a Abiy é irônica”
O primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, acaba de retornar de uma recente viagem à Itália, onde recebeu a Medalha Agrícola – o maior prêmio concedido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
O primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, foi recentemente reconhecido por sua “visão, liderança e compromisso com a segurança alimentar” pela ONU – United Nations FAO 2024
O órgão da ONU disse que o prêmio reconheceu a “visão, a liderança e o compromisso de Abiy com a segurança alimentar e a nutrição, bem como a busca de soluções inovadoras para a autossuficiência do trigo no contexto de circunstâncias desafiadoras e em rápida mudança”.
“É claro que há uma ironia”, disse Bader, referindo-se à homenagem a Abiy diante do desastre da fome na Etiópia.
Publicado originalmente pelo DW em 04/02/2024
Por Sertan Sanderson
Million Haileselassie Brhane contribuiu para este artigo.
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