É impossível falar em desafios da esquerda e do Brasil sem levar em consideração que vivemos um momento de hegemonia internacional da extrema direita e do conservadorismo.
As consequências da globalização financeira e da desregulamentação do capitalismo foram o desmonte dos estados de bem-estar social e o ressurgimento da extrema direita, que hoje governa a Itália, a Holanda e a Suécia; é uma alternativa real na França; consolida-se na Polônia e na Hungria; pode retomar o governo dos EUA; é ameaça na Alemanha; e, derrotada no Brasil, acaba de vencer na Argentina.
As crises de 2008-9 e 2011-12, a Covid-19 e a quebra das cadeias produtivas e redes logísticas abriram oportunidades para países como o Brasil, ao mesmo tempo em que a crise climática agravou a necessidade de cada nação buscar segurança ambiental, energética, alimentar e tecnológica.
Políticas industriais subsídios passaram a fazer parte das escolhas dos EUA e da Europa, ao lado do protecionismo e de uma aberta guerra comercial e tecnológica contra a China, que cada vez mais ameaça a hegemonia dos norte- americanos.
No Brasil, os anos Temer e Bolsonaro foram de desmonte do Estado e das políticas sociais e de renda próprias da Constituição de 1988, dos governos do PT e do ciclo desenvolvimentista —o que é per si uma contradição com os países desenvolvidos, onde a presença do Estado e de políticas industriais e sociais é cada vez maior.
Após vencer quatro eleições e só perder a quinta pela prisão ilegal de Lula, o PT e a esquerda voltaram ao governo, mas em condições de minoria na Câmara e no Senado.
Esse retorno se deu com um desafio: como governar e retomar o fio da história do desenvolvimento sem unidade nacional ou sem uma aliança entre a esquerda e setores empresariais? Explico. A esquerda, sozinha, não tem maioria para fazer reformas estruturais.
Também não consegue, sozinha, construir um projeto nacional de desenvolvimento que resolva os pontos de estrangulamento do crescimento —os juros e a concentração de renda, realimentados pela estrutura tributária baseada no consumo e na produção.
As bancadas conservadoras, de direita e dos bancos bloqueiam os instrumentos que poderiam superar os impasses nacionais: baixa poupança, investimento e produtividade.
Revelada na pandemia e na Guerra da Ucrânia, nossa dependência em chips, fertilizantes, agrotóxicos, fármacos e produtos químicos é quase total.
O Brasil pode e deve superar essa dependência, que é de interesse nacional, não só da esquerda. A condição está em nossa capacidade de construir um bloco social que impulsione reformas que viabilizem desenvolvimento com distribuição de renda.
Nossa capacidade de mobilizar a sociedade para essas reformas encontra limites nos partidos e na hegemonia da direita conservadora, razão pela qual o PT e as esquerdas precisam mudar a correlação de forças no Congresso e na disputa eleitoral, política e cultural. Sem isso, será impossível.
A extrema direita se apropriou dos avanços tecnológicos e das guerras culturais e nos impuseram derrotas políticas e eleitorais graças à aliança com os interesses econômicos das elites financeiras e agrárias e com os neopentecostais.
Para enfrentar os desafios da próxima década, o PT e as esquerdas necessitam de renovação a fim de lidarem com essa nova conjuntura, condição para serem instrumentos da mobilização que garanta base parlamentar e apoio social para as reformas necessárias.
O Brasil precisa fazer 100 anos em 10. Com educação e inovação, reforma tributária que inverta a concentradora estrutura de impostos, redução dos juros, uma reforma político-institucional e a redefinição do papel do Estado. Precisamos também recuperar nossa soberania na política de desenvolvimento.
É um equívoco histórico o pressuposto de que o Brasil pode resolver seus problemas ou via austeridade ou apoiado na agregação de valor da agricultura e da mineração, associada com a negação do Estado e das políticas industriais.
As consequências são conhecidas: crescimento que beneficia as elites e pobreza com perda da soberania nacional.
Para que possamos retomar o caminho do desenvolvimento, não há opção para o Brasil a não ser assumir seu papel na América do Sul e no mundo e criar as condições para uma revolução social com unidade nacional.
José Dirceu é ex-ministro da Casa Civil do Governo Lula (2003-2005)
Paulo
23/01/2024 - 22h49
O que seria uma “revolução social com unidade nacional”? Sim, porque a ideia de unidade nacional pressupõe um certo nacionalismo, conceito, por sua vez, historicamente rejeitado pela esquerda internacional…