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Novela ‘Vai na Fé’ muda retrato da violência contra a mulher na teledramaturgia

Resposta do público amplia o debate sobre o enfrentamento ao abuso, a busca por justiça e as consequências do trauma Publicado em 24/07/2023 – 06h09 Por Nara Lacerda – Repórter Brasil de Fato – São Paulo (SP) Brasil de Fato — No ar na faixa das 19 horas da TV Globo, a novela Vai Na […]

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Globo/Divulgação

Resposta do público amplia o debate sobre o enfrentamento ao abuso, a busca por justiça e as consequências do trauma

Publicado em 24/07/2023 – 06h09

Por Nara Lacerda – Repórter Brasil de Fato – São Paulo (SP)

Brasil de Fato — No ar na faixa das 19 horas da TV Globo, a novela Vai Na Fé tem surpreendido público e crítica, não só pelos históricos índices de audiência, mas, principalmente, por levar o abuso sexual contra mulheres à trama central do enredo.

O texto de Rosane Svartman tem como protagonista a vendedora de marmitas Sol, que abandonou o sonho de ser cantora e dançarina em nome da sobrevivência. A personagem, interpretada por Sheron Menezes, é negra, periférica e evangélica, caracterização que, por si só, confere aspectos raros à trama.

Na juventude, a mocinha foi vítima de um estupro e engravidou por causa da violência. Vinte anos depois, ela ainda lida com as repercussões emocionais e sociais do crime e com as cobranças da filha sobre a identidade do pai.

Ao receber um convite para voltar ao mundo artístico, Sol reencontra o abusador Théo (Emílio Dantas) e o ex-namorado Ben (Samuel de Assis). A partir daí, as consequências do estupro passam a compor a espinha dorsal do enredo. Da reflexão sobre como enxergava a violência sofrida ao momento de revelação do abuso para a família, Sol percorre um caminho cruelmente comum a milhares de mulheres brasileiras.

Maria Cristina Mungioli, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), afirma que o trabalho de Svartman demonstra atenção aos movimentos e ao contexto social.

“Ela está muito ligada e engajada com essas questões dentro das tramas. Você percebe esse tipo de construção da trama como um todo. A representação de pessoas negras, com personagens plenos e protagonistas, isso tudo está ligado a todo um contexto atual de discussão e de debate em torno das questões de representação e representatividade na televisão.”

Essa proximidade da trama com a realidade repercutiu positivamente com o público. Vai na Fé resgatou a audiência do horário e teve crescimento consistente desde que entrou no ar, em janeiro passado. Em reta final, marca mais de 25 pontos por dia na grande São Paulo há duas semanas. Cada ponto equivale a mais de 74 mil televisores ligados.

Na internet, o impacto da atração é explícito. Frequentemente a novela figura entre os assuntos mais comentados do Brasil no Twitter. No Google, o termo alcançou picos de busca em maio e, desde então, tem alta frequência de pesquisas.

O interesse se repetiu na semana passada, quando a trama mostrou a conclusão do julgamento do vilão por estupro. O tribunal serviu de cenário para um resumo de todos os crimes cometidos por Théo, que abusou de outras mulheres, inclusive da própria esposa.

Na sentença final, o personagem foi absolvido por falta de provas, o que causou reações não só entre os personagens, mas também no público. Nas redes sociais, as publicações sobre o tema foram tomadas por reflexões sobre como o enredo repetiu a vida real.

Lorena Rúbia Pereira Caminhas, pesquisadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual de Campinas (Geict/Unicamp), afirma que o público tem papel essencial no alcance dos debates que a novela propõe.

“Sobretudo, tem um papel do público de tirar a novela do espaço doméstico e levar essa novela e essa narrativa para outros espaços sociais, como as redes sociais, de levar a discussão além do que a novela está colocando. A narrativa da novela traz a temática e traz o problema, mas o público não se limita. As pessoas conversam entre si, dialogam sobre as questões que estão acontecendo na novela e vão complexificando aquilo que está sendo dito.”

Outro exemplo na trama foi o período em que a advogada Lumiar (Carolina Dieckmann), com experiência na defesa de mulheres abusadas, esteve ao lado do vilão. Nas redes, a postura foi muito criticada, mas também houve a reflexão sobre as fragilidades da personagem diante do criminoso.

Lumiar e Théo se conheceram na faculdade e mantiveram proximidade por vinte anos. Ele a salvou de um tiro e prestou apoio em momentos cruciais do enredo da advogada. O público não deixou de levar esses pontos em consideração e, novamente, conectou a história à realidade. O movimento, segundo Lorena Rúbia Pereira Caminhas, é positivo para a novela, que se alimenta das reações.

“Isso se conecta com a questão das demandas sociais, que estão por trás de uma outra narrativa sobre a violência. Como o público tem essa possibilidade de ir construindo junto a narrativa, nesses espaços de mídia social, a novela tem condições de tentar se aproximar mais das demandas e entender como essas interpretações sobre a violência são complexas, sobretudo no debate público.”

Inovação temática

Não é a primeira vez que uma novela retrata histórias de abusos contra mulheres. A teledramaturgia brasileira conta com uma lista vasta de personagens marcantes, que foram vítimas de violência doméstica ou estupro. O vilão com contradições e abusivo também não é novidade.

O que muda no texto de Svartman é a colocação do crime na história da mocinha e no enredo principal e o debate franco sobre os diversos aspectos da violência. A trama percorre a trajetória da protagonista desde o abuso até a busca por justiça, duas décadas depois.

Vai na Fé também confere contexto realista ao vilão. Théo é um empresário rico e renomado, tem amigos e amigas que o defendem e que acreditam que ele nunca seria capaz de cometer um estupro. Por boa parte do enredo, conta com apoio da própria esposa, em um cenário de normalização da violência doméstica também extraído das estatísticas da vida real.

Essa persona é construída desde o início da trama. Quando abusou de Sol, o vilão era melhor amigo de Ben, o então namorado da protagonista. Nos anos seguintes, continuou fazendo vítimas, além de se envolver em negócios ilegais, mas nunca foi desmascarado. Com isso, Vai na Fé lembra ao público que o abusador pode ser qualquer um.

Para a professora Mungioli o enfrentamento do abuso, do patriarcado e da misoginia como fio condutor do texto é a grande novidade da novela, principalmente no horário das 19h.

“Os vilões, já há algum tempo, apresentam mais profundidade em termos de personagem. Então não é algo novo. O que considero mais interessante é essa possibilidade de mostrar a personagem vilã, que comete atos contra a mulher, e essa personagem também vai arcar com as consequências desses atos. Ele está perdendo credibilidade por conta da violência que ele exerce contra as mulheres.”

A novela também abre espaço para uma prestação de serviços sem precedente na história do gênero. No enredo, estão presentes as dificuldades que a sociedade brasileira ainda tem para reconhecer o abuso, os obstáculos psicológicos, econômicos e sociais que impedem denúncias e até mesmo os aspectos legais do tema, de maneira didática e acessível.

Na trama, o vilão ainda não foi punido. Entre o público, as expectativas de qual será o final de Théo se multiplicam. O texto, no entanto, já aponta para determinada superação por parte da mocinha Sol, que está crescendo como cantora e recebeu um pedido de casamento de Ben.

Falta a justiça pela violência cometida. Aqui cabe trazer à lembrança a icônica novela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, que também guardava forte conexão com a realidade.

No Brasil de 1988, o vilão corrupto Marco Aurélio (Reginaldo Faria) consegue fugir no fim da trama e dá uma banana para o país de dentro de um helicóptero. Já a vilã, Maria de Fátima (Glória Pires), que deu golpes até na própria mãe, se casa com um príncipe da Lombardia.

O retrato parece fazer sentido para época e até mesmo para os dias de hoje. No entanto, mesmo que avanços sociais dos últimos anos sejam insuficientes, eles ainda podem levar Vai na Fé a punir Théo sem parecer inverossímil.

Edição: Leandro Melito

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