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O dia seguinte ao Lula Livre
CEPESP | 12 DE NOVEMBRO DE 2019
Por Cláudio Couto*
Ensaio originalmente publicado no Jornal Nexo
Saída da prisão do maior líder da esquerda brasileira pode criar uma agenda positiva para a oposição, desde que ela não se esgote na figura pessoal de Lula
Lula foi o sujeito político constante da política brasileira recente, desde sua primeira vitória presidencial, passando pelos anos de sua sucessora e pela eleição que foi impedido de disputar. Na primeira fase, figurou o protagonismo inescapável do candidato favorito, a princípio, e do presidente popularíssimo, depois. Na segunda fase, manteve-se pela expectativa inicial de que Dilma lhe cederia vez e, posteriormente, de que ele poderia lhe corrigir os rumos. Na terceira fase, permaneceu por ter sido o candidato mesmo quando não era candidato – “Haddad é Lula” –, nada expressando melhor essa imagem do que a icônica foto do ex-prefeito de São Paulo a espreitar por detrás da máscara do ex-presidente.
Passada a eleição e empossado Bolsonaro, Lula seguiu presente na campanha do “Lula Livre”, que em meio ao esfacelamento da oposição e, em especial, da esquerda, tornou-se o samba de uma nota só. A sorte dessa oposição é que o governo Bolsonaro fez em boa medida seu trabalho, com suas recorrentes e aparentemente congênitas crises internas. Uma vez liberto, o ex-presidente ganha força para atuar como a liderança de que hoje a oposição e a esquerda se veem desprovidas. Para isso, conta com o carisma, a trajetória e a habilidade de negociador. Resta saber como efetivamente se comportará nesse papel. Embora já se tenha o “Lula Livre”, falta ainda o “Lula Inocente”.
Embora essa possa ser uma nova palavra de ordem, é insuficiente para conferir à oposição de esquerda a capacidade de efetivamente se construir como alternativa política real – ainda mais se sucumbir ao messianismo ou ao sebastianismo lulistas. Se isto ocorrer, o papel do líder tende a ser não apenas diminuído, mas também arriscado: caso não seja inocentado, dará um abraço de afogado em seu partido e, talvez, até noutros setores da esquerda. Já que não poderá ser candidato se permanecer condenado, a insistência em seu nome tende a dificultar a construção de qualquer alternativa eleitoral em tempo hábil.
O retorno de Lula ao proscênio das articulações políticas da oposição contribui também para o reforço da dinâmica polarizadora entre o bolsonarismo e o petismo. Note-se, porém, que polarização reforçada não implica necessariamente em maior radicalização. A polarização política é inerente à disputa política democrática, contrapondo adversários que se mostram como alternativas claras. Desde o Plano Real até 2014, a polarização nacional se dava entre o PT – hegemonizando a esquerda – e o PSDB – que angariou um apoio que ia da centro-esquerda à direita tradicional. O “Lulinha paz e amor” de 2002 e a chegada ao governo federal puxaram o PT para a centro-esquerda, deslocando o PSDB cada vez mais para direita. Contudo, os seguidos escândalos que afetaram não só ao PT, mas ao conjunto da classe política tradicional, abriram espaço para o surgimento de candidaturas antissistema.
À centro-esquerda, Marina Silva ameaçou ser essa candidatura antissistema em sua versão moderada e democrática, mas não vingou. Na extrema-direita, Bolsonaro – nutrido também pelo lavajatismo – apresentou-se como a opção radical e venceu. Produziu-se assim uma nova polarização, assimétrica, entre a esquerda moderada, social-democrata e maculada por escândalos de corrupção, dominada pelo PT, e a extrema-direita bolsonarista, com seu neofascismo subletrado, caracterizado por religiosidade antissecular, intolerância, teorias conspiratórias, elogio da violência e ultraliberalismo única e exclusivamente econômico.
Com Lula solto e atuante, o bolsonarismo ganha o pretexto para retomar com força o discurso polarizador antipetista, anti-institucional (vejam-se as críticas ao STF) e pretensamente moralizador. Desvia também o foco, ainda que momentaneamente, dos problemas que afligem o governo, o partido presidencial e a família do presidente. Para o bolsonarismo, quanto mais acerbo for esse embate, mais produtivo é seu labor de cerrar fileiras entre a parcela da sociedade que lhe apoia e teme tanto o esquerdismo como a corrupção (ao menos se for a corrupção da esquerda). Resta saber como agirá Lula.
Caso se concretize a disposição de sair da prisão mais à esquerda do que entrou, dificultará a construção de pontes com setores da sociedade que se opõem à extrema-direita no governo, mas não compram o pacote petista completo, sobretudo com seus elementos politicamente mais radicais e economicamente mais duvidosos. Mesmo no campo da própria esquerda partidária, a construção de alianças não convive bem com hegemonismo petista, que tradicionalmente buscou sujeitar os demais partidos ao seu domínio. Cabe observar também que alguns laços parecem rompidos de forma dificilmente reversível, como no caso do PDT de Ciro Gomes – verdade se diga, em boa parte por responsabilidade deste.
À oposição, que contou muito até agora com a incompetência do governo, falta uma agenda positiva. Essa agenda não equivale à entronização de uma liderança carismática como Lula – isso pode até mesmo ser um impeditivo para o seu sucesso. Porém, essa liderança tem a capacidade de costurar essa agenda se usar sua força, mas não se impuser como sendo ela pessoalmente a solução – ainda mais tendo em vista os obstáculos legais que ainda remanescem para sua candidatura. Também há a possibilidade de Lula entrar na lógica da polarização encruada, tão ao gosto do bolsonarismo. Se isso ocorrer, abre-se espaço para alguém buscar ocupar o centro (o que inclui a centro-direita e a centro-esquerda). O desdobrar da luta política brasileira no próximo período depende em boa medida das escolhas que fizer Lula no futuro imediato. No passado recente elas não foram das melhores, como ficou claro na opção por Dilma (alguém desprovido do perfil exigido pelo cargo) e na insistência da própria candidatura (quando ela já não era viável). Agora, no esplendor de seus 74 anos, Lula precisará mostrar o quanto aprendeu com os erros para não os repetir. E, claro, precisará convencer os seus a aceitar estrategicamente algo menos do que tudo – como fez ao final da greve de 1979, saindo carregado nos braços pelos seus companheiros de sindicato.
* Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV- Easp (Fundação Getúlio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo).
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