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Elias Jabbour e os “cem anos de humilhação” do Brasil

A entrevista do especialista em China, Elias Jabbour, para o programa Reconversa, de Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde, traz um conteúdo de altíssima qualidade para entendermos os movimentos geopolíticos frenéticos dos últimos dias. Pensar a geopolítica hoje é pensar a China. E pensar a China é entender o seu desafio histórico, que ela enfrenta muitas […]

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A entrevista do especialista em China, Elias Jabbour, para o programa Reconversa, de Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde, traz um conteúdo de altíssima qualidade para entendermos os movimentos geopolíticos frenéticos dos últimos dias.

Pensar a geopolítica hoje é pensar a China.

E pensar a China é entender o seu desafio histórico, que ela enfrenta muitas vezes à sua revelia, de lutar contra o imperialismo ocidental.

Se alguém achava, a propósito, que o conceito de imperialismo tinha ficado para trás, mofando em prateleiras com livros dos anos 60, ou restrito às discussões de grupos esquerdistas, deve estar revendo seu pensamento, após o presidente Donald Trump iniciar um ataque econômico à China de proporções sem precedentes na história moderna.

Tudo bem que os EUA impõem sanções e tarifas a outros países desde que existem. O livre-comércio promovido pelo chamado Ocidente coletivo, sobretudo após a II Guerra e após a criação de organismos multilaterais para gerir questões relativas ao comércio internacional, sempre teve de se submeter aos caprichos dos interesses norte-americanos.

Mas o que está havendo hoje tem proporções que jamais haviamos testemunhado.

A corrente de comércio entre China e Estados Unidos em 2024 foi de US$ 688 bilhões, ou 11% de toda a corrente de comércio da China com o mundo no mesmo ano, que totalizou mais de 6 trilhões de dólares – que por sua vez representa um pedaço importante de todo o comércio internacional.

O governo Trump impôs a China tarifas acumuladas, sobre todos os seus produtos, de 125%!

A China, até o momento, retaliou com tarifas de 84%, igualmente sobre todos os produtos exportados pelos Estados Unidos.

Não há outra forma de definir isso, tanto pela truculência como pelas consequências, como um ato de guerra, que se torna mais explícito depois que Trump “recuou” na aplicação de tarifas draconianas para outros países, reduzindo-as para a base de 10% – mas mantendo a carga máxima contra a China.

“A guerra é uma mera continuação da política por outros meios”, dizia Clausewitz, e não há mais dúvidas que o tarifaço de Trump, mesmo que ele tenha decidido por uma “pausa” de 90 dias, marca o início da III Guerra Mundial.

Naturalmente, o desafio da humanidade será circunscrevê-la ao máximo a escaramuças puramente econômicas, evitando conflitos militares, mas seria ingênuo acreditar que isso será possível por muito tempo.

A escalada retórica e comercial dos EUA contra o Irã, por exemplo, extremamente agressiva, repleta de ameaças diretas de bombardeio, é também uma forma de ameaçar a China, que por ser o maior importador mundial de petróleo, seria a principal vítima de uma explosão nos preços dos combustíveis fósseis.

Uma guerra no Oriente Médio envolvendo o Irã teria como principal consequência uma terrível disparada nos preços do petróleo.

Para os EUA, ao contrário, esse problema poderia ser contornado em alguma medida, já que o país voltou a ser o maior produtor de petróleo do mundo.

Esta semana ainda, o presidente da Ucrânia, Zelensky, iniciou uma nova e bizarra estratégia de propaganda anti-China, ao apresentar alguns mercenários chineses que lutavam no lado russo, e que foram presos em campo de batalha, como representantes do Estado chinês.

Ora, há mercenários de todas as etnias lutando em ambos os campos de batalha. Os russos também identificaram brasileiros lutando ao lado dos ucranianos, e Putin não veio à mídia internacional tentar vender a ideia de que isso seria a prova de que o Brasil estaria envolvido em favor da Ucrânia!

Tanto Zelensky quanto Netanyahu, o primeiro ministro de Israel, querem transformar seus próprios conflitos numa grande guerra global dos “valores ocidentais” contra os inimigos, representantes aqui por uma associação difusa (imaginária, com certeza, mas isso não importa) entre forças islâmicas, movimentos progressistas, russos, não alinhados do Sul Global e, sobretudo, a China.

Thomas Friedman, conhecido porta-voz dos interesses ocidentais nos jornalões americanos e europeus, veio a público outro dia, no meio da tempestade causada pelas tarifas, falar na necessidade de preservar as “democracias industriais” da Europa contra o avanço da China, o que é uma maneira um tanto bizarra, cínica, de criar mais um bloco ideológico.

Entretanto, o que estamos vendo, por trás da cortina de bravatas e movimentos especulativos nas bolsas, é bastante simples: as “democracias industriais” do Ocidente estão ficando para trás, por diversas razões.

O seu modelo político se fossilizou numa caricatura formalista de democracia, em que oligarquias se revezam no poder. A Europa, ainda uma das regiões com bons índices de igualdade, prefere morrer abraçada a um imperialismo genocida, inimigo de soluções diplomáticas, sustentado por mentiras, do que abraçar corajosamente uma nova ordem mundial em que os países do Sul Global, encabeçados pela China, deveriam ter mais voz e presença nos grandes debates.

Mas a Europa, mal ou bem, ainda pode viver algumas décadas de confortável declínio, desfrutando de sua maravilhosa malha de trens de alta velocidade, suas universidades públicas e gratuitas, e todas as conquistas liberais e democráticas que conquistou, sobretudo a partir do final da II Guerra.

O Brasil, não. O Brasil, assim como seus irmãos do Sul Global, ainda vive os seus “100 anos de humilhação”.

Os chamados 100 anos de humilhação da China é o período que vai desde o final da guerra do Ópio, vencida pela Inglaterra, até a tomada do poder pelo Partido Comunista em 1949.

Entretanto, poderíamos estender este “século da humilhação”, em que os chineses se viram submetidos a toda espécie de espoliação e opressão por parte das potências ocidentais, até o final da década de 70, já no século XX, quando a China finalmente pacifica algumas de suas próprias contradições internas, rompe o isolamento internacional e inicia um processo acelerado de desenvolvimento que até hoje impressiona o mundo.

“O socialismo chinês, portanto, se caracteriza pela transformação da ciência em instrumento de governo. Num mundo obscurantista — esse mundo que está aí — eu acho que o socialismo hoje se manifesta no movimento real como essa transformação da ciência, da razão, em instrumento de governo”, diz Jabbour, na entrevista referida.

Essa é a saída para o Brasil e para todo o Sul Global: ciência. E isso vale inclusive para a construção de soluções políticas.

“O problema é que nós somos incapazes de construir uma ciência que nos capacite a governar o país dentro de uma frente ampla. Isso também é ciência”, defende Elias Jabbour, depois de lembrar que os grandes avanços nacionais se deram quando a esquerda rompeu seu próprio isolamento.

“Comunista isolado é comunista morto. Isso é uma lição histórica. A independência, a república, a abolição, a Revolução de 30, a eleição do Lula em 2002 — todos esses marcos civilizatórios só aconteceram porque se formaram maiorias heterogêneas. Não foi um partido sozinho que construiu isso.”

Hoje à frente do Instituto Pereiras Passos, uma estatal vinculada ao município do Rio de Janeiro, Jabbour tenta convencer o prefeito Eduardo Paes da necessidade de maior integração da economia brasileira com o pólo mais dinâmico da economia global, a China.

“Eu sou muito preocupado com o pós-Lula. E o Eduardo é uma das figuras que considero essenciais nesse cenário. Acho que ele transita mesmo entre JK e Teotônio Vilela. É assim que devemos observá-lo, na minha humilde opinião”.

Ele explica a comparação: Paes seria um JK pela visão originalmente liberal, que vai migrando para uma outra, mais desenvolvimentista. Um exemplo, diz Jabbour, tem sido a resistência de Paes a um projeto de país cujo principal eixo econômico seria o agronegócio do centro-oeste, o que poderá se consolidar através do novo porto de Chancay, no Peru, por onde a safra e os minérios nacionais deverão ser escoados no futuro, quando o governo terminar de construir as rodovias, ferrovias e linhas fluviais necessárias.

Já esse lado “Teotônio Vilela”, um senador conservador e liberal que a história empurrou para a resistência contra a ditadura militar, também estaria presente em Eduardo Paes, e por causa de dilemas semelhantes.

Candidato provável ao governo do Rio em 2026, e com compromisso público de apoiar a reeleição de Lula, Paes tem “objetivo estratégico”, segundo Jabbour, de recolocar o Rio de Janeiro como “vanguarda da resistência nacional”, contra os valores reacionários representados pelo centro-oeste, pelo bolsonarismo e pela extrema direita fascista.

Ele foi “alguém que saiu de um campo e foi para outro. Não por vontade própria, mas porque a história colocou isso diante dele”.

Para Elias – e depois do apocalipse tarifário de Trump, o comentário ganha mais força que nunca – “a política externa americana é o Velho Testamento. A da China é Confúcio. A noção de ‘comunidade de destino compartilhado´ não foi inventada pelo Partido Comunista — vem de Confúcio.

“A chance de reindustrialização do Brasil”, prossegue Elias, “e falo isso para o Eduardo Paes, passa por uma integração produtiva total com a China. Só que a gente precisa dialogar com os chineses como adultos.”

Para Elias, essa integração total seria o oposto de entregar a soberania brasileira a outro país, e sim aproveitar a imensa corrente de comércio existente entre Brasil e China para financiar um projeto de modernização da infraestrutura nacional e do nosso sistema produtivo.

“O tipo de comércio que temos hoje com a China é um comércio colonial. Ele não traz retorno estratégico. Não entrega futuro. É imediatista”, alerta Jabbour.

Jabbour incita a comunidade pensante nacional a desenvolver uma ciência “que seja capaz de captar o conceito que se manifesta no movimento real da sociedade chinesa”, e usar o aprendizado para aperfeiçoar, à nossa maneira, a nossa própria sociedade.

Ele diz que se sente “muito solitário” no debate político nacional. Diz ter problemas à esquerda, por adotar uma posição ao mesmo tempo extremamente pragmática, tanto na questão da necessidade de construção de alianças e frentes amplas, como por sua rejeição a dogmas e soluções ideológicas pré-determinadas.

“Uma coisa é lutar por igualdade, paz, justiça, pelo socialismo, outra é se deixar levar por ilusões, pelo mundo da pantera cor-de-rosa. É preciso saber se a ciência corrobora essa hipótese [do socialismo]. Então, essa é a pergunta que eu tento responder desde 94, 95, com mais de 30 anos estudando na China.”

“As pessoas confundem o que é ser radical. Acham que radical é ser porra louca”, diz Elias, em outra parte da entrevista.

“Na verdade, radical é ter visão de processo histórico. Eu me considero um radical porque vou à raiz das coisas, porque tenho essa visão histórica. E muita gente se esquece de que, muitas vezes, ser amplo na política é ser radical no conteúdo”.

Já na direita, Elias encontra problemas por sua defesa inabalável de uma ciência do que ele chama de “projetamento”, ou seja, numa economia baseada em projeto, que seria exatamente a fórmula encontrada pela China para viabilizar o socialismo.

Seus autores preferidos, nessa linha, são Ignacio Rangel e Luiz Gonzaga Belluzzo, além de Darcy Ribeiro e Celso Furtado.

A contradição principal hoje no Brasil de hoje, segundo Jabbour, não é propriamente entre fascismo e democracia, mas entre o fascismo entreguista e neoliberal e um projeto nacional de desenvolvimento.

“Você não está mais sozinho”, procurou consolá-lo Reinaldo Azevedo, ao fim da entrevista. O autor deste artigo também discorda de Jabbour neste ponto, e de alguns outros.

Primeiro, Jabbour não está sozinho. Ele pode alegar que está em minoria, mas não sozinho. Há gente tentando pensar o Brasil de forma estratégica. Entretanto, de fato, talvez seja desesperadamente necessário construir mais espaços, eventos e encontros onde seja possível agregar essas pessoas e essas ideias.

Outra crítica, mais filosófica, e que nem é tanto uma crítica mas antes um complemento as ideias de Jabbour, é que a cultura do planejamento deve incorporar, necessariamente, o planejamento político, e se precisamos pensar projetos econômicos de longo prazo, isso também deveria valer para a política. Esse ponto é particularmente importante porque nos permite afastar um pouco as nuvens de pessimismo.

Antes da China atingir o estágio político no qual ela deu início a um processo incrivelmente rápido de desenvolvimento, ela experimentou antes um tempo longo e doloroso de amadurecimento político.

Estamos vivendo os nossos próprios “cem anos de humilhação”. Derrubamos duas “dinastias”, a neoliberal dos anos 90, e a fascista, em 2022, mas ambas ainda mantém seus tentáculos no jogo político de hoje. Apenas quando as esmagarmos de vez, e isso irá exigir talvez uma estratégia de médio e longo prazo, criaremos condições para iniciarmos o nosso próprio e acelerado processo de desenvolvimento, cortando esse país, como fez a China, com trens de alta velocidade!


Recado importante, eu preparei uma transcrição, devidamente revisada, de toda a entrevista de Jabbour ao Reconversa. É um material realmente valioso para entender a China e o que ela representa para o debate da política e da geopolítica, tanto no Brasil como no mundo.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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