Por Arnaud Bertran, no X
Esta é, na verdade, uma admissão extraordinária para um vice-presidente dos EUA.
Vance explica que “a ideia da globalização era que os países ricos avançariam ainda mais na cadeia de valor, enquanto os países pobres produziriam itens mais simples.”
No entanto, ele lamenta que isso não funcionou como planejado: conforme explica, os países pobres (principalmente a China) não quiseram permanecer eternamente como mão de obra barata e começaram a subir na cadeia de valor por conta própria. Por isso, segundo ele, a globalização foi um fracasso.
Isso significa que o objetivo da globalização não era reduzir as desigualdades globais, mas sim mantê-las, instituindo um sistema de hierarquia econômica permanente onde os países ricos manteriam o controle sobre os setores mais lucrativos, enquanto relegavam os países pobres a uma subordinação perpétua na produção de menor valor.
Isso basicamente explica 90% da política externa dos EUA nos últimos anos: o pensamento colonialista continua vivo, e a mudança estratégica recente dos EUA — abandonando o antigo “Consenso de Washington” de mercados “livres” em favor de uma tentativa mais explícita de conter e restringir o desenvolvimento da China — surge precisamente dessa mentalidade.
Desde controles de exportação de semicondutores até restrições a investimentos, essas políticas não têm a ver com “segurança nacional” em um sentido genuíno — são uma tentativa de preservar uma ordem econômica global onde, simplificando, os países mais pobres “sabem seu lugar designado e permanecem nele”. No cerne disso está a “ameaça chinesa”: uma China que saiu da faixa econômica que o Ocidente lhe atribuiu.
É profundamente irônico quando se reflete: um jogo global supostamente criado para “difundir princípios de mercado” pelo mundo está sendo abandonado justamente porque funcionou *bem demais*. Quando a China obteve mais sucesso que o esperado, a resposta não foi celebrar a validação do sistema, mas mudar suas regras. Exatamente porque o verdadeiro objetivo não dito — agora explicitamente declarado pelo vice-presidente dos EUA — era manter a desigualdade global, não eliminá-la.
Resumindo, caso ainda não tenham entendido, isso envia uma mensagem clara ao mundo em desenvolvimento: o desenvolvimento econômico exigirá desafiar uma ordem econômica dominada pelos EUA, que enxerga seu progresso como uma ameaça, não um sucesso. Inclusive, as palavras de Vance podem acelerar justamente a redistribuição de poder econômico global que ele lamenta, levando mais nações a perceber que o desenvolvimento genuíno requer independência estratégica de um sistema criado para mantê-las em seu “lugar designado”.
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Transcrição completa da fala de Vance:
“Porque havia dois conceitos que a nossa turma de liderança tinha quando se tratava da globalização.
A primeira é assumir que podemos separar o fabrico das coisas da sua conceção.
A ideia da globalização era que os países ricos avançariam mais na cadeia de valor, enquanto os países pobres fariam as coisas mais simples.
Abriríamos a caixa de um iPhone e nela estaria escrito: “Concebido em Cupertino, Califórnia”.
Agora, a implicação, claro, é que seria fabricado em Shenzhen ou noutro lugar qualquer.
E, sim, algumas pessoas poderiam perder os seus empregos no fabrico, mas poderiam aprender a desenhar ou, para usar uma frase muito popular, aprender a programar.
Mas acho que nos enganámos.
Acontece que as regiões geográficas que fabricam os produtos tornam-se muito boas na conceção das coisas.
Existem efeitos de rede, como todos compreendem bem.
As empresas que concebem os produtos trabalham com as empresas que os fabricam.
Partilham a propriedade intelectual, partilham as melhores práticas e, por vezes, até partilham empregados essenciais.
Ora, partimos do princípio de que as outras nações nos seguiriam sempre na cadeia de valor, mas acontece que, à medida que foram melhorando na parte inferior da cadeia de valor, começaram também a recuperar o atraso na parte superior.
Fomos espremidos de ambos os lados.
Esse foi o primeiro conceito da globalização.
Penso que o segundo é que a mão de obra barata é fundamentalmente uma muleta.
E é uma muleta que inibe a inovação.
Posso mesmo dizer que é uma droga em que demasiadas empresas americanas se tornaram viciadas.
Ora, se se pode fazer um produto mais barato, é demasiado fácil fazê-lo em vez de inovar.
E quer estivéssemos a deslocalizar fábricas para economias de mão de obra barata ou a importar mão de obra barata através do nosso sistema de imigração, a mão de obra barata tornou-se a droga das economias ocidentais.
E eu diria que se olharmos para quase todos os países, do Canadá ao Reino Unido, que importaram grandes quantidades de mão de obra barata, vemos a produtividade estagnar.
E não me parece que seja isso.
Não se trata de um acaso total.
Penso que a relação é muito direta.
Um dos debates que se ouve sobre o salário mínimo, por exemplo, é que o aumento do salário mínimo obriga as empresas a automatizarem-se.
Assim, um salário mais elevado no McDonald’s significa mais quiosques.
Seja qual for a sua opinião sobre a sensatez do salário mínimo, não vou comentar isso aqui.
As empresas que inovam na ausência de mão de obra barata são uma coisa boa.
Penso que a maioria de vós não está preocupada com a obtenção de mão de obra cada vez mais barata.
Estão preocupados em inovar, em construir coisas novas.
A velha fórmula da tecnologia é fazer mais com menos.
Vocês estão todos a tentar fazer mais com menos.
Todos os dias.
Por isso, peço aos meus amigos, tanto do lado dos optimistas tecnológicos como do lado dos populistas, que não vejam o fracasso da lógica da globalização como um fracasso da inovação.
Na verdade, eu diria que a fome de mão de obra barata da globalização é um problema precisamente porque tem sido má para a inovação.
Tanto os nossos trabalhadores, a nossa população, como os nossos inovadores hoje aqui reunidos têm o mesmo inimigo.
E a solução, creio eu, é a inovação americana.”