O discurso emocionante do desembargador João Marcos Buch: “temos flertado com o fascismo”

João Marcos Buch, desembargador no TJSC

Reproduzo abaixo o emocionante discurso de posse do novo desembargador João Marcos Buch, realizado no dia 7 de março de 2025, em Florianópolis, Santa Catarina.

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“Eu não quero fazer desse discurso uma longa lista de agradecimentos. E também não desejo falar de onde vim, da minha infância. Eu não tive uma história de superações. Sempre fui privilegiado, com uma família que me proporcionou educação e afeto.

Sempre tive almoços de domingo, Natal, Ano Novo, Páscoa, viagens de férias para a praia, abrigo e segurança. Tudo o que uma criança pode ter para crescer e se tornar um adulto feliz. Sempre tive um porto seguro.

Mas quem sabe eu possa apenas lembrar de uma pequena história, já então quando eu era um jovem adulto. Com 22 anos de idade, recém-formado na FURB em Blumenau, com pouca experiência e muita insegurança, mudei-me para Florianópolis para ser secretário jurídico do saudoso desembargador Álvaro Vandelli, pessoa cuja humanidade me constituiu e permanece em mim.

As dificuldades eram muitas. Como disse, eu tinha 22 anos e não sabia das coisas da vida. Então, telefonei para casa, para Porto União, minha linda terra natal. Disse à minha mãe que não estava aguentando, que voltaria para casa. Ela, com sua autoridade, respondeu:

  • Você não voltará. Ficará e enfrentará tudo. A vida é assim. E foi você que escolheu essa estrada. Pare de se lamentar. Fique e enfrente.

Desliguei o telefone e, resignado, fiquei e enfrentei. O que quero dizer é que, se hoje estou aqui, é porque muitos me carregaram, ainda me carregam. Meus falecidos pais, irmãos, cunhados, sobrinhos, minha família toda, meus amigos, minha equipe de assessores. Todos vocês me aceitaram nas suas vidas. Meu muito obrigado.

E já que retomei o caminho dos agradecimentos, faço um especial a você, Lucas Fazolo, meu noivo, meu amor. Você é o brilho e a beleza dos meus dias. A prova de que não somos amados porque somos bons, mas somos bons porque somos amados. Que sorte foi te encontrar.

Agora, deixando os agradecimentos de lado, quero falar de um passado recente. O Brasil se redescobriu com a Constituição de 88, mas, parafraseando Walter Salles, nós temos flertado novamente com o fascismo. Há valentões por todos os cantos, querendo governar o mundo e, por consequência, a justiça. Pessoas que não aceitam projetos de vida coletiva, com melhor distribuição de renda e direitos iguais. Pessoas machistas, racistas, colonialistas, preconceituosas, homofóbicas e recalcadas. Pessoas que disseminam ódio e idolatram a guerra, a ditadura militar, que desejam retroceder ao pré-iluminismo.

E por isso devemos estar sempre alertas e ocupar os espaços em prol da democracia. Como disse Walter Benjamin, é importante contar a história sob a perspectiva dos vencidos, pois, se não, os vencedores continuarão vencendo. Pois bem, contarei a história de alguém que foi vencido.

Era uma vez um juiz de direito que trabalhava com aprisionados. Ele executava suas penas. Seres humanos condenados por crimes, mas que antes de tudo tinham sido condenados pela pobreza e injustiça social. O juiz decidiu fazer diferente. Aplicaria a lei com fundamento nos direitos humanos.

Entretanto, exigir o respeito aos direitos fundamentais encontrava resistências. Muitos começaram a lhe atirar pedras, chamando-o de defensor de bandidos. O estigma dos presos passou a carimbar sua própria testa. Não lhe faltaram injúrias, mentiras e ameaças. Mas desistir não era uma opção.

Guardou suas dores, suas feridas e foi cuidar das dores dos outros. Passou a visitar os presídios frequentemente. Conversava com os trabalhadores do sistema e com os presos. Os detentos começaram a acreditar na sua humanidade. Ele os respeitava.

Então veio a pandemia. O Brasil foi colocado de joelhos por um governo que negava a ciência e atacava a democracia. O juiz se viu diante de um novo desafio: evitar que o vírus rebaixasse ainda mais a humanidade dos presos. Foram anos de tormenta e tempestades. Mas ele seguiu, de cabeça erguida.

Um dia, a calmaria chegou. Mas não para o sistema carcerário, que permanecia superlotado e precário. A calmaria foi para aqueles que o atacavam. Eles sossegaram. O juiz atribuiu isso à sua persistência e aos novos ventos republicanos. Mas estava enganado. Não havia armistício.

Após anos de carreira, decidiu candidatar-se ao cargo de desembargador substituto. Era o mais antigo, tinha mérito. Mas, na data marcada, foi rejeitado. Por uma apertada maioria de votos, não foi considerado merecedor. Nenhum motivo declarado. A recusa foi seca, insípida. Mas a razão era evidente: sua postura ética e humanista.

Sentiu vergonha. Vergonha perante sua equipe, seus assessores. Vergonha por não prever que aquele golpe tinha data marcada. Mas ele teria que se recompor, levantar-se e seguir. Sabia que aqueles que lutam pelos direitos humanos sempre encontram resistência. Muitos sofreram, foram atacados, alguns perderam a vida. Mas jamais perderam a dignidade.

Charles Chaplin disse que O Vagabundo sempre mantinha sua dignidade, não importava o quanto estivesse por baixo. O juiz sabia que sua felicidade, como categoria ética de dignidade, jamais seria nocauteada. Feliz daquele que é acusado de defender os direitos humanos, de tutelar os valores mais elevados, tendo a Constituição como escudo.

E hoje, 7 de março de 2025, como disse Mário de Andrade ao fundar o modernismo, não há mais paredes, só horizontes. Luís XIV certa vez disse ao filho: “Sempre olhe para o futuro. Mas você não pode encará-lo até conquistar o passado.”

Eu conquistei meu passado. Hoje encaro o futuro. Eu estou livre.

Muito obrigado.”

Redação:
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