Somente a ação coletiva do Estado pode acabar com a impunidade.
O que resta da ordem internacional? Por mais de 500 dias, Israel, habilitado por nações poderosas que fornecem cobertura diplomática, equipamento militar e apoio político, violou sistematicamente o direito internacional em Gaza. Essa cumplicidade desferiu um golpe devastador à integridade da Carta das Nações Unidas e seus princípios fundamentais de direitos humanos, igualdade soberana e proibição de genocídio. Um sistema que permite a matança de cerca de 61.000 pessoas não está apenas falhando — ele falhou.
As evidências, transmitidas ao vivo para nossos telefones e avaliadas pelos principais tribunais do mundo, são inequívocas. Da opinião consultiva do Tribunal Internacional de Justiça sobre a ocupação ilegal de territórios palestinos por Israel aos mandados de prisão emitidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para os principais líderes de Israel às medidas preliminares emitidas no caso da Convenção sobre Genocídio movido pela África do Sul, as ações de Israel constituem violações claras do direito internacional.
No entanto, apesar dessas decisões, as violações persistem, permitidas por nações que desafiam descaradamente os principais tribunais do mundo, com sanções a autoridades, funcionários e agentes do TPI e desafio aberto às ordens do tribunal.
A recente proposta do presidente dos EUA, Donald Trump, de “tomar posse” de Gaza — significando anexação seguida de limpeza étnica da população palestina, que Trump sugeriu que deveria ser deportada para o Egito e a Jordânia — atinge os próprios fundamentos do direito internacional, que a comunidade global tem o dever de defender. Tais ações, se perseguidas, constituiriam uma grave violação do direito internacional e dos princípios fundamentais consagrados na Carta da ONU.
O ataque contra o povo palestino ecoa capítulos sombrios nas histórias de nossos próprios países — África do Sul sob o apartheid, Colômbia durante a contrainsurgência e Malásia sob o domínio colonial. Essas lutas nos lembram que a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Podemos vir de continentes diferentes, mas compartilhamos a convicção de que complacência é cumplicidade em tais crimes. A defesa do direito inalienável do povo palestino à autodeterminação é uma responsabilidade coletiva.
Em setembro de 2024, a Assembleia Geral da ONU adotou uma resolução histórica delineando as obrigações legais dos estados para garantir o fim da ocupação ilegal de Israel, com uma esmagadora maioria de 124 nações votando a favor, enfatizando o imperativo de “garantir a responsabilização por todas as violações do direito internacional para acabar com a impunidade, garantir a justiça, dissuadir futuras violações, proteger civis e promover a paz”.
É por isso que, juntamente com Bolívia, Colômbia, Honduras e Namíbia, lançamos o Grupo de Haia, uma coalizão comprometida em tomar medidas decisivas e coordenadas em busca de responsabilização pelos crimes de Israel.
Os três compromissos inaugurais do Grupo de Haia são motivados por dois imperativos: o fim da impunidade e a defesa da humanidade.
Nossos governos cumprirão os mandados emitidos pelo TPI contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, enfatizando investigações e processos apropriados, justos e independentes em nível nacional ou internacional; impediremos que embarcações transportando suprimentos militares para Israel usem nossos portos; e impediremos todas as transferências de armas que possam permitir novas violações do direito humanitário.
Em um mundo interconectado, os mecanismos de injustiça são encontrados no tecido das cadeias de suprimentos globais. Armamentos avançados não podem ser construídos sem metais, componentes, tecnologia e redes de logística que abrangem continentes. Ao coordenar nossas políticas, pretendemos construir um baluarte para defender o direito internacional.
O objetivo desses esforços não é minar o multilateralismo; é salvá-lo. Assim como a comunidade internacional uma vez se uniu para desmantelar o apartheid na África do Sul — por meio de pressão legal, econômica e diplomática coordenada de forma semelhante — agora devemos nos unir para fazer cumprir o direito internacional e proteger o direito inalienável do povo palestino à autodeterminação. A alternativa é se render a um mundo onde somente o poder determina quais leis importam e quais outras podem ser violadas à vontade.
A recente cessação das hostilidades, a troca de reféns e o retorno de famílias palestinas deslocadas são passos bem-vindos em direção a uma resolução pacífica desta catástrofe insuportável. No entanto, o cessar-fogo já se mostrou frágil, e nossa responsabilidade coletiva de garantir uma paz duradoura é agora ardentemente urgente.
O sistema internacional não pode perdurar se for minado por aqueles que exercem vetos e sanções para proteger aliados do escrutínio ou usam ajuda e comércio como ferramentas de coerção. A ameaça de punição tem a intenção de forçar os países a recuarem para uma linguagem de súplicas. Não podemos permanecer passivos e ser forçados a publicar “chamados” e “demandas” enquanto os princípios de justiça que sustentam nossa ordem internacional são destruídos.
Acreditamos em protagonismo, não em súplica. A escolha é dura: ou agimos juntos para fazer cumprir a lei internacional ou arriscamos seu colapso. Escolhemos agir, não apenas pelo povo de Gaza, mas pelo futuro de um mundo onde a justiça prevalece sobre a impunidade.
Que este momento marque o início de um compromisso renovado com o internacionalismo e os princípios que nos unem como uma comunidade global.
Publicado originalmente pelo Foreign Policy em 25/02/2025
Por Por Cyril Ramaphosa, Anwar Ibrahim, Gustavo Petro e Varsha Gandikota-Nellutla
Cyril Ramaphosa é o presidente da África do Sul.
Anwar Ibrahim é o primeiro-ministro da Malásia.
Gustavo Petro é o presidente da Colômbia.
Varsha Gandikota-Nellutla é coordenadora geral da Internacional Progressista e presidente interina do Grupo de Haia.
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