Sociólogo Sérgio Costa argumenta que essa estratégia levou à canalização de votos para um candidato que tinha claramente um programa de governo antagônico aos interesses de grande parte de seus eleitores.
No recém-lançado livro Desiguais e Divididos: Uma interpretação do Brasil polarizado, o sociólogo Sérgio Costa, professor da Universidade Livre de Berlim, explica as fraturas sociais do país neste século 21 a partir da compreensão do aumento da classe média — sobretudo depois dos dois primeiros mandatos presidenciais do petista Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010 — e da necessidade de entender esse grupo como internamente desigual.
Costa apresenta então um conceito que permeia o livro: a situação interseccional, uma perspectiva multidimensional da desigualdade social, que não classifica os cidadãos apenas pela sua classe, mas os considera no contexto de outros marcadores, como raça e gênero. “Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional”, diz o sociólogo, em entrevista à DW.
Para o especialista, a direita soube dominar melhor as ferramentas de comunicação contemporâneas, sobretudo as linguagens das redes sociais, para adentrar nos círculos outrora imunes aos discursos políticos, como as esferas familiares e das reuniões de condomínio. Ao mesmo tempo, a realidade tem sido habilmente interpretada por grupos de modo e atribuir uma causa única a todos os problemas.
“Os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade”, explica Costa.
DW: O que é classe média, afinal?
Sérgio Costa: O conceito de classe média, para a sociologia, é muito difícil de operar. A classe média pode ser a autoidentificação, uma posição na estrutura social ou simplesmente uma ideologia de progresso, a chamada classe média emergente, um fator de propulsão do consumo, do capitalismo. É um termo polissêmico, difícil de definir.
Eu diria que a classe média pode ser definida combinando essas diferentes classificações. Seguramente, uma posição na estrutura social: quem está entre os grupos intermediários de renda. Mas também com as pessoas se veem, e classe média, do ponto de vista da autoidentificação, é uma categoria muito prestigiada: com exceção dos muitos ricos e dos muitos pobres, a população em geral se autodefine como classe média. Isso torna a classe média um grupo muito heterogêneo, que pode ser tanto propulsor de mudanças democráticas como a que hoje alimenta a direita e a extrema direita em muitas partes do mundo.
Hoje classe média é algo “de direita”?
Não necessariamente um sujeito político de direita. É um sujeito político muito volátil tanto por sua heterogeneidade como por sua posição na estrutura social. Ou seja: é quem pode perder ou ganhar com mudanças econômicas e políticas muito rapidamente, portanto ela pode reagir mais à direita e mais à esquerda dependendo do rumo das transformações sofridas.
No Brasil do começo dos anos 2000, a classe média teve um papel fundamental em criar o consenso [da necessidade] de um país com menos pobreza, um pouco mais justo, que promovesse alguma forma de distribuição de renda, de combate ao racismo, de igualdade de gênero. Houve mudanças significativas na sociedade e há setores de classe média que se rebelaram contra esses progressos.
E por que houve essa rebelião?
A questão que se coloca é: esses setores se rebelaram porque são classe média ou porque são classe média branca, classe média masculina. É importante introduzir aqui a dimensão interseccional da desigualdade, algo fundamental para entender a desigualdade da classe média. Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional… Só assim conseguimos explicar como setores da chamada classe média emergente efetivamente tiveram melhora de vida nos primeiros anos deste século e como, depois, essa mesma classe média se rebela contra governos que proporcionaram essa melhoria de vida.
É a classe média emergente ou são os homens brancos dessa classe média emergente, os heterossexuais dessa classe média emergente, etc. etc. etc.? Introduzir a dimensão interseccional é fundamental.
No livro você comenta que a polarização na sociedade brasileira tomou conta de festas de família e reuniões de condomínio, ambientes outrora neutros ao debate político. De onde veio essa energia? Por que ela soa mais dominada pela direita do que pela esquerda?
É uma questão intrigante: por que a direita logrou penetrar no que a gente chama de espaços comunicativos primários, as redes de família e de vizinhança, contaminando e efetivamente politizando essas esferas? Eu diria que isso não é completamente novo. Mas o que estamos vendo hoje é a direita e a extrema direita com menos esforço, dada sua enorme capilaridade e penetração nas redes virtuais, conseguindo de alguma maneira penetrar os espaços com seus conteúdos e suas interpretações do que está acontecendo.
A esquerda não tem conseguido disputar a hegemonia cultural e política nos mesmos termos, pois perdeu muito sua capacidade de comunicação com a base. Por outro lado, nesse nível de redes de vizinhança, as igrejas pentecostais e neopentecostais, não todas elas, têm papel político fundamental na medida em que esses setores não têm escrúpulos em fazer política dentro das igrejas e, portanto, conseguem um acesso muito direto à população, inclusive a que sofre com mais força, com mais violência, as angústias como carestia, segurança. É um conjunto de fatores que dá vantagens à direita e à extrema direita nessas lutas pelas mentes e corações, nessas lutas por hegemonia.
Mas, como você bem mostra no seu trabalho, essa mesma população perde direitos e benefícios com plataformas de governos de direita…
É verdade que os governos [de Michel] Temer e [de Jair] Bolsonaro penalizaram duramente parte de quem depois foi eleitor de Bolsonaro, não só em 2018 [quando ele foi eleito] como em 2022 [quando ele perdeu para o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva], ou seja, os mais pobres, a população negra, as mulheres…
Ainda assim, parte dessa população votou na direita, na extrema direita. Como explicar isso? Trata-se da formiga votando no inseticida? É uma boa imagem, mas o quadro é mais complexo. No fundo, a política não é uma ciência exata. Tanto importam as experiências concretas da vida como a maneira como essas experiências de vida são traduzidas e significadas pela população.
O que a direita e a extrema direita conseguiram produzir foi efetivamente um discurso político plástico, muito maleável, que traduziu muitas das angústias da população, atribuindo uma causa: a causa de todos os males são “os governos de esquerda, corruptos, sem moral”. Portanto, os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade.
A direita conseguiu produzir um discurso plástico capaz de encontrar um culpado para todas as angústias que a população estava sofrendo e isso levou à canalização de votos [em 2018] para um candidato que tinha claramente um programa de governo que ia contra os interesses de grande parte da população que votou nele. A interpretação das angústias reais teve seu poder de mobilização naquele momento, e segue tendo de alguma forma. Isso levou efetivamente a eleição de governos, inclusive deputados e senadores, que claramente tinham propostas que não correspondiam aos interesses dessa população que votou neles. A percepção, a maneira como são traduzidas as angústias são tão importantes quanto às experiências reais.
Pobres ficaram ainda mais pobres, e isto você mostra em seu livro. Bolsonaro não foi reeleito, mas as eleições de 2022 mostram um bolsonarismo ainda muito forte: Lula ganhou por margem apertada e a direita levou mais cadeiras no Senado, nos poderes legislativos e nos governos estaduais. Como explicar isso, mesmo com as consequências sofridas no bolso dos eleitores?
A política não é baseada apenas em fatores econômicos. Se tomarmos os indicadores econômicos, mesmo em termos de emprego, diríamos que o governo atual está indo bem, ainda que sua popularidade esteja muito em baixa. Portanto, há formas de interpretação da realidade que efetivamente pesam tanto quanto à própria realidade. É isso que vivemos antes da eleição de Bolsonaro. É isso que vivemos hoje.
Há repertórios de interpretação das insatisfações populares que são muito difundidos, sobretudo nas redes sociais, e muito incorporados na maneira de pensar pelo conjunto da população. Há uma espécie de descolamento da realidade propiciado pela difusão de interpretações convincentes para angústias verdadeiras. São interpretações convincentes, mas não objetivas. E a política não se faz apenas com dados objetivos. É sempre um exercício de escolhas e interpretações.
Publicado originalmente pelo DW em 05/03/2025
Por Edison Veiga