Recomendada há mais de 10 anos, Comissão Nacional Indígena da Verdade ainda não saiu do papel. Milhares de indígenas teriam morrido durante regime militar por ação ou omissão do Estado.
Durante a ditadura militar (1964-1985), os indígenas eram espancados com cassetetes e chicotes sem ao menos saber os motivos das punições no Reformatório Krenak, em Resplendor (MG). “Os mais antigos contam que quando matavam um índio, jogavam no rio Doce e diziam pros parentes que tinha ido viajar”, relatou Oredes Krenak em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O Reformatório Krenak aprisionou indígenas considerados rebeldes pelo regime. Foram levados para o “campo de concentração”, como definiu o sertanista Antônio Cotrim Soares, por resistirem à invasão dos seus territórios, por se desentenderem com militares e até mesmo por suposta vadiagem. A prisão encarcerou centenas de indígenas de ao menos 23 etnias de diversos estados do Brasil.
Finalizada em dezembro de 2014, a CNV dedicou um capítulo do relatório aos povos originários. Estimou que, entre 1946 e 1988, pelo menos 8.350 indígenas morreram por ação ou omissão do Estado. O número, no entanto, é exponencialmente maior porque foram estudadas apenas dez das 305 etnias presentes no país. Além das mortes, houve uma série de outras violações de direitos humanos, como torturas, maus-tratos, deslocamentos forçados e roubo de terras.
Devido às suas limitações, o relatório recomendou a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para que os povos originários fossem beneficiados pela justiça transicional. Esse termo jurídico se refere à apuração de crimes ocorridos no passado com o objetivo de promover a reconciliação, garantir os direitos das vítimas, fortalecer a democracia e prevenir a repetição das violações.
O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, mostrou a importância da CNV, que confirmou a morte do ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva, até então considerado desaparecido. A história da família tem outro ponto em comum com a defesa dos direitos indígenas.
Eunice Paiva, retratada no filme pela atriz Fernanda Torres, formou-se em direito após a morte do marido e se tornou uma das pioneiras na luta pelos direitos dos povos originários, atuando na demarcação de seus territórios.
“A comissão é de suma importância”, defendeu Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Precisamos trazer para o conhecimento público os crimes cometidos pela ditadura militar, porque o desconhecimento acaba gerando a repetição dos crimes.”
Violações sistêmicas
A comissão pesquisou um intervalo de tempo maior que a ditadura militar. Ela dividiu o período analisado em duas fases. Entre 1946 e 1968, considerou que o Estado criou as condições para o esbulho das terras indígenas – a ocupação ilegal e forçada dos territórios. Já entre 1968 e 1988, apontou que o governo teve um protagonismo nas graves violações de direitos humanos.
As duas fases são divididas pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), medida que acarretou o recrudescimento da violência do regime militar. “Não são esporádicas nem acidentais essas violações: elas são sistêmicas, na medida em que resultam diretamente de políticas estruturais de Estado, que respondem por elas, tanto por suas ações diretas quanto pelas suas omissões”, destacou o relatório.
As políticas governamentais tiveram um papel fundamental na violação dos direitos indígenas. Primeiro, na década de 1940, Getúlio Vargas incentivou a ocupação do Centro-Oeste, na chamada Marcha para o Oeste. Já no governo militar implementou o Plano de Integração Nacional para estimular a ocupação da Amazônia. Essas áreas eram povoadas pelos indígenas.
“Havia populações indígenas que tinham algum contato com os não-indígenas, mas a maioria não tinha. Então morrem muitos, assim como ocorreu na colonização, por doenças como gripe, sarampo, e outras”, explicou a antropóloga Elaine Moreira, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND).
Os yanomami exemplificam os impactos dessas medidas. Na década de 1970, teve início a construção da BR-210, chamada de Perimetral Norte, cujo objetivo era atravessar a Amazônia. A obra facilitou a entrada de garimpeiros e colonos nas terras tradicionais, disseminando doenças e violência.
“Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. A Funai, que era pra nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez”, disse o xamã e líder Davi Kopenawa em seu depoimento.
Para a violência não se repetir
O resgate da memória pode contribuir para que os crimes cometidos pela Ditadura Militar sejam discutidos na sociedade. “Também é importante para que a violência não volte a se repetir”, reforçou a professora Elaine Moreira.
Recentemente, a memória daquele período retornou, na análise da professora, por dois motivos: o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), que adotou um discurso racista e anti-indígena, além de incentivar o garimpo, e a pandemia de covid-19, que levou medo e vitimou inúmeros indígenas.
Novamente os yanomami são um exemplo de como as violências podem se repetir. No governo Bolsonaro, intensificou-se a invasão de garimpeiros em suas terras, resultando na falta de medicamentos para tratar a malária levada pelos invasores, causando desnutrição infantil e mortes, além da destruição da floresta e dos rios.
Nos últimos meses, após ter sido declarada situação de emergência na terra indígena e diversas ações do governo, a situação tem melhorado. O indígena Junior Yanomami, liderança da etnia, disse que “estamos respirando e com uma nova energia”.
Invasão de garimpeiros em território yanomami foi intensificada no governo Bolsonaro | Alan Chaves/AFP via Getty Images
A repressão à oposição política, um tema mais conhecido da ditadura militar, também cruzou com as violações aos direitos indígenas, como no caso da Guerrilha do Araguaia. No fim da década de 1960 e meados da década de 1970, um movimento armado de resistência foi aniquilado pelo exército, com torturas, execuções sumárias e desaparecimento forçado de guerrilheiros e camponeses.
Na época, os indígenas Aikewara foram forçados a guiar os militares, devido ao seu conhecimento das florestas da região. As mulheres e crianças foram mantidas reféns em suas próprias casas, sendo impedidas de sair para buscar alimentos, caçar ou até mesmo para necessidades fisiológicas básicas.
Ditadura e marco temporal
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse, em nota, que reafirma seu compromisso com políticas de memória que garantam o registro e a valorização das experiências dos povos indígenas. “Reconhecer os impactos históricos aos povos indígenas, especialmente os causados pela ditadura militar, é essencial para fortalecer suas identidades, lutar pela reparação histórica e garantir o devido reconhecimento de suas contribuições.”
O ministério participa do Fórum: Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas, liderado pela Apib, em parceria com a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, o OBIND e o Instituto de Políticas Relacionais (IPR). Uma das principais pautas é justamente implementar a comissão.
“Embora não tenha competência para deliberar sobre a criação da comissão, o MPI atua para garantir que essas violações sejam reconhecidas e que medidas concretas de reparação sejam adotadas”, informou o ministério em nota.
Os crimes cometidos na ditadura também se relacionam com outro tema importante para os povos tradicionais: o marco temporal. A tese, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e posteriormente transformada em lei pelo Congresso Nacional, defende que povos indígenas só teriam direito à demarcação de suas terras se estivessem ocupando essas áreas em 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
As informações da comissão da verdade, as pesquisas acadêmicas e as histórias dos povos originários mostram que muitos indígenas não estavam nas suas terras justamente porque foram arrancados dessas áreas. “Com a tese do marco temporal, eles querem apagar todo esse cenário de violência promovida pela ditadura militar. É um apagamento histórico. Ela violenta não só nossa integridade física, mas nossa história”, ressaltou Dinamam Tuxá.
Publicado originalmente pelo DW em 02/03/2025
Por Maurício Frighetto
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