Fim de uma era? Alemanha em desordem enquanto EUA repreendem seu aliado europeu mais fiel.
A declaração do vice-presidente dos EUA, JD Vance, de que a própria Europa — mais do que a Rússia ou a China — havia se tornado uma ameaça aos valores democráticos irritou visivelmente o ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius.
“Isso é inaceitável”, ele foi ouvido murmurando da plateia.
Os líderes europeus, generais e chefes de inteligência reunidos na Conferência de Segurança de Munique aguardavam ansiosamente respostas sobre questões cruciais, como o fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia, a contenção da guerra híbrida de Vladimir Putin e o fortalecimento da aliança transatlântica.
No entanto, em vez disso, o emissário de Donald Trump os atacou, acusando-os de suprimir a liberdade de expressão, fracassar no controle da imigração em massa e soar como propagandistas da era soviética ao usar termos como “desinformação” e “fake news”.
Após o discurso de Vance, Pistorius correu para uma sala com dois assessores para reescrever o discurso que ele deveria fazer naquela tarde. Menos de uma hora depois, o social-democrata — cuja franqueza o tornou o político mais popular da Alemanha — subiu ao púlpito, visivelmente irritado.
“Ele fala sobre a aniquilação da democracia e, se eu entendi corretamente, compara a situação em certas partes da Europa a regimes autoritários”, disse Pistorius. “Senhoras e senhores, isso não é aceitável.”
As palavras duras de Vance foram apenas parte de uma semana de choque para os europeus, que descobriram na quarta-feira que Trump havia telefonado para Vladimir Putin para iniciar negociações “imediatas” para um acordo para acabar com a guerra na Ucrânia, sem consultar a Europa ou Kiev previamente.
Mais cedo naquele dia, os europeus também foram surpreendidos com a informação de que o secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, já havia desistido da ideia de incluir a Ucrânia na OTAN e de defender a integridade territorial do país antes mesmo do início das negociações.
Nenhum outro país europeu sentiu mais o impacto das declarações de Vance do que a Alemanha, anfitriã da conferência e que enfrenta eleições na próxima semana sob a sombra do avanço da extrema direita.
Nos últimos 80 anos, a relação transatlântica foi a base para o renascimento democrático, a recuperação econômica e a proteção militar da Alemanha, enquanto Berlim tentava se afastar de seu passado nazista.
As palavras do vice-presidente abalaram até os mais ferrenhos defensores da aliança com os EUA na Alemanha. Friedrich Merz, líder dos democratas-cristãos e favorito para se tornar o próximo chanceler alemão, acusou o governo Trump de “interferir abertamente em uma eleição”.
“Não cabe ao governo americano nos dizer aqui na Alemanha como devemos proteger nossas instituições democráticas”, declarou Merz.
Com o retorno de Trump à Casa Branca, as autoridades alemãs já esperavam ser criticadas pelo presidente dos EUA, que, em seu primeiro mandato, teve como alvo a então chanceler Angela Merkel. Sabiam que teriam de aumentar os gastos com defesa, após anos sem atingir a meta da OTAN de destinar 2% do PIB para o setor. Também estavam cientes de que seu grande superávit comercial com os EUA provavelmente resultaria em tarifas dolorosas sobre as importações de carros.
Mas não estavam preparados para que Trump e sua equipe atacassem as bases da ordem política alemã — e ainda se alinhassem com o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que os partidos tradicionais tentam isolar politicamente com um “cordão sanitário”.
Em seu discurso de sexta-feira, Vance pediu o fim dessas barreiras políticas. Pouco depois, tomou a medida sem precedentes de se encontrar com Alice Weidel, co-líder do AfD, que havia sido proibida pelos organizadores de participar da conferência.
Ao mesmo tempo, ficou evidente que Vance havia recusado um encontro com o chanceler social-democrata Olaf Scholz, cujo partido impopular deve ficar em terceiro lugar nas eleições de 23 de fevereiro.
“A Alemanha não aceitará que estrangeiros interfiram em nossa democracia e em nossas eleições em favor deste partido”, afirmou Scholz em um discurso no sábado. “Isso não é apropriado, especialmente entre amigos e aliados. Nós decidiremos sozinhos o destino da nossa democracia.”
A crítica feroz de Vance aumentou ainda mais a sensação de instabilidade na Alemanha, que já estava abalada por três ataques mortais cometidos por solicitantes de asilo nos últimos três meses e por um intenso debate nacional sobre imigração.
O mais recente desses incidentes ocorreu na véspera da conferência, a apenas um quilômetro do luxuoso hotel Bayerische Hof, onde o evento foi realizado. Um cidadão afegão avançou com um carro contra uma multidão de sindicalistas que protestavam.
O AfD, até então visto como um partido politicamente tóxico, ao ponto de ser rejeitado até mesmo por figuras como Marine Le Pen, da França, comemorou abertamente sua aceitação pela nova direita populista global.
Primeiro, recebeu o apoio de Elon Musk, dono do X e assessor de Trump, que Weidel vem cortejando há mais de um ano.
Na quarta-feira, Weidel, cujo partido deve atingir um recorde de 20% dos votos, foi recebida em Budapeste pelo primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. Ele a descreveu como “o futuro” e pediu que ela fosse integrada ao cenário político ocidental.
Não é a primeira vez que as relações entre Alemanha e EUA se tensionam na Conferência de Segurança de Munique.
No passado, houve desentendimentos entre os dois países devido à invasão do Iraque por George W. Bush e ao apoio alemão ao gasoduto Nord Stream 2, que conectava a Rússia à Europa.
Mas nunca os embates foram tão inflamados.
Os delegados europeus se dividiram em dois grupos: aqueles que viram as palavras e ações de Vance como um sinal de que a Europa precisa urgentemente criar uma estratégia para reduzir sua dependência dos EUA; e aqueles que acreditam que o vice-presidente estava sendo provocador, mas sem indicar uma mudança significativa na política americana.
“Não queremos romper [com os EUA] e espero que eles também não queiram”, disse Kaja Kallas, chefe da diplomacia da União Europeia, ao Financial Times. “Não queremos iniciar um confronto com base em declarações feitas publicamente.”
Mas outro alto funcionário europeu foi mais direto: “Eles não são um adversário, mas, dado o que ouvimos hoje, devemos considerar os EUA como um país estrangeiro.”
Alguns oficiais alemães encontraram uma ponta de esperança no fato de que Vance e Hegseth foram mais conciliatórios em reuniões privadas.
Relataram que Hegseth teria dito a um diplomata europeu: “Sabemos que vocês são os mocinhos.”
Um alto funcionário europeu avaliou que os EUA “não estão se retirando da Europa”, mas sim “adotando uma política externa agressivamente transacional”.
Outros, porém, ficaram alarmados.
“Vance é um político de extrema direita apoiado pelos oligarcas da Big Tech americana, cujo objetivo é gradualmente destruir a União Europeia”, declarou Anton Hofreiter, deputado do Partido Verde da Alemanha.
Robert Habeck, vice-chanceler alemão e também membro do Partido Verde, disse que o discurso de Vance marcou um “ponto de virada” na relação entre Europa e EUA.
“O governo dos EUA tomou o lado retórico e político dos autocratas”, afirmou Habeck.
Durante o fim de semana em Munique, concluiu ele, “a comunidade ocidental de valores foi desmantelada aqui”.
Por Anne-Sylvaine Chassany, Laura Pitel e Henry Foy em Munique – Financial Times, 16 de fevereiro de 2025.