Por Arnaud Bertrand, analista francês
Isso é algo fundamental para o Ocidente compreender. O ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, explica que liberalismo não equivale a democracia e que, pelo contrário, quando aplicado internacionalmente, é fundamentalmente antidemocrático. A fala do ministro aconteceu na Conferência de Segurança de Munique, ocorrida nos últimos dias.
Como ele explica, “diferentes sociedades têm sua própria cultura, seus próprios valores, suas próprias formas de fazer as coisas”, enquanto o liberalismo, por outro lado, assume que há “uma única verdade, um único julgamento e uma única norma” que deve ser “pregada, propagada e avaliada”.
Ele diz que essa pregação e propagação é feita por “think tanks, pessoas que fazem classificações, jornais” que ele descreve como “guardiões autoproclamados” que não possuem legitimidade democrática, mas que “dizem ao resto do mundo o que é certo e o que é errado” em seus países.
Ele também afirma que os governos ocidentais rotineiramente tentam subverter a democracia em outros países ao “se conectar com dissidentes” (ou seja, grupos de oposição), acrescentando que, se os embaixadores indianos “fizessem uma fração disso, todos vocês estariam em pé de guerra”.
Acredito que essa é, sem dúvida, a mudança de mentalidade mais importante que o Ocidente precisa adotar à medida que avançamos para a multipolaridade. Passar de uma mentalidade de “precisamos moldar os outros à nossa imagem” para “precisamos entender os outros e respeitá-los pelo que são”. Quando a diferença de poder era grande e o Ocidente era a única referência no jogo global, essa abordagem funcionava. Mas em um mundo onde diferentes centros de poder existem com força cada vez mais comparável, se um deles adotar uma postura neocolonial paternalista em suas relações exteriores, será cada vez mais isolado e rejeitado. Ninguém gosta de um pregador que insiste que seu caminho é o único correto, especialmente quando ele já não tem mais o poder para impor seu sermão.
Na verdade, acho que a questão vai além do liberalismo. Se fizermos a pergunta sobre o que veio primeiro, acredito que o liberalismo se encaixa tão bem no Ocidente justamente porque tem esse aspecto universalista e missionário. Não nos tornamos pregadores por causa do liberalismo. Podemos rastrear esse padrão ao longo de séculos da história ocidental: dos missionários religiosos convencidos de que estavam salvando almas, aos administradores coloniais levando a “civilização”, até nossas ONGs financiadas por governos (😏) promovendo a “boa governança”.
Podemos ver isso no discurso de J.D. Vance no mesmo Fórum de Segurança de Munique ontem. Ninguém pode dizer que ele seja remotamente um liberal, e ainda assim é inegável que ele fez um sermão aos europeus, incitando-os a reformar suas próprias sociedades. É verdade que, pela primeira vez, a pregação não foi direcionada ao Sul Global, o que é de certa forma refrescante, mas o princípio continua o mesmo: vemos um líder ocidental se posicionando como árbitro moral dos assuntos internos de outras sociedades. O conteúdo do sermão muda, mas o impulso subjacente de ensinar os outros a governar suas sociedades permanece constante.
Isso mostra que o desafio de se adaptar a um mundo multipolar vai muito além de simplesmente repensar o internacionalismo liberal ou deixá-lo de lado. Exige confrontar um hábito civilizacional que transcende nossas divisões ideológicas atuais – uma tendência de ver nossas próprias preferências, sejam quais forem, como verdades universais que os outros devem aceitar. Mudar uma ideologia dominante já é difícil, mas isso é ainda mais desafiador: precisamos mudar nosso próprio DNA civilizacional para podermos coexistir em paz com os outros. Essa é a lição fundamental que precisamos aprender: a futura influência do Ocidente em um mundo multipolar não dependerá mais de nossa capacidade de moldar os outros, mas de nossa capacidade de abandonar essa compulsão de fazê-lo.
Assista ao vídeo no link abaixo:
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