O filme chinês que derrubou a hegemonia de Hollywood

Em uma análise do pesquisador francês Arnaud Bertrand, o fenômeno Nezha 2 é retratado como um divisor de águas cultural e econômico. O filme, primeiro da história a atingir US$ 1 bilhão em um único mercado (China) em apenas 11 dias, quebra a hegemonia de Hollywood e revela a maturidade da indústria cinematográfica chinesa. Além disso, seu sucesso desmonta narrativas sobre o declínio do consumo na China e desafia estereótipos ocidentais sobre a cultura chinesa.

A trama de Nezha 2, baseada em mitos locais, gira em torno de um herói rebelde que desafia autoridades injustas. Nezha, figura da religião popular e do taoísmo, simboliza a luta contra estruturas de poder opressoras — tema recorrente na mitologia chinesa, como visto em Sun Wukong (o Rei Macaco) e em figuras históricas como o poeta Li Bai.

Bertrand ressalta que a cultura chinesa, longe de promover submissão, valoriza a rebeldia moral. Até o confucionismo, muitas vezes mal interpretado, prioriza a justiça (义, yi) sobre a obediência cega, defendendo até a derrubada de governantes corruptos pelo “Mandato do Céu”. A história da China, aliás, é marcada por rebeliões, e ícones modernos, como os heróis de romances wuxia, perpetuam essa tradição.

O sucesso estrondoso de Nezha 2 reflete, assim, uma identidade cultural que celebra a resistência. Para Bertrand, a aparente “paz” social na China atual não é fruto de passividade, mas de pragmatismo: a rebelião é vista como último recurso, não como gesto impulsivo. O espírito contestador, porém, segue vivo na arte e no imaginário popular, como alerta contra abusos de poder.


Abaixo, a íntegra da postagem de Arnaud Bertrand, traduzida para o português:


Nezha 2 acaba de se tornar o primeiro filme da história a arrecadar US$ 1 bilhão em um único mercado — a China — em apenas 11 dias. É também o primeiro filme não hollywoodiano a alcançar essa marca.

Isso significa que: a) a China agora demonstra capacidade de produzir blockbusters equivalentes aos de Hollywood; e b) os relatos sobre o declínio do mercado consumidor chinês foram enormemente exagerados…

A história de Nezha também quebra muitos mitos que temos sobre a China, pois é, em essência, um conto de rebelião contra autoridade injusta — tema presente em toda a mitologia chinesa (Sun Wukong é outro exemplo famoso).

Nezha, cuja história vem da religião popular chinesa e do taoísmo, é uma criança com habilidades sobrenaturais e natureza profundamente rebelde, que matou Ao Bing, filho do Rei Dragão do Mar do Leste (Ao Guang). Quando os Reis Dragão ameaçaram reportar o ocorrido ao Imperador de Jade, Nezha se sacrificou, desmembrando seu próprio corpo para salvar sua família. Sua mãe construiu um templo para ele, que seu pai queimou em um acesso de raiva. Nezha foi ressuscitado por seu mestre, Taiyi Zhenren (uma poderosa divindade taoísta que não apenas lhe deu nova vida, mas também armas mágicas) e, finalmente, se reconciliou com o pai após tentar matá-lo por destruir seu templo.

Nezha é um personagem que sistematicamente escolhe desafiar em vez de se submeter. Ele desafia os Reis Dragão, que representam estruturas de poder tradicionais, matando Ao Bing e subjugando Ao Guang. Ao enfrentar as consequências de seus atos, em vez de se curvar à autoridade, ele age radicalmente por meio do autossacrifício. Após sua ressurreição, ele até se rebela contra a autoridade filial, buscando vingança contra o próprio pai — o que ilustra o conflito entre dever familiar e justiça pessoal.

Tudo isso mostra que a imagem que temos dos chineses como seres robóticos e submissos é ridiculamente equivocada. As figuras mais admiradas na mitologia e na história chinesa são esmagadoramente rebeldes: Nezha, Sun Wukong, o poeta Li Bai (que viveu uma vida errante e boêmia em vez de buscar cargos oficiais), o lendário guerreiro Chu Xiang Yu (que desafiou o próprio destino recusando-se a se render mesmo em desvantagem) e até ícones modernos como os heróis wuxia de Jin Yong, que frequentemente combatem autoridades corruptas.

Se estudarmos a história da China, veremos que ela teve mais rebeliões do que talvez qualquer outra civilização. Até o confucionismo, muitas vezes mal interpretado como filosofia de obediência cega, enfatiza a retidão moral acima da submissão à autoridade. O conceito de 义 (yi, justiça) está acima da lealdade quando o governante se torna injusto. E há o Mandato do Céu (天命), que justificava filosoficamente a derrubada de governantes opressores. Quando uma dinastia se corrompia, perdia esse mandato, tornando a rebelião não apenas aceitável, mas virtuosa.

O sucesso de Nezha 2 não é apenas um sinal da capacidade chinesa de competir com Hollywood. É a expressão de uma cultura que sempre celebrou a rebelião contra injustiças, a consciência individual acima da obediência cega e o direito de resistir a autoridades corruptas.

A razão pela qual os chineses não se rebelam hoje não é por ‘natureza submissa’ ou incapacidade, como muitos acreditam, mas por pragmatismo. Na história chinesa, a rebelião sempre foi o último recurso em crises sistêmicas (não é o caso atual), nunca um fim em si mesmo. O sucesso de personagens rebeldes como Nezha na cultura popular prova que esse espírito não desapareceu — está apenas em standby, como freio contra abusos de poder.”

Redação:
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.