Psicologia das massas revela como a manipulação mental promove a estupidez coletiva alimentando lawfare e guerra híbrida que ameaçam a soberania e o futuro do Brasil
A assertiva de Aristóteles na Retórica – “quando falo, por exemplo, da ira, penso em como comportam-se estes que estão irados, com quem costumam irar-se e em que situações; se soubéssemos apenas de um ou dois destes aspectos – mas não dos três –, impossível seria provocá-la; e o mesmo vale para todas as outras emoções” – transcende a mera observação sobre a psicologia da ira. Ela se revela como uma chave de compreensão para os mecanismos mais obscuros de manipulação social e política, especialmente quando confrontada com a análise de Dietrich Bonhoeffer sobre a “estupidez coletiva” e as estratégias contemporâneas de guerra híbrida. Em essência, Aristóteles desvenda os gatilhos emocionais que podem ser acionados, enquanto Bonhoeffer nos alerta para o estado mental de vulnerabilidade que torna as populações suscetíveis a essa manipulação. E a guerra híbrida surge como o instrumento que explora essa vulnerabilidade para fins de domínio e exploração, num cenário em que a conquista territorial cede espaço para a mais sutil e invasiva das conquistas: o domínio das mentes.
Essa perspectiva se aprofunda quando consideramos as contribuições da Psicologia das massas e análise do eu de Sigmund Freud e, em menor medida, as reflexões de Jacques Lacan, que lançam luz sobre a dinâmica inconsciente que opera em grupos e massas, e que são habilmente exploradas nas estratégias de manipulação contemporâneas.
Ao dissecar a ira e outras emoções, Aristóteles implicitamente nos fornece o mapa para a engenharia do consentimento, ou, em sua face mais sombria, para a fabricação da discórdia e do caos. A premissa é clara: emoções não são eventos aleatórios, mas respostas previsíveis a estímulos específicos. Conhecer as “disposições”, os “alvos” e os “gatilhos” permite não apenas prever, mas também induzir reações emocionais em massa. Este arcabouço teórico, inicialmente voltado para a persuasão retórica, torna-se, nas mãos de agentes manipuladores, a base para a construção de narrativas que visam orquestrar a opinião pública e direcionar a ira coletiva.
Dietrich Bonhoeffer, ao analisar a “estupidez”, ilumina a etapa crucial para que a manipulação emocional surta efeito em escala massiva: a criação de um ambiente de estupidez coletiva é a precondição para a exortação da ira. Para Bonhoeffer, a estupidez não é falta de intelecto, mas uma submissão induzida da capacidade crítica e moral. Indivíduos inteligentes e bem-intencionados, sob condições de pressão, propaganda incessante e polarização, perdem sua autonomia de pensamento, tornando-se massas acríticas, prontas para responder aos estímulos emocionais planejados. *A estupidez coletiva, portanto, não é apenas um efeito colateral da manipulação, mas sim o *substrato fértil* no qual a semente da ira manipulada germina e floresce*. É nesse terreno mental obscurecido pela desinformação e pela adesão acrítica que narrativas de ódio, medo e indignação encontram ressonância e se transformam em ações concretas – muitas vezes destrutivas e autodestrutivas para a própria sociedade.
Aqui, a análise de Freud em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921) se torna crucial. Freud descreve como, na massa, o indivíduo experimenta uma regressão psíquica, abandonando seu pensamento crítico e individualidade em favor de uma identificação emocional com o grupo e um líder idealizado. A massa, segundo Freud, opera sob o domínio do inconsciente, da sugestão e da identificação, tornando-se altamente influenciável e passível de manipulação emocional. A estupidez coletiva, sob a lente freudiana, não é apenas uma falha individual, mas um fenômeno psíquico grupal induzido, onde a racionalidade individual é eclipsada pelas forças irracionais da massa.
A guerra híbrida, nesse contexto, emerge como a aplicação contemporânea e sofisticada desse conhecimento, levada a cabo em escala global e com recursos tecnológicos sem precedentes. Ela não se limita à conquista de territórios físicos, mas visa a conquista dos territórios mentais, compreendendo que, no mundo informacionalizado, o domínio sobre as mentes precede e facilita outras formas de domínio – econômico, político, social. Se, outrora, a invasão territorial e a exploração de recursos naturais demandavam exércitos, guerras custosas e riscos elevados, hoje, o domínio das mentes se revela um caminho mais eficiente e com custos aparentemente pífios para a extração de riqueza e poder. Essa riqueza, no século XXI, não se resume apenas a bens materiais, mas também à riqueza subjetiva das nações: sua coesão social, sua capacidade de inovação, sua estabilidade política e sua soberania decisória. A guerra híbrida, portanto, não se configura apenas como uma batalha no campo da informação, mas como uma verdadeira “psicoguerra”, explorando as vulnerabilidades psíquicas das massas, conforme descritas por Freud, para atingir objetivos estratégicos de dominação.
A guerra híbrida se arma de um arsenal diversificado, em que a manipulação emocional e a indução da estupidez coletiva ocupam lugar central, operando através de:
- Desinformação Massiva e Propaganda Polarizadora: Criação e disseminação de notícias falsas, teorias da conspiração, conteúdos hiperpartidários e sensacionalistas, projetados para inflamar paixões, fragmentar o debate público e corroer a confiança nas instituições e na mídia tradicional. As redes sociais, algoritmizadas para amplificar o engajamento emocional, tornam-se o principal campo de batalha da guerra informacional. Essa estratégia se alinha diretamente com a dinâmica da massa descrita por Freud: a repetição constante de mensagens simples e emocionalmente carregadas, mesmo que falsas, exerce um poderoso efeito de sugestão, minando o discernimento crítico e criando “verdades” alternativas compartilhadas dentro da massa.
- Lawfare (Guerra Jurídica e Midiática): Utilização do sistema judicial e da mídia como armas para perseguir, desestabilizar e aniquilar oponentes políticos, figuras públicas críticas e instituições que representem um obstáculo aos objetivos de quem manipula a informação. O lawfare cria um ambiente de incerteza jurídica, paralisia decisória e linchamento midiático, silenciando vozes dissonantes e institucionalizando a perseguição política. O lawfare contribui para a criação de um clima de medo e paranoia, características marcantes da psicologia de massas em momentos de crise e manipulação. A figura do “inimigo” a ser combatido, seja ele real ou construído, é essencial para a coesão da massa em torno de um líder e de uma narrativa simplista.
- Exploração de Fraturas Sociais e Culturais: Exacerbação de divisões pré-existentes na sociedade – sejam elas étnicas, religiosas, ideológicas ou regionais – através de narrativas que incitam o ódio, o preconceito e a intolerância. A polarização radical é cultivada como um instrumento de fragmentação social, impedindo a construção de consensos e a ação coletiva em prol do bem comum. A fragmentação social, paradoxalmente, pode intensificar o fenômeno da massa, pois indivíduos isolados e inseguros tendem a buscar refúgio em grupos homogêneos que compartilham suas crenças e emoções, reforçando o efeito de eco de narrativas manipuladoras.
- Estratégias Econômicas e Fiscais Manipuladoras: Utilização de sanções econômicas seletivas, manipulação de mercados financeiros, endividamento estratégico e pressão fiscal como instrumentos de chantagem e subjugação de nações. A vulnerabilidade econômica é explorada para enfraquecer a soberania nacional e condicionar decisões políticas aos interesses de potências externas ou de grupos de poder internos. A insegurança econômica e a instabilidade social são terrenos férteis para o florescimento da estupidez coletiva e da manipulação emocional. Em momentos de crise, a massa busca soluções rápidas e líderes fortes, mesmo que estes ofereçam respostas simplistas e autoritárias.
O objetivo final desse intrincado sistema não é outro senão a subjugação de nações e a extração de valor em larga escala. A ira coletiva, orquestrada sobre o substrato da estupidez induzida, é direcionada contra alvos pré-determinados – sejam eles pessoas, instituições ou o próprio governo – com o propósito de desmantelar a ordem social, paralisar a ação estatal, e abrir caminho para a pilhagem de recursos e a imposição de uma nova ordem, controlada pelos artífices da manipulação. Essa nova forma de colonialismo, que opera no plano cognitivo e emocional, pode ser mais devastadora do que as invasões militares tradicionais, pois destrói a própria capacidade de resistência e autodeterminação de uma nação.
Embora a contribuição de Jacques Lacan à psicologia de massas seja menos direta que a de Freud, sua ênfase na linguagem e no simbólico ressoa com a importância das narrativas na manipulação de massas. A construção de significantes mestres, de “palavras de ordem” e de identidades coletivas no Imaginário, conforme Lacan, são ferramentas poderosas para aglutinar a massa em torno de um projeto e direcionar sua energia emocional, inclusive a ira, para fins específicos. A manipulação da linguagem, a ressignificação de termos e a criação de “novilíngua”, bem explorada por George Orwell em 1984, são exemplos de como o controle do simbólico pode moldar a percepção da realidade e manipular a conduta das massas.
Quais os cuidados e ações para evitar que sejamos vítimas e para prevenir que outrem o seja? A urgência é palpável, pois o retrocesso ou mesmo a sucumbência de uma nação inteira está em jogo.
- Desenvolvimento e Promoção do Pensamento Crítico e da Literacia Midiática: Investir maciçamente na educação para o pensamento crítico desde a infância, ensinando a discernir fontes de informação, a identificar vieses e manipulações, a questionar narrativas simplistas e a valorizar a complexidade e a nuance. A literacia midiática deve ser parte integrante da formação cidadã, capacitando as pessoas a navegar no ambiente informacional complexo e a se proteger da desinformação.
- Fortalecimento da Esfera Pública e do Debate Racional: Criar e fortalecer espaços de diálogo aberto, plural e respeitoso, onde diferentes perspectivas possam ser debatidas de forma construtiva. Combater a polarização e o sectarismo, incentivando a busca por pontos em comum e soluções negociadas. A imprensa livre e independente, o jornalismo investigativo e as plataformas de debate público robustas são pilares fundamentais para a resistência à manipulação.
- Ética da Informação e Responsabilidade Digital: Promover a ética da informação e a responsabilidade digital, tanto para os produtores quanto para os consumidores de conteúdo. Combater a impunidade da desinformação, responsabilizando agentes que deliberadamente disseminam notícias falsas e discursos de ódio. Incentivar o consumo consciente e crítico de informações, priorizando fontes confiáveis e verificando fatos antes de compartilhar conteúdo.
- Fortalecimento das Instituições Democráticas e da Transparência: Garantir a independência das instituições democráticas – o sistema judicial, o sistema eleitoral, os órgãos de controle – e promover a transparência na gestão pública e na atuação de empresas de tecnologia e mídia social. Instituições fortes e transparentes são um escudo contra a manipulação e a corrupção.
- Cooperação Internacional e Vigilância Global: A guerra híbrida é um fenômeno transnacional, exigindo cooperação internacional para o desenvolvimento de estratégias de defesa e para a troca de informações e boas práticas. A vigilância global e a coordenação de esforços entre governos, sociedade civil e setor privado são essenciais para combater as redes de desinformação e proteger a democracia em escala global.
Em um mundo cada vez mais interconectado e vulnerável à manipulação informacional, a compreensão dos mecanismos que levam à estupidez coletiva e à exortação da ira é crucial para a sobrevivência das sociedades democráticas. A frase de Aristóteles, desvendando os segredos da emoção, e o alerta de Bonhoeffer, sobre os perigos da estupidez, ressoam com uma urgência renovada no contexto da guerra híbrida. E a psicologia das massas, com as contribuições de Freud e Lacan, nos oferece ferramentas conceituais valiosas para decifrar a lógica oculta da manipulação e para fortalecer nossa capacidade de resistência psíquica e coletiva. A passividade não é uma opção. A defesa da sanidade mental coletiva, da razão, da ética e da democracia exige vigilância constante, ação coordenada e um profundo senso de responsabilidade individual e coletiva. Afinal, em um mundo interdependente, a vitimização de alguns compromete a todos.
Por Salvio Kotter, ou Sálvio Nienkötter, teve incursão em várias artes, passou por formação musical clássica, escreveu para e atuou no teatro, mas tem sido às letras que dedica seus esforços desde a virada do milênio, quando criou o premiado Movimento Polavra, que explorava o esplêndido potencial artístico do público. Publicou, entre outros, uma versão anotada verso a verso da Ilíada de Homero e atualmente é editor da Kotter Editorial. Seus últimos livros são: Comunicação Política (2020) em parceira com o Leonardo Stoppa, BoraVotar, em parceria com Carlito Neto (2020), e o livro de contos Bucólico Desatino (2020).