Algumas obsessões são saudáveis. Mantenho a minha, portanto, de que o grande problema do Brasil é a falta de um projeto nacional de infraestrutura para mobilidade de pessoas e bens, centrado sobretudo no transporte sobre trilhos.
Quanto mais pesquiso e escrevo sobre a política e a economia do Brasil, mais tenho a convicção de que o país precisa de trens de alta velocidade conectando capitais, grandes cidades e áreas rurais, além de sistemas de metrô e VLT para desafogar a mobilidade nas regiões metropolitanas. O brasileiro está preso em seu próprio país, sem poder se deslocar!
As riquezas nacionais, da mesma forma, estão bloqueadas pela ausência de um sistema nacional de transporte sobre trilhos.
Não consigo, inclusive, enxergar nenhuma possibilidade de um projeto de neoindustrialização dar certo se este gargalo não for enfrentado.
A China já está indo para uma nova geração de ferrovias de alta velocidade, com trens se deslocando dentro de tubos a semivácuo, o que permite reduzir a fricção do ar e elevar a velocidade dos trens dos máximos atuais, de até 350 km/h, para perto de 1.000 km/h.
O mau humor do brasileiro contra o governo nasce, sobretudo, desse problema de mobilidade, na minha opinião.
Por mais que empregos estejam sendo gerados e a renda média dos trabalhadores tenha aumentado, a qualidade de vida de todos os cidadãos continua se degradando porque a mobilidade nas cidades está cada vez mais infernal.
Além disso, é evidente que isso atrapalha o combate à inflação, já que os bens consumidos pela sociedade precisam ser transportados por rodovias cada vez mais congestionadas. Imagine o trabalho de transportar carne em caminhões refrigerados pelas estradas brasileiras.
Essa é minha maior crítica, não apenas ao governo Lula, mas a toda a esquerda brasileira. Eu realmente não consigo entender por que a esquerda brasileira não olha para a mobilidade como um problema central do país, que bloqueia fatalmente o desenvolvimento econômico, aprisiona dezenas de milhões de brasileiros em periferias inacessíveis e deteriora a qualidade de vida de toda a população.
Quer dizer, até entendo. E minha conclusão é muito crítica à esquerda e ao governo. A esquerda organizada e institucional, agora no governo, tem passagens aéreas pagas pelo Estado e passa a ignorar que a população não tem essas regalias. A classe média progressista mora em bairros nobres, com acesso relativamente fácil a seus locais de trabalho e ao aeroporto, e sua preocupação se concentra, portanto, em coisas abstratas (apesar de fundamentais), como democracia, “comunicação do governo”, regulação ou não das redes etc. Enquanto isso, a população é torturada diariamente em meios de transporte totalmente incompatíveis com a tecnologia disponível hoje no mundo.
E me surpreende que o governo sequer oferece esperança de que isso possa mudar. Como assim?
Essa cultura da esquerda, do governo e da classe média progressista de ignorar o problema mais central do país deriva de um sentimento de casta. A classe média tem carro, pode andar de avião, viajar o mundo. Para que se importar com coisas prosaicas como a mobilidade de bens e pessoas no Brasil?
Eu vejo o governo apenas falar em carro, carro, carro. Carro podia ser transporte popular e confortável na década de 70, quando Lula adquiriu seu primeiro automóvel e as cidades e estradas não eram congestionadas. Não é mais assim! Carro novo hoje é muito caro e, sobretudo, não é mais um transporte confortável, em função do excesso deles.
Quando pensei que Lula estaria negociando com a China algum projeto ambicioso para importar a tecnologia ferroviária revolucionária daquele país, o governo anuncia… mais fábricas de carros no Brasil!
Se alguém experimentar um congestionamento na Avenida Brasil ou na Linha Amarela, num dia quente do Rio de Janeiro, entenderá rapidamente por que ainda existe tanto mau humor contra o governo e contra o Estado. Contra qualquer governo e contra qualquer Estado. A extrema-direita se beneficia desse sentimento porque ela é “antissistema”, o que significa que é mentirosa e destrutiva. Mas não se deve esperar, naturalmente, nada de útil ou bom da extrema-direita. Já do campo democrático, da esquerda, do centro “esclarecido” e, sobretudo, do governo Lula, espera-se mais consciência acerca do problema dramático da mobilidade.
Até mesmo a questão da segurança pública está diretamente ligada à mobilidade. As cidades brasileiras só serão seguras quando possuírem sistemas de transporte eficientes, que permitam o deslocamento rápido das forças de segurança.
Educação, saúde, segurança, desenvolvimento, todos os setores da vida nacional precisam de um sistema nacional de mobilidade mais inteligente, focado sobretudo no transporte sobre trilhos.
Não é comunicação, meus amigos e amigas, que falta ao governo Lula. O que falta são projetos para construção de trens, metrôs e VLTs!
Ah, mas isso não exigiria décadas?
Não, hoje em dia há tecnologias e experiência para transformar a mobilidade de bens e pessoas no Brasil em poucos anos. Justamente por ser algo que exige um tempo de construção maior do que outros meios de transporte, deveríamos ter um maior senso de urgência para dar logo início a um projeto assim! Façamos projetos-piloto!
Por que nem Lula, nem nenhum ministro de seu governo, nem nenhum político de esquerda fala de trens? Não consigo entender!
Além disso, este seria o “sonho” que falta ao governo Lula. A perspectiva de tempos melhores no futuro ajudaria muito a dissolver o crescente e inevitável mau humor dos brasileiros contra o governo e contra o Estado.
Tenho escrito bastante sobre trens nos últimos anos e já detectei que o tema faz os olhos brilharem dos brasileiros comuns, à direita e à esquerda. Apenas os políticos, inclusive os de esquerda, ignoram o assunto ou olham para ele com ar blasé, pelas razões tristes e egoístas que expus acima: já estão acomodados em seus apartamentos próprios em bairros nobres e contentes com os tickets aéreos emitidos pelo Estado.
Nem a esquerda radical parece entender a importância disso. Ao invés de abordar temas práticos, como a mobilidade urbana, prefere engajar-se em intermináveis sessões coletivas de masturbação ideológica sobre o suposto “neoliberalismo” do governo Lula. Essa é uma das razões para seus resultados eleitorais absolutamente medíocres. Apenas existem nas redes sociais, fazendo barulho como cãezinhos estridentes, mas inofensivos.