Por que a China não tem medo de Trump

Trump e Xi Jinping enfrentam um cenário de tensões crescentes, mas o isolacionismo pode favorecer Pequim / Damir Sagolj / Reuters

O que faz a China se sentir segura mesmo diante das políticas linha-dura e retórica agressiva de Trump? A resposta pode surpreender


Por anos, Donald Trump tem atacado a China, descrevendo-a como a causa de uma série de problemas nos Estados Unidos. Ele lamentou o enorme déficit comercial de Washington com Pequim e culpa a China por desindustrializar o coração industrial americano. Trump também insistiu que a pandemia de COVID-19 foi culpa da China. Mais recentemente, ele atribuiu a crise de opioides nos EUA a Pequim, acusando a China de “atacar” os Estados Unidos com fentanil. Em comícios e coletivas de imprensa, a China aparece como um adversário monstruoso, um inimigo que apenas Trump pode subjugar. Durante seu primeiro mandato, ele desafiou décadas de política dos EUA ao iniciar uma guerra comercial com a China. Enquanto se prepara para iniciar seu segundo mandato, sua retórica e nomeações para o gabinete sugerem que ele dobrará a aposta nessa abordagem linha-dura. O relacionamento já conturbado entre os dois países está prestes a se tornar ainda mais difícil.

No entanto, os líderes da China não veem Trump com temor. Eles aprenderam muito durante seu primeiro mandato. Sua inclinação para o protecionismo econômico levará a novas disputas e tensões crescentes, mas Pequim acredita que pode navegar por esses confrontos. Além disso, o compromisso questionável de Trump com os aliados dos EUA encorajará outros países a diversificar suas alianças, construindo laços com Pequim para compensar a imprevisibilidade de Washington. A probabilidade de conflitos militares com os Estados Unidos também é baixa. Como a política externa de Trump nunca demonstrou compromissos ideológicos profundos, é improvável que a competição entre os dois países assuma dimensões tão destrutivas quanto as da Guerra Fria. Trump não quer se envolver em guerras e prefere focar em reformas domésticas. Ele chegará à Casa Branca com a intenção de conter a China, mas os líderes chineses não temem seu retorno.

IMPASSÍVEIS COM TRUMP
Pequim não acredita que o resultado das eleições presidenciais de 2024 nos Estados Unidos tenha muito impacto na trajetória geral da política dos EUA em relação à China. Independentemente de quem assuma a Casa Branca, o próximo presidente será respaldado por um consenso bipartidário que vê a China como uma ameaça à dominância global dos EUA e continuará tentando conter o país asiático. Claro, algumas coisas mudarão de uma administração para outra. No segundo mandato, a política de Trump em relação à China será diferente não apenas da de Joe Biden, mas também de seu próprio primeiro mandato. Por exemplo, Trump nomeou para posições-chave de política externa e segurança nacional extremistas de direita, alguns com menos de 50 anos, marcando uma mudança em relação aos oficiais que ele escolheu após a eleição de 2016. Diferentemente dessas figuras, muitas das quais eram oficiais militares experientes no período final da Guerra Fria, quando China e EUA eram parceiros estratégicos, muitos dos novos escolhidos cresceram durante a ascensão meteórica da China no cenário global. Eles veem a China como a principal ameaça aos EUA e favorecem políticas mais extremas e coercitivas para suprimir os avanços chineses.

Essa abordagem linha-dura pode não funcionar tão bem em um contexto geopolítico que mudou significativamente desde o primeiro mandato de Trump. Quando ele assumiu o cargo em 2017, a maioria dos países acreditava que ele se comportaria como um líder convencional, um tomador de decisões ideologicamente neutro e economicamente racional. Grandes aliados dos EUA esperavam que Trump se comprometesse com sua segurança. Pequim convidou Trump para visitar a China no primeiro ano de seu mandato. Apesar da oposição dos EUA à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, o Kremlin convidou Trump para Moscou em 2017 para a celebração anual da vitória na Segunda Guerra Mundial.

Desta vez, líderes estão empenhados em proteger seus países da incerteza de um segundo mandato de Trump. O presidente francês Emmanuel Macron convidou Trump para Paris no início de dezembro, na esperança de destacar para o presidente eleito que os europeus serão os principais tomadores de decisão quando se trata de sua segurança. Alemanha e Japão temem que Trump exija mais pagamentos financeiros para garantir a presença militar dos EUA em seus países. O governo interino da Coreia do Sul teme que Trump aproveite sua falta de autoridade para obter ganhos econômicos. Trump terá de lidar com o fato de que Rússia e Estados Unidos agora estão em lados opostos na guerra na Ucrânia. O apoio político inabalável e a ajuda militar de Washington à operação brutal de Israel em Gaza—que muitos ao redor do mundo consideram um ato de genocídio—exporam ainda mais a hipocrisia das alegações dos EUA de defender o direito internacional e os direitos humanos.

Desde que Trump assumiu o cargo há oito anos, Pequim se tornou mais hábil em gerir sua competição com Washington. Essa competição pode ser considerada iniciada de forma mais significativa em 2010, quando o presidente Barack Obama lançou o “pivô para a Ásia”. Nos anos seguintes, Pequim navegou pelas diferentes estratégias das administrações Obama, Trump e Biden; Obama e Biden tentaram conter a China por meio de abordagens multilaterais, enquanto Trump adotou um caminho mais unilateral. Com essa experiência, os líderes chineses estão impassíveis diante da perspectiva de outro mandato de Trump, chegando até a publicar diretrizes estratégicas sobre como lidar com as possíveis políticas do presidente eleito em novembro. Pequim, segundo o documento publicado pelo consulado-geral da China em Los Angeles em 17 de novembro, manterá o “compromisso com respeito mútuo, coexistência pacífica e cooperação de ganhos mútuos como princípios para lidar com as relações China-EUA.” “Respeito mútuo” sugere que a China retaliará qualquer ação provocativa tomada por Trump; “coexistência pacífica” significa que a China buscará engajar Trump em diálogo para gerenciar diferenças e conflitos e estabilizar as relações bilaterais; e “cooperação de ganhos mútuos” refere-se ao trabalho conjunto em questões globais nas quais China e EUA têm interesses compartilhados, como o fim da guerra na Ucrânia, o desenvolvimento de regulamentações e diretrizes para a inteligência artificial e o combate ao fluxo de drogas ilícitas.

TURBULÊNCIA À FRENTE
Trump parece decidido a adotar uma postura protecionista econômica em seu segundo mandato, especialmente no que diz respeito à China. Ele já indicou que pode impor novas tarifas sobre produtos chineses, aumentar as restrições aos investimentos norte-americanos na China e ao capital chinês no mercado de ações dos EUA, impor mais limites à cooperação tecnológica e reduzir o número de estudantes chineses estudando nos Estados Unidos. Essas decisões inevitavelmente levarão a mais atritos entre Pequim e Washington. A administração Biden manteve as tarifas impostas por Trump a produtos chineses durante seu primeiro mandato, mas concentrou-se principalmente em excluir a China das cadeias de suprimentos tecnológicas, sem buscar um desacoplamento total da economia dos EUA em relação à China. Durante o governo Biden, o comércio em outros setores entre China e EUA continuou, embora a cooperação em tecnologia de ponta tenha sido interrompida. No entanto, no segundo mandato, Trump provavelmente pressionará por um desacoplamento mais amplo, tentando reduzir drasticamente a participação de mercado de produtos chineses nos EUA, incluindo bens montados fora da China, mas altamente dependentes de investimentos e componentes chineses. Pequim provavelmente retaliará. Essa dinâmica de retaliações pode levar a guerra comercial entre as duas potências a um novo ápice, com consequências prejudiciais para a economia global, à medida que outros países correm para adotar políticas protecionistas próprias.

Enquanto Trump busca intensificar a guerra comercial, sua administração provavelmente aumentará a pressão militar sobre Pequim. Ao enfrentar adversários, Trump frequentemente recorreu a táticas de intimidação e blefe, como sua ameaça de atacar a Coreia do Norte com “fogo e fúria” após testes de mísseis de médio alcance por Pyongyang em 2017. Marco Rubio, indicado por Trump para secretário de Estado, e Pete Hegseth, indicado para secretário de Defesa, são considerados defensores de uma linha dura contra a China, com fortes crenças anticomunistas. Se suas nomeações forem aprovadas pelo Senado, eles podem incentivar a tendência de Trump ao blefe ao abordar tensões militares com Pequim, especialmente em questões marítimas no Mar do Sul da China e conflitos sobre Taiwan. Por meio de retórica belicosa e ações impulsivas, Washington pode provocar crises semelhantes à que se seguiu à visita de Nancy Pelosi a Taiwan em 2022, quando Pequim intensificou sua atividade militar na região do Estreito de Taiwan. Não seria surpreendente se Trump ou seus funcionários acabassem provocando incidentes semelhantes e elevando as tensões entre China e EUA.

O segundo mandato de Trump quase certamente terá um efeito paralisante sobre os diálogos oficiais entre Pequim e Washington. Sob o governo Obama, havia mais de 90 canais oficiais de diálogo entre os dois governos. Ao final do primeiro mandato de Trump, nenhum restava. Trump provavelmente suspenderá os quase 20 canais com a China que a administração Biden estabeleceu e pode substituí-los por novos canais sob sua supervisão direta, em vez de deixá-los nas mãos de altos funcionários burocráticos. Mas a China será extremamente cautelosa ao se aproximar de Trump, já que seus líderes ainda se lembram de como a visita de Trump a Pequim em novembro de 2017 levou a um rápido agravamento nas relações bilaterais no mês seguinte, quando Washington negou à China o status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio.

Além dos confrontos entre governos, a animosidade entre China e Estados Unidos pode crescer no nível social. O populismo está ganhando força em ambos os países, alimentando as chamas do chauvinismo. Se Trump levar adiante sua ameaça de aplicar medidas econômicas contra a China e continuar com demonstrações de força militar, a tensão política resultante inevitavelmente incentivará a hostilidade entre seus povos. Tanto os populistas americanos quanto os chineses (principalmente radicais nas redes sociais que seguem influenciadores nacionalistas) atribuem os problemas domésticos à malícia estrangeira, um argumento que será encorajado pelos governantes, pois convenientemente transfere a culpa para um agente externo. Tornar-se-á mais difícil melhorar as relações bilaterais, à medida que pressões culturais e sociais mantêm os países em conflito.

FIQUE ATENTO
O segundo mandato de Trump pode aumentar as tensões entre China e Estados Unidos enquanto ele tenta usar pressão econômica e militar para conter Pequim. Mas, na prática, uma presidência de Trump pode beneficiar a China de várias maneiras. Para começar, o relativo desinteresse de Trump em questões ideológicas pode suavizar alguns aspectos do confronto com Pequim. Focado exclusivamente nos resultados econômicos, Trump nunca se preocupou em defender os direitos humanos, por exemplo. Ele não tem interesse em moldar o sistema político da China para que se assemelhe aos de seus homólogos ocidentais, sendo, portanto, improvável que intervenha nos assuntos internos chineses. Pequim, por sua vez, não tem planos de espalhar sua ideologia internacionalmente, com o Partido Comunista Chinês concentrado em manter a estabilidade política doméstica. Conflitos econômicos e estratégicos podem aumentar durante o segundo mandato de Trump, mas não se transformarão em conflitos ideológicos que coloquem os dois estados em rota de colisão direta.

O isolacionismo político de Trump—o equivalente diplomático de seu protecionismo econômico—pode levar os Estados Unidos a reduzir seus investimentos na proteção de aliados tradicionais. O presidente eleito há muito tempo critica os aliados dos EUA por se beneficiarem do poder e da generosidade americana. Essas reclamações podem levar os aliados dos EUA, tanto na Europa quanto na Ásia Oriental, a enxergarem vantagens em equilibrar relações entre China e Estados Unidos. Considere, por exemplo, o caso de Cingapura. Em 2010, com a competição EUA-China crescendo, Cingapura adotou uma estratégia de equilíbrio entre as duas grandes potências. Intensificou seus laços econômicos com a China, enquanto dependia dos EUA para segurança. Muitos outros países seguiram o exemplo, incluindo Japão, Alemanha, França, Reino Unido e outros membros da ASEAN.

Mandato de Trump pode beneficiar a China de várias maneiras.

Desde 2022, a guerra na Ucrânia abalou muitos países ocidentais e os obrigou a se alinhar mais estreitamente aos Estados Unidos. No entanto, se Trump reduzir a ajuda militar à Ucrânia, como prometeu durante a campanha, a confiança nas garantias de segurança dos EUA pode enfraquecer. Para fortalecer suas economias e, assim, apoiar melhor o esforço de guerra ucraniano, os países europeus podem se tornar mais francos em equilibrar relações, criando novas oportunidades para a China construir cooperação econômica com os tradicionais aliados dos EUA. Trump também se enxerga como um pacificador e gostaria de afirmar que foi ele quem encerrou a guerra na Ucrânia. A China poderia desempenhar um papel construtivo ao ajudar Trump a alcançar esse objetivo. A guerra tem apenas consequências negativas para a economia chinesa, e Pequim ficaria feliz em vê-la terminar. Com sua relação próxima com a Rússia, a China poderia usar essa influência para trabalhar com Trump em busca de um acordo de paz eficaz.

Trump também buscará evitar um conflito aberto com a China, apesar de sua retórica agressiva. A questão da independência de Taiwan continuará sendo uma fonte de atrito entre Pequim e Washington, mas é improvável que os dois países entrem em guerra por isso. Nos próximos quatro anos, a atenção de Pequim estará significativamente voltada para reviver a economia do país, que está desacelerando. A China não está prestes a definir um cronograma para a reunificação com Taiwan quando está prioritariamente focada no crescimento de seu PIB. Por sua vez, Trump quer ser lembrado como um dos maiores presidentes dos EUA, ao lado de figuras como George Washington e Abraham Lincoln. Para isso, ele se concentrará em reformas domésticas e no fortalecimento da economia interna. Ele não desejará se envolver na questão de Taiwan e arriscar um confronto entre grandes potências—afinal, orgulha-se de não ter iniciado nenhuma guerra durante seu primeiro mandato.

Aqueles que preveem um agravamento da guerra fria entre China e os Estados Unidos sob Trump estão equivocados. A competição entre os EUA e a China não é ideológica, como era com a União Soviética, mas tecnológica. Na era digital, segurança e prosperidade dependem enormemente do progresso tecnológico. China e EUA competirão por inovação em campos como inteligência artificial e disputarão mercados e cadeias de suprimentos de alta tecnologia. Não buscarão—e certamente não sob Trump—converter outros países à sua ideologia de governança preferida. Durante a Guerra Fria, União Soviética e Estados Unidos usaram guerras por procuração para espalhar, respectivamente, o comunismo e o capitalismo. O Sul Global, em particular, ainda sente os ecos da devastação e dos tumultos que essas guerras causaram. Hoje, no entanto, conflitos por procuração entre grandes potências têm pouca utilidade. Pequim não tem interesse em mudar a ideologia de outros países. Da mesma forma, Trump não tem interesse em disseminar valores americanos, quaisquer que sejam eles. Ele vê a guerra na Ucrânia como uma guerra por procuração contra a Rússia e considera o esforço totalmente condenável. Não há razão para ele instigar uma guerra por procuração contra a China no Estreito de Taiwan ou no Mar do Sul da China. Afinal, a China tem muito mais recursos econômicos e militares do que a Rússia.

Na competição entre grandes potências, a política externa frequentemente fica em segundo plano em relação à política doméstica. Embora o isolacionismo de Trump certamente crie oportunidades para Pequim melhorar suas relações com aliados dos EUA, serão as reformas internas que realmente determinarão o rumo da competição entre as duas potências. Atualmente, tanto os líderes chineses quanto a equipe de Trump estão mais preocupados com questões internas do que externas. Se os líderes chineses fizerem um trabalho melhor na implementação de reformas do que Trump nos próximos quatro anos, a China reduzirá a diferença de poder em relação aos Estados Unidos. Mas, se Trump fizer um trabalho melhor que a China nesse aspecto—e evitar conflitos e envolvimentos externos prejudiciais—a diferença de poder entre os dois países aumentará.

Com informações de Yan Xuetong, para o Foreign Affairs*

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