O debate nacional sobre a nossa economia política vem produzindo uma atmosfera de caos cognitivo que, definitivamente, não é saudável.
De um lado, temos a mídia comercial e seus colunistas de economia acusando o governo Lula de praticar um populismo irresponsável. Este setor da sociedade recebeu a proposta de ajuste fiscal do governo com absoluto desprezo, por considerá-la mera perfumaria.
Nos últimos dias, pipocaram editoriais elogiosos ao governo Milei, por ter obtido superávit fiscal recentemente, mesmo que ao custo de derrubar a economia, elevar a pobreza e cortar drasticamente despesas sociais. O Banco Mundial estima que o PIB argentino deve desabar 3,5% em 2024. Bom lembrar que os indicadores macroeconômicos mais objetivos são aqueles que associam os números ao PIB. Não é racional, portanto, entender que uma política econômica está indo bem se o PIB está em queda livre. Poderíamos acrescentar que não é também humano pensar assim, porque isso equivaleria a comemorarmos uma perda de peso após a amputação de nossas pernas.
A comparação das políticas econômicas de Brasil e Argentina, a propósito, atingiu um aspecto incrivelmente demencial, ainda mais depois que os dados fiscais do governo brasileiro, de outubro, registraram um forte superávit de R$ 40,8 bilhões.
Ou seja, o governo brasileiro está praticando uma política econômica responsável. O fato, porém, de não levar adiante nenhum corte violento e cruel nas despesas com educação, saúde e assistência social, parece despertar um ódio bestial nos colunistas neoliberais, talvez por não poderem satisfazer seu instinto sádico de assistir ao sofrimento da camada mais vulnerável da população.
O governo brasileiro, reitere-se, obteve um sólido superávit em outubro, e com isso, o déficit primário no acumulado de 12 meses registrou uma forte queda, de maneira que o ministro da Fazenda está cumprindo o acordo que estabeleceu com os agentes econômicos (que financiam a dívida, dominam a opinião pública e exercem forte controle político sobre o congresso nacional), de praticar uma política fiscal responsável e sustentável.
Entretanto, reitere-se, o esforço fiscal do governo não implicou em nenhum corte de despesas sociais. Mais importante: a economia está crescendo de maneira vigorosa. Os dados do PIB divulgados ontem pelo IBGE mostram um avanço de 4% no terceiro trimestre, sobre igual período de 2023, sendo que, desta vez, não é sequer o agronegócio que está contribuindo, e sim a indústria de transformação, o consumo das famílias e o investimento produtivo. O desemprego caiu para 6%, um dos menores níveis da nossa história.
A preferência da mídia por Milei não apenas é puramente ideológica, como também não parece sequer fundamentada em dados objetivos. Nem deveríamos chamar de ideológica. É uma preferência antes mística, como se a mídia estivesse ouvindo conselhos de um cachorro morto.
Por outro lado, temos uma boa parte da esquerda lutando contra moinhos de vento, presa a uma briga contra o arcabouço fiscal como se houvesse a mais remota possibilidade para derrubá-lo no congresso. Pior, ela parece em negação. Muitos preconizaram que o novo arcabouço levaria a uma catástrofe social, com redução drástica das despesas. Alguns até hoje estão presos nessa crítica, como se os dados não importassem. O fato, porém, é que não houve corte social nenhum. Ao contrário, despesas com educação e saúde, que estavam acorrentadas ao teto de gastos, foram emancipadas pelo novo marco fiscal e aumentaram dramaticamente.
Há alguns ruídos curiosos. Quem acompanhar distraidamente o debate neurastênico em certas bolhas da esquerda, pode acreditar que o governo fez cortes drásticos em programas como BPC, quando se deu exatamente o contrário. As despesas do governo com BPC, no acumulado dos últimos 12 meses até outubro, totalizaram R$ 111 bilhões, um aumento impressionante de 17% sobre igual período de 2023. E a evolução mensal das despesas com BPC vem crescendo muito este ano. Do ponto-de-vista estritamente fiscal, isso não é necessariamente bom, sobretudo se os filtros para a concessão do benefício não estiverem oferecendo a higidez necessária, ou seja, caso esteja havendo desvio desse recurso para pessoas que não precisam dele.
Concretamente, a política econômica de Fernando Haddad não é de austeridade. Tanto é que vem sendo atacado pelos setores mais liberais da opinião pública, incluindo aí uma forte onda de ataque especulativo vindo do mercado. A acusação da Faria Lima é a oposta: de que o governo Lula teria optado pelo “populismo econômico”.
Daí a minha observação sobre o caos cognitivo no debate. A direita acusa o governo de populismo econômico, enquanto uma parte da esquerda tenta pintar Haddad como um drácula neoliberal.
Acho importante também que as pessoas tenham uma noção melhor sobre a magnitude do orçamento federal.
Nos últimos 12 meses, até outubro, o governo obteve uma receita líquida de R$ 2,12 trilhões, ou seja, de 2 trilhões e 120 bilhões de reais. As despesas, no mesmo período, corresponderam a R$ 2,47 trilhões. O cálculo do resultado primário é feito substraindo as despesas da receita líquida, chegando aos já mencionados R$ 225 bilhões de déficit.
Um corte de R$ 70 bilhões em dois anos, conforme proposto por Haddad, ou R$ 35 bilhões por ano (menos de 1,5% das despesas federais em 2024), se devidamente diluído em diversos órgãos e despesas, com foco em corte de privilégios, não deve produzir nenhum efeito dramático nos serviços públicos.
Não me parece razoável, nem estratégico, que uma parte da esquerda transmita à opinião pública a impressão de que a questão fiscal não deva ser tratada com absoluta seriedade e rigor. Ademais a quem interessa vender a fantasia de que o governo Lula poderia estourar os gastos públicos sem nenhuma consequência em termos de ataque especulativo contra o valor da nossa moeda, contra os títulos da dívida, e sem que isso se transformasse numa crise política paralisante e destrutiva no congresso?
O exercício da crítica, por outro lado, é fundamental. É saudável que tantos intelectuais e influencers queiram dar mostras de coragem e independência política, através de um posicionamento duro contra o que consideram erros do governo.
Mas acho simplesmente inútil gastar energia com algumas coisas. Em minha humilde opinião, toda essa coragem e independência deveriam ser direcionadas para críticas a falta de investimento em infra-estrutura, especialmente na área de mobilidade urbana. Com a economia aquecida, os brasileiros estão precisando viajar mais, por razões de trabalho, e estão se deparando com o custo crescente das passagens aéreas. Conforme cresce a demanda, aumentam os preços. Eu realmente não consigo entender porque o Brasil não tem um grande projeto ferroviário! Esse é o gargalo principal do governo. Não é BPC, não é Bolsa família, que vão muito bem, obrigado. O problema do governo Lula é sua obsessão bizarra por automóveis, o que me parece um reflexo muito triste de um pensamento elitista que contaminou toda a burocracia partidária e governamental. Os quadros do governo federal tem suas passagens aéreas pagas pelo Estado. Não é o caso de nós, reles mortais do setor privado, ou dos setores mais humildes do serviço público, que representamos 99% da sociedade.
Esse sim me parece o principal risco político vivido pelo governo Lula, o de ser visto como uma “casta” pela população. Temos milhões de pequenos empresários – inclusive eu, da área da comunicação -, e dezenas de milhões de trabalhadores, que estamos perdendo muitas oportunidades porque estamos acorrentados a um modelo nacional de transporte baseado unicamente em carro, ônibus e avião.
Não considero isso um problema trivial. Sem mobilidade urbana adequada, não se conseguirá completar o processo de modernização do país, aí incluindo a correção dos problemas de segurança pública, limpeza urbana e acesso mais ágil a serviços de saúde.
O problema brasileiro mais estratégico, e que mais corresponde à crítica de que falta ao governo um projeto nacional, é a falta de transporte sobre trilhos!
Fonte: Boletim Mensal do Tesouro Nacional, até outubro de 2024.
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