Com o Brasil na presidência rotativa e a viagem do presidente chinês, Xi Jinping, ao Rio de Janeiro, o G20 deste ano vem com uma expectativa especial para novos avanços no relacionamento sino-brasileiro. Isso sem mencionar o marco dos 50 anos das relações diplomáticas.
O programa Sala de visitas convida o pesquisador do Instituto dos Estudos Latino-Americanos da Academia de Ciências Sociais da China (CASS), Dr. Wang Fei, para trazer análises atualizadas.
1. Como interpreta as expectativas do Brasil expressadas no seu slogan do G20? Quais consensos ou ações podemos esperar nessa cúpula?
Como um grande país em desenvolvimento, especialmente o maior no hemisfério ocidental, o Brasil tem tido a ambição de elevar sua posição global por meio do poder brando. A partir das pautas que Brasil sugeriu para cúpula as mensagens transmitidas pelo presidente Lula, acredito que podemos ter quatro expectativas para cúpula no Rio de Janeiro.
O primeiro aspecto é a ênfase constante do Brasil na justiça social, ou seja, na busca por equidade. O Brasil espera que, por meio de seus esforços para promover redução da pobreza e a justiça social, possa exercer uma influência positiva tanto em nível global quanto para outros países em desenvolvimento.
Podemos tomar como referência dos dois primeiros mandatos de Lula. No final de seu segundo mandato em 2010, ele alcançou uma taxa de apoio extremamente alta de 80%. Foi justamente um reflexo do reconhecimento da população pelos avanços na área de justiça social. Portanto, é uma posição que o Brasil tem mantido, que pretende aumentar sua influência global por meio da promoção da equidade e da justiça social.
Segundo, indico o aspecto relacionado à gestão ambiental e à sustentabilidade. Isso também contrasta diretamente com a abordagem do ex-presidente Jair Bolsonaro. Como o país possui uma vasta área conhecida como o “pulmão do mundo”, ele tem uma expectativa de contribuir para a proteção do planeta e, através disso, conseguir receber mais apoio, seja em recursos financeiros ou tecnológicos.
O terceiro ponto refere-se à melhoria da governança global. Esse é propriamente um dos objetivos centrais do G20 como um mecanismo de cooperação multilateral. No caso do Brasil, os principais focos são a governança no campo do comércio internacional e no setor financeiro internacional.
Por último, o vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, mencionou no B20 sobre o uso da inteligência artificial e a governança em torno dela. O Brasil quer queo avanço e a transformação que essa tecnologia pode produzir para ajudar a realizar sua meta de reindustrialização, além de fortalecer sua posição na competição tecnológica global.
2. Como a China agiu e respondeu a tais esforços da parte brasileira?
O primeiro é o setor financeiro e fiscal. A China atribuiu grande apoio ao Brasil nessa área. Quando se refere ao apoio financeiro, tem duas maneiras. Uma é o canal de financiamento para projetos de desenvolvimento, e a outra é o suporte para garantir a estabilidade financeira.
Em termos de canais de financiamento, podemos observar que, após Lula assumir o governo, ele designou a ex-presidente Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do Brics, ou o NDB. Então, sob a liderança da Dilma, diversas políticas de apoio foram implementadas a esse respeito. A presidente acabou de ser premiada com a Medalha da Amizade da República Popular da China. Acredito que, nesse sentido, a China e o Brasil estabeleceram um consenso tanto em termos de visão quanto de ações práticas. Isto quer dizer que atribuímos um grande apoio a Dilma e ao banco na sua liderança.
No que diz respeito à estabilidade financeira, enxergarmos que, em 2023, China e Brasil conseguiram obter um grande avanço na prática da liquidação em moeda local e no uso do Renminbi nas transações. Isso reflete que, com o aumento contínuo do volume comercial e a otimização da estrutura do comércio bilateral, a liquidação em moeda local pode garantir e apoiar o comércio, protegendo-o das flutuações cambiais do dólar americano.
O segundo ponto é o comércio. Porque o recente resultado das eleições nos Estados Unidos já anunciou o retorno de Donald Trump, o que pode representar um impacto no comércio livre global. Recentemente, o Conselho Empresarial Brasil-China publicou um relatório propondo a assinatura de um acordo de livre comércio entre a China e o Mercosul, representado pelo Brasil. Sob essa perspectiva, China e Brasil já começaram a buscar os avanços na reforma do comércio livre em níveis bilaterais ou multilaterais menores. Por meio de acordos de livre comércio mais eficientes e padronizados, espera-se alcançar progressos na reforma do sistema de governança comercial global, agora liderado por países em desenvolvimento.
3. A China sediou a cúpula do G20 em 2016 e pela primeira vez colocou questões do desenvolvimento numa posição proeminente no bloco. Como prevê propostas que a China dará? Quais serão os pontos de convergência que China e Brasil podem trabalhar?
A questão do desenvolvimento é um desafio comum enfrentado por todos os países em desenvolvimento e economias emergentes, incluindo China e Brasil. No entanto, esse tema hoje não pode ser discutido isoladamente, pois está, de fato, intrinsecamente ligado à segurança.
Com o comportamento cada vez mais frequente de politização e securitização por parte dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, o ambiente para os demais países avançarem em seu desenvolvimento tem sofrido alterações.
Especificamente para a China e o Brasil, vejo alguns pontos de convergência. Primeiramente, como alcançar um desenvolvimento mais eficaz no cenário global cheio de incertezas, para que garantam um crescimento econômico sustentável e um ambiente relativamente mais estável.
Em segundo lugar, é necessário lidar com as mudanças no mercado financeiro global. Recentemente, o real brasileiro tem se desvalorizado sem parar, atingindo o segundo menor valor histórico. Garantir estabilidade monetária é um desafio enfrentado por praticamente todos os países em desenvolvimento, incluindo o Brasil.
O terceiro ponto é a promoção do livre comércio. A estratégia dos Estados Unidos de desacoplamento e desassociação, ou do chamado quintal pequeno com cerca alta, impõe limitações e armadilhas para todos os países em desenvolvimento. Portanto, essas nações devem buscar mais autonomia e eficiência na condução da economia. Isso exige um esforço conjunto para garantir a estabilidade das cadeias de suprimentos e da indústria.
Por fim, com a vitória de Trump, surge uma ameaça em relação às mudanças climáticas globais. Caso os Estados Unidos deixem o Acordo de Paris novamente, representaria um desafio para o Brasil, um país com uma posição crucial na questão climática global. Afinal de contas, é necessário que a China apoie firmemente o Brasil e busque pontos de convergência entre os dois países nessa área.
4. O encontro do G20 desempenhou algum papel ou não para mudar essa situação de desigualdade?
O contexto da criação do G20 foi a necessidade de reformar o sistema irracional nos setores fiscal e financeiro, ou seja, a hegemonia do dólar americano e do Federal Reserve dos Estados Unidos. No entanto, após tantos anos, permanecem inalterados nos dois focos primordiais do G20.
Para países como Brasil e China, apesar de alguns consensos e acordos alcançados em reuniões do G20, as potências ocidentais ainda não concederam importância suficiente às economias emergentes.
Do ponto de vista acadêmico, caímos precisamente na chamada “armadilha de Kindleberger”. No entanto, essa armadilha é, na verdade, um rótulo que os acadêmicos estadunidenses impõem à China. Quer dizer, quando uma nação hegemônica deixa de fornecer bens públicos globais, ao mesmo tempo não permite que países em desenvolvimento, como China e Brasil, desempenhem esse papel, resultando em uma carência no suprimento.
Acredito, entretanto, que não se pode atribuir esse ônus aos dois países. A principal responsabilidade continua a ser das potências ocidentais.
5. Como você avalia o desempenho do governo de Lula perante os compromissos feitos ao longo do seu mandato?
Antes ou depois da pandemia de Covid-19, o Brasil estava em um período de recuperação econômica ou, por assim dizer, uma recuperação após a recessão. Em 2020, a economia brasileira encolheu 3,28%, mas em 2021 e 2022, o Brasil alcançou crescimento de 4% e 3%, respectivamente.
Nessa perspectiva, sob o governo de Lula, a economia brasileira mostra sinais de recuperação ou esperança. Recentemente, a inflação voltou a subir, superando a meta estabelecida pelo Banco Central do Brasil, o que gera uma pressão significativa dentro do país. A pressão vem principalmente do setor fiscal, pois, como um presidente de esquerda, Lula depende de gastos sociais. O excesso de despesas sociais exige forte apoio fiscal, o que coloca grande pressão nas contas públicas.
De outro lado, em meio a uma onda global de queda nas taxas de juros, o Brasil começou a aumentar sua taxa de juros, criando um descompasso entre os ciclos do Banco Central do Brasil e do Federal Reserve americano. Novos aumentos da taxa enfraquecem o investimento doméstico. Portanto, a pressão fiscal e dos juros representam um impacto negativo nas perspectivas do crescimento econômico do Brasil.
No entanto, vale destacar que esses desafios não são novidade para o Brasil, pois, seja durante o governo de Lula ou o governo de Dilma Rousseff, devo dizer, o Partido dos Trabalhadores (PT), adotou uma abordagem semelhante. Assim, acredito que o governo brasileiro e o PT têm uma política sólida e estratégias preparadas para lidar com essas questões.
6. É um consenso de que há sinergia entre o projeto de reindustrialização do Brasil e da iniciativa chinesa Cinturão e Rota. Conforme seu estudo, em quais áreas os dois podem dar passos pragmáticos?
Acredito que a cooperação entre China e Brasil não será afetada, independentemente da forma adotada. Sob uma forte confiança política mútua, os dois países têm aprofundado seus laços econômicos por meio de uma maior cooperação comercial e investimentos, o que fortalece ainda mais a cooperação política entre os dois.
Nas duas reuniões de think tank que realizamos no Brasil em outubro passado, muitos especialistas e acadêmicos abordaram o tema do desequilíbrio nos números e na estrutura do comércio entre os dois países. Esse é um ponto que ambos os lados já começaram a encarar com seriedade. Tanto para China quanto para o Brasil, devemos enfrentar o problema de forma mais pragmática, não focando nas causas, mas buscando soluções.
Em uma visão integrada entre política e economia, ou olhando para isso como um todo, é importante enfatizar tanto os interesses políticos quanto os interesses econômicos. China e Brasil podem alcançar uma cooperação econômica e comercial mais robusta, de alto nível e de alto padrão, promovendo melhores intercâmbios de pessoas e tecnologia. Acredito que esses são passos possíveis para o futuro.
Entrevista publicada originalmente no CRI
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