“Marchando sobre o sangue dos mártires”, palavras inscritas no monumento aos camaradas da Longa Marcha em Ruijin, Jiangxi
A Longa Marcha (1934-1935) liderada pelos comunistas chineses é um dos maiores feitos revolucionários do século XX. Por mais de um ano, o Exército Vermelho e seus apoiadores camponeses percorreram 9 mil quilômetros, atravessaram 18 montanhas e 24 rios. Usando sandálias feitas de capim seco, marcharam uma média de 50 quilômetros por dia e se envolveram em batalhas a cada 72 horas, enquanto eram perseguidos por ataques aéreos e centenas de milhares de soldados inimigos por terra. Das 86 mil pessoas organizadas em quatro colunas que partiram nesta jornada, muitos morreram de fome, foram mortos, desertaram ou desistiram ao longo do caminho – apenas 8 mil soldados chegaram ao final da Longa Marcha. 2024 marca o 90º aniversário do início da Longa Marcha, assim como o 75º aniversário da fundação da República Popular da China (RPC). Essa história foi contada e recontada inúmeras vezes por revolucionários ao redor do mundo. Algumas lições e inspirações chave podem ser extraídas dessa história para as lutas atuais, incluindo a importância da organização, experimentação socialista e mobilização das massas para avançar em um projeto nacional e revolucionário.
Atravessar o rio sentindo as pedras
“Atravessar o rio sentindo as pedras” é um slogan cunhado pela primeira vez pelo líder do Partido Comunista da China (PCCh), Chen Yun, em 1950, mas que pode facilmente ser usado para descrever todo o processo revolucionário chinês. A Longa Marcha foi uma dessas grandes travessias do movimento comunista. Após uma série de levantes fracassados liderados pelo ainda pequeno proletariado urbano no final da década de 1920, uma parte dos comunistas, liderada por Mao Zedong, recuou para o campo para formar o Exército Vermelho de Operários e Camponeses da China. Embora o comando central do PCCh ainda estivesse baseado em Xangai, dominado pelos líderes treinados em Moscou, os comunistas liderados por Mao começaram a formar pequenos sovietes, culminando na criação da República Soviética da China em Ruijin, Jiangxi, em 1931.
Seis anos depois, a região soviética havia passado por uma reforma agrária e a terra havia sido redistribuída para os camponeses. Mais de 10 mil cooperativas foram criadas e o pequeno grupo de soldados revolucionários que fugiu das cidades havia crescido, formando um exército de dezenas de milhares de homens e mulheres, trabalhadores e camponeses. Para romper o bloqueio econômico e informacional imposto pelos nacionalistas (KMT), foram fundados os primeiros bancos do PCCh – produzindo notas de 1 yuan com o retrato de Lenin – juntamente com instrumentos de mídia, como o predecessor da Agência de Notícias Xinhua. Além disso, o desemprego, o ópio, a prostituição, a escravidão infantil e o casamento compulsório haviam sido eliminados. Como Edgar Snow descreveu em seu livro “Estrela Vermelha sobre a China”, o trabalho de educação em massa aumentou os níveis de alfabetização dos camponeses e camponesas em poucos anos, mais do que havia sido feito em toda a China rural por séculos.
Os anos passados nessa região, engajados na construção da linha de massas do PCCh, as experimentações com novas formas de governança e na defesa da base vermelha contra ataques externos, foram experiências formativas para Mao Zedong, Zhou Enlai, Zhu De, Deng Xiaoping e outros revolucionários e revolucionárias daquela geração. Em outras palavras, a construção e a experimentação socialista não começaram quando o PCCh tomou o poder em 1949, mas foram construídas a partir de duas décadas de experimentos e experiências, de Ruijin a Yan’an, atravessando o rio enquanto sentiam as pedras.
Um recuo estratégico
A Longa Marcha foi um recuo estratégico de Ruijin. Os nacionalistas liderados por Chiang Kai-shek empreenderam várias rodadas de ataques militares ao soviete. Para a quinta e última campanha de cerco, recebendo orientação militar de conselheiros nazistas alemães, Chiang mobilizou até 900 mil soldados com recursos e equipamentos avançados (incluindo 400 aviões de guerra). Os comunistas, por outro lado, tinham a força de 180 mil soldados e um fornecimento muito limitado de munições e armas, principalmente rifles e sem artilharia pesada. O cerco foi planejado como uma marcha fúnebre para os comunistas, e Chiang acreditava que finalmente havia “exterminado a ameaça do comunismo”. Mas estavam errados. Quando as duas primeiras colunas organizaram um ataque surpresa para romper as fortificações ao sul e oeste, milhares de guardas camponeses permaneceram para conter as forças nacionalistas. Em troca de suas vidas, ganharam tempo para que as colunas comunistas pudessem realizar sua retirada estratégica.
No meio da Longa Marcha, foi realizada a Conferência de Zunyi, na qual o Politburo do PCCh foi eleito. Mao Zedong emergiu como o principal líder do Partido e seu presidente, substituindo o antigo núcleo político liderado por Bo Gu, dos “28 bolcheviques” que haviam retornado dos estudos na Universidade Sun Yatsen em Moscou. Esta conferência consolidou a direção da estratégia revolucionária com o campesinato em seu centro. A história não é feita apenas por indivíduos – embora os líderes sejam importantes – mas se baseia no poder organizado das massas.
Não tomar das massas nem uma agulha nem a simples ponta dum fio
A Longa Marcha mobilizou o poder de massa da maioria camponesa, das minorias étnicas, dos jovens e das mulheres sob a liderança comunista. Já durante o período de Ruijin, o Exército Vermelho havia sistematizado seu método de trabalho no campo, resumido nas “Três Regras de Disciplina e as Oito Recomendações” emitidos em 1928. As Três Regras eram: Obedecer às ordens em todas as ações; Não tomar das massas nem uma agulha nem a simples ponta de uma linha; Entregar às autoridades todos os bens capturados. As Oito Recomendações eram: Falar polidamente; Comprar e vender com honestidade; Devolver tudo que se toma de empréstimo; Indenizar por todos os prejuízos causados; Não bater nem insultar o povo; Não causar prejuízos às plantações; Não tomar liberdades com as mulheres; Não maltratar os prisioneiros. Com essas práticas bem desenvolvidas, que contrastavam fortemente com a abordagem brutal dos nacionalistas, dos senhores feudais e dos senhores da guerra, os comunistas ganharam apoio popular em todos os lugares por onde a Longa Marcha passou. Assim, mais do que um recuo, a Longa Marcha tornou-se uma oportunidade de massificação do Partido no interior do país.
Em particular, os comunistas passaram por dez regiões de minorias étnicas, onde viviam os povos Miao, Yao, Zhuang, Dong, Tujia, Shui, Li, Buyi, Gelao, Naxi, Yi, Tibetano, Bai, Qiang, Hui, Dongxiang e Yugu, representando mais da metade dos territórios que o Exército Vermelho atravessou durante a Longa Marcha. Durante esse período, o PCCh promoveu seu programa político, ao mesmo tempo em que defendia a igualdade entre todos os grupos étnicos e se opunha à opressão étnica, ajudando as minorias étnicas a realizarem lutas econômicas e políticas contra os senhores de terras e senhores da guerra locais. Sem o apoio do povo Yi, por exemplo, o Exército Vermelho nunca teria conseguido passar com sucesso por Daliangshan, Sichuan. Foi formado um destacamento especial do Exército Vermelho do Povo Chinês Yi.
Os jovens desempenharam um papel importante durante a Longa Marcha, presentes no Partido desde os escalões mais baixos até os mais altos, do período de Ruijin até Yan’an. Em 1936, a idade média das fileiras do Exército Vermelho era de apenas 19 anos, enquanto a liderança do PCCh, que já estava no Partido há mais de uma década, tinha entre 30 e 40 anos. Por sua vez, as mulheres também desempenharam um papel fundamental, tanto na provisão de alimentos e roupas para os soldados do Exército Vermelho ao longo do caminho, mas também como participantes da Longa Marcha. Todas as 32 mulheres que marcharam com o Primeiro Exército sobreviveram, e suas principais tarefas eram agitação e propaganda, o cuidado dos soldados feridos, além de recolher suprimentos e recursos financeiros para o Exército Vermelho. Foi apenas com o apoio massivo dos camponeses locais, das minorias étnicas, das mulheres e dos jovens que os comunistas conseguiram navegar por paisagens traiçoeiras, escapar dos ataques inimigos, obter comida e suprimentos suficientes para sobreviver e completar a Longa Marcha.
A Longa Marcha unificou o país contra o imperialismo japonês. Enquanto mobilizavam e conscientizavam as massas em todo o país, os comunistas também traçaram a rota que mais tarde se tornaria a Segunda Frente Unida, a partir de 1936. O objetivo era unir todas as classes e todas as forças patrióticas na luta liderada pelos comunistas contra o imperialismo japonês, que era visto como a principal contradição. Raramente mencionado nas versões ocidentais da Segunda Guerra Mundial estão os 20 milhões de chineses que morreram resistindo ao fascismo japonês, durante uma ocupação brutal que durou 14 anos (1931-1945).
O povo chinês se levantou
Em outubro de 1935, apenas 8 mil soldados do Exército Vermelho chegaram a Yan’an, na província de Shaanxi. Um importante local da civilização chinesa, com raízes que remontam a 3 mil anos, Yan’an havia se tornado uma cidade fronteiriça pobre, empoeirada e remota com cerca de 10 mil habitantes na época em que os comunistas a transformaram em sua nova capital. Como um dos soldados disse ao jornalista Edgar Snow: “Este é culturalmente um dos lugares mais escuros da terra… Temos que começar tudo do início”. E começaram tudo novamente, construindo a partir das experiências do período soviético de Ruijin.
Na “década de Yan’an” que se seguiu, o grupo de comunistas mal alimentados e mal equipados mobilizou o apoio de dezenas de milhões de camponeses na região, conquistou apoio popular nas cidades, cresceu a militância no Partido para 1,2 milhão de pessoas e construiu um Exército Vermelho composto por um milhão de soldados, apoiado por milhões de camponeses armados. Em outubro de 1949, 14 anos depois de chegar a Yan’an, Mao Zedong declararia o estabelecimento da República Popular da China (RPC) em Pequim. Hoje, enquanto a RPC celebra seu 75º aniversário, o PCCh é uma organização com mais de 98 milhões de membros. A Longa Marcha continua sendo uma inspiração revolucionária e um fio condutor que conecta os diferentes períodos de experimentação socialista, de Ruijin a Yan’an e a Pequim.
*Editado por Fernanda Alcântara e publicado na Página do MST