Acompanhar a política brasileira pelas redes sociais é um exercício diário de resistência psicológica.
Muitas vezes parece um manicômio. E nós ali, presos, qual o personagem de Estranho no Ninho, com medo de sermos arrastados também para a loucura coletiva.
Um dos delírios frequentes, dentro da própria esquerda, aparece sempre que o ministro da Fazenda faz um discurso de contenção de despesas.
Enquanto as manifestações mais fora da casinha se limitavam aos extremistas e desequilibrados de sempre, tudo bem, mas a loucura é incrivelmente contagiosa e começa a se disseminar para setores mais consequentes.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por sua vez, precisa encontrar uma comunicação mais apropriada para seus projetos. É impressionante a sua capacidade de gerar crises a partir sempre do mesmo tipo de linguagem.
Haddad é o número 1 da sucessão de Lula e precisa preservar a sua imagem política com mais cuidado.
De qualquer forma, sempre me impressiono com a facilidade com que as pessoas inventam um universo próprio em que Haddad, e por conseguinte o governo Lula, se tornam “neoliberais” implacáveis, dispostos a sacrificar o povo no altar dos banqueiros da Faria Lima.
Primeiramente, vamos aos fatos. O governo Lula cortou algum programa social? Cortou BPC? Cortou Bolsa Família? Promoveu algum corte radical de despesas, a la Javier Milei?
Não.
Segundo a última informação do Tesouro Nacional, as despesas com o famoso BPC este ano, no acumulado de janeiro a agosto, totalizaram R$ 73,2 bilhões, um aumento próximo a 17% sobre o ano anterior!
Ou seja, o governo está aumentando, e dramaticamente, as despesas com BPC!
No acumulado de 12 meses, o governo já gastou R$ 107,28 bilhões com BPC, um aumento também de 17% sobre o ano anterior. Em 2 anos, o aumento foi de 30%.
Tudo isso é muito bom, porque a cada pessoa que recebe o BPC, tiramos um morador da rua. Mas me parece óbvio, por isso mesmo, que o programa precisa passar sempre por um filtro rigoroso, para que chegue realmente às pessoas que precisam do recurso.
Os valores são constantes, ou seja, ajustados pela inflação de agosto de 2024, segundo o índice IPCA, do IBGE.
Assim como o BPC, todos os programas sociais vem aumentando de maneira muito expressiva desde o início do novo governo Lula. Tanto em valor constante, como em percentual sobre o PIB.
As despesas do governo devem ser sempre comparadas ao PIB.
Quando se pega esse dado, a recuperação do BPC durante a gestão Lula 3 é impressionante.
O programa perdeu espaço no PIB durante o governo Bolsonaro, chegando a um mínimo de quase 0,74% do PIB em 2021, para subir bruscamente apenas no ano eleitoral. E vem crescendo desde 2023, e hoje representa quase 0,94% do PIB.
Quando Haddad fala na necessidade de cortes da ordem de R$ 15 bilhões, o mundo parece cair sobre o ministro, como se governo tivesse decidido paralisar a máquina pública para escoar os recursos para o pagamento de juros.
Falta um pouco mais de noção sobre a magnitude do orçamento federal.
Apenas com BPC, o governo gasta hoje quase R$ 110 bilhões em 12 meses.
As despesas federais totais, em 12 meses, segundo dados do Tesouro Nacional, foram superiores a R$ 2,3 trilhões.
O governo Lula conseguiu recuperar de maneira expressiva os gastos públicos. Não é uma gestão liberal. É uma gestão que entende a necessidade de injetar dinheiro na economia e reconstruir os serviços do Estado.
As despesas totais do governo, em relação ao PIB, cresceram muito vigorosamente desde o início da nova administração, passando de aproximadamente 18% em 2022 para mais de 20% em 2024. O gráfico abaixo deixa claro que o aumento veio principalmente a partir do final de 2023.
Eu fiz um recorte de despesas selecionadas, incluindo despesas com pessoal, aposentadoria, Pronaf, bolsa família, BPC, saúde, educação e assistência social. As despesas com esses itens, somadas, foram de R$ 2 trilhões em 12 meses até agosto (em valores ajustados pela inflação).
Se desconsiderarmos as despesas com pessoal e previdência, o aumento dos gastos mais diretamente relacionados com o social cresceram 21% nos últimos 12 meses, 42% em dois anos e 68% em três anos!
Isso, naturalmente, acima da inflação, visto que os valores já estão ajustados pelo IPCA de agosto de 2024.
Quando consideramos a participação no PIB, o crescimento dos gastos sociais do governo é ainda mais impressionante. Pelo gráfico, constata-se que durante o governo Bolsonaro se registrou uma deterioração forte do gasto social, que chegou a um mínimo perto de 3% do PIB no início de 2022. Esses valores irão explodir às vésperas da eleição, durante o esforço de Bolsonaro para reverter o favoritismo de Lula.
É no governo Lula 3 que os gastos sociais efetivamente se recompõem, e atingem a marca histórica de quase 6% do PIB em agosto de 2024. Esses números aqui, repito, não consideram os gastos com salários e aposentadoria, e na verdade são apenas os principais gastos sociais do governo, ou selecionados, conforme a tabela abaixo. Se considerássemos todos os gastos sociais do governo, o número seria maior.
Os números mostram a forte recuperação do gasto social do governo.
Nos últimos 12 meses até agosto, o governo Lula gastou R$ 171,26 bilhões com bolsa família, um aumento de 16% sobre o ano anterior (em valores ajustados pela inflação), e de 119% em dois anos!
Agora, é preciso bom senso. É óbvio que o governo precisa tomar cuidado com o gasto público. Haddad precisa preservar a confiança dos credores da dívida pública, para evitar ataques especulativos contra o Brasil.
A situação fiscal do Brasil ainda é delicada. Ignorar isso, ou achar que o governo pode posar de valentão e gastar quanto quiser, é uma postura leviana.
Segundo o Tesouro, déficit primário do governo federal nos 12 meses terminados em agosto ficou em R$ 227,5 bilhões.
O Banco Central, que também monitora a situação fiscal do país, e faz um cálculo um pouco diferente, por reunir o “setor público consolidado” (ou seja, juntando estatais, governos federal e estaduais, e municípios), estimou o déficit público do Brasil em R$ 256,3 bilhões, equivalente a 2,26% do PIB.
Não é um déficit fora do normal no mundo hoje. Além disso quase todo ele está em moeda nacional, e iniciou um processo de queda. Mesmo assim, é necessário prudência e a função de Haddad é tratar a questão fiscal do país com muita seriedade, porque um colapso das contas públicas poderia gerar terríveis danos para a população brasileira.
Seria saudável, para a sanidade mental do nosso debate, repudiar como estupidez e mentira, essas tentativas de rotular o governo Lula como “neoliberal”, ou compará-lo a Bolsonaro, apenas porque Haddad procura manter a rédea curta sobre as despesas públicas.
O que ele faz é absolutamente necessário, tanto para manter os investimentos sociais em alta como para garantir a entrada de recursos novos no país.
Uma análise objetiva e honesta dos gastos federais mostra que as prioridades do ministro Haddad são totalmente diferentes daquelas de Paulo Guedes.
As despesas com educação, saúde, agricultura familiar, projetos industriais, são hoje de outra ordem, tanto em termos absolutos quanto na participação do PIB.
É importante manter o governo Lula sob pressão constante, por parte dos movimentos sociais e da esquerda, e seria inútil e antipático cagar regras sobre a maneira como essa pressão deve ser exercida.
Ao mesmo tempo, devemos trabalhar sempre com dados. E os números mostram que as despesas sociais mudaram de patamar nesta nova administração.
O problema central do governo hoje não é esse.
O que falta ao governo são projetos de infra-estrutura urbana, transformação do nosso parque produtivo, e reinserção mais vantajosa do país na divisão internacional do trabalho.
As cidades brasileiras, onde os brasileiros vivem e morrem, precisam sofrer grandes transformações, e dada a magnitude do nosso atraso, essa mudança precisa ser liderada pelo governo central.
Fonte dos gráficos: Tesouro Nacional.