O conceito de “armadilha da dívida” chinesa, amplamente difundido nos meios de comunicação ocidentais, tem sido alvo de críticas por sugerir que a China utiliza empréstimos a países em desenvolvimento para exercer controle político e econômico sobre eles. No entanto, ao longo do artigo “A China e a armadilha da dívida: entre a narrativa e as mudanças sistêmicas“, Diego Pautasso e Isis Paris Maia desconstroem essa visão, apontando para as fragilidades empíricas e ideológicas dessa narrativa, que reflete mais os interesses geopolíticos dos Estados Unidos do que uma realidade concreta.
O conceito de “armadilha da dívida” foi introduzido por Brahma Chellaney em 2017, sugerindo que a China financia grandes projetos de infraestrutura em países periféricos, que acabam se endividando e cedendo ativos estratégicos a Pequim. Esse argumento, adotado por veículos como Washington Post, New York Times e CNN, retrata a China como uma nova potência imperialista que utiliza a dívida como ferramenta de controle. No entanto, Pautasso e Maia destacam que essa narrativa é falha e carece de suporte empírico sólido.
Investimentos e comparações de dívida
Os autores revisitam dados fundamentais para desmistificar a ideia da “armadilha da dívida”. Um exemplo recorrente é o caso do Sri Lanka, onde o endividamento com a China é frequentemente citado como prova da tese. No entanto, o artigo mostra que a dívida do Sri Lanka com a China representa apenas 5,5% da dívida total do país, sendo o restante composto de dívidas com credores privados e multilaterais, principalmente do Ocidente. O arrendamento do porto de Hambantota, outro caso emblemático utilizado para ilustrar a “armadilha da dívida”, não foi resultado de pressão chinesa, mas sim de um contexto de crise econômica interna do Sri Lanka.
Outro dado relevante apresentado no artigo é que, dos 68 países que participaram da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), apenas 8 enfrentam riscos de sobre-endividamento com a China. Além disso, uma pesquisa realizada entre 2013 e 2016 analisou 35 países envolvidos na BRI e concluiu que não há problemas crônicos em termos financeiros. Estes números desconstroem a ideia de que os empréstimos chineses criam dependência generalizada e estrutural em todos os países participantes da BRI.
No campo africano, o artigo destaca que, apesar da China ser o maior credor bilateral do continente, a maior parte da dívida externa africana é devida a credores privados e multilaterais ocidentais. Cerca de 28,8% da dívida da África provém de instituições financeiras multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI, enquanto 41,8% são dívidas com credores comerciais privados. Esses números sugerem que a China não desempenha um papel central na crise da dívida africana, como frequentemente alegado pela narrativa ocidental.
Os autores também apontam para o volume significativo de investimentos chineses em infraestrutura nos últimos anos. Entre 2005 e 2023, a China investiu mais de 2,3 trilhões de dólares em mais de 4.000 grandes obras em países da Ásia, África e América Latina. Esses investimentos, em sua maioria, são realizados com base em termos flexíveis e com maior disposição para renegociar prazos e condições de pagamento, o que contrasta com as práticas rígidas das instituições ocidentais.
A resposta às críticas ocidentais
Pautasso e Maia explicam que o conceito de “armadilha da dívida” se encaixa em uma narrativa mais ampla, promovida pelos Estados Unidos e seus aliados, para conter a ascensão da China como potência global. Ao fornecer financiamentos sem as duras condicionalidades políticas impostas pelo FMI e Banco Mundial, a China oferece uma alternativa viável para muitos países em desenvolvimento, o que gera desconforto no Ocidente.
A mídia ocidental, com seu vasto poder de disseminação de narrativas, tem sido um instrumento crucial para promover a ideia de que os investimentos chineses são parte de uma estratégia de dominação global. A narrativa da “armadilha da dívida” foi amplamente difundida, sem espaço para o contraditório, e passou a influenciar o debate político e até acadêmico sobre o tema.
No entanto, quando confrontada com estudos de maior rigor teórico e empírico, a narrativa da “armadilha da dívida” se revela insustentável. Estudos de caso de países como Bangladesh, Egito e Quênia mostram que os empréstimos chineses têm sido fundamentais para a construção de infraestrutura crucial, sem os quais o desenvolvimento econômico seria inviável. Além disso, a China tem promovido iniciativas de alívio da dívida, como a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida do G20, o que reforça seu compromisso com a sustentabilidade financeira dos países beneficiários.
Conclusão
A ideia de uma “armadilha da dívida” chinesa é, em grande parte, uma construção narrativa criada pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais para minar a crescente influência da China no cenário global. Embora existam desafios e assimetrias nas relações econômicas sino-periféricas, os benefícios advindos dos investimentos chineses em infraestrutura são claros para muitos países em desenvolvimento. A narrativa ocidental serve mais como uma estratégia geopolítica para conter a ascensão de uma potência rival do que como uma crítica legítima às políticas de financiamento da China.
A crescente influência da China como provedora de bens públicos, como infraestrutura, e sua atuação como polo anti-hegemônico, desafia diretamente a hegemonia dos Estados Unidos e a ordem econômica neoliberal imposta por instituições como o FMI e o Banco Mundial. Por isso, a “armadilha da dívida” tem sido amplamente promovida no Ocidente como uma forma de desacreditar a política externa chinesa, mas, como demonstrado pelos dados e análises mais robustas, essa narrativa carece de substância empírica e serve a propósitos ideológicos.
Mini biografia dos autores
Diego Pautasso é professor de Relações Internacionais no Colégio Militar de Porto Alegre, Brasil, com foco em geopolítica e economia política internacional. Suas pesquisas envolvem temas como a ascensão da China, o sistema internacional multipolar e a integração da Eurásia. Pautasso é autor de diversos artigos sobre as transformações nas relações internacionais contemporâneas, especialmente em relação à China e à América Latina.
Isis Paris Maia é doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Seu campo de pesquisa abrange as relações internacionais e as políticas de desenvolvimento, com ênfase em temas como cooperação Sul-Sul, políticas externas da China e Brasil, e as transformações nas economias periféricas.