Trabalhadores podem perder direitos básicos com nova norma do CNJ

O discurso da conciliação, que habita o Judiciário, sobretudo o trabalhista, desde a criação da Justiça do Trabalho, sempre serviu, preponderantemente, a um conjunto de interesses: os de quem emprega / Agência Brasil

Nova resolução do Conselho Nacional de Justiça pode mudar radicalmente os direitos dos trabalhadores. Entenda o que está em jogo e quem se beneficia!


No dia 30 de setembro de 2024 o CNJ – Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 586, que “Dispõe sobre métodos consensuais de solução de disputas judiciais na Justiça do Trabalho”. Sob o argumento de que mesmo após a reforma trabalhista – que visivelmente atacou o direito ao acesso à Justiça – ainda é necessário “reduzir a litigiosidade que há na Justiça do Trabalho”, o CNJ, sob a batuta do Ministro Luiz Roberto Barroso, editou Ato Normativo cujo objetivo, segundo seus próprios termos, é atribuir “quitação ampla, geral e irrevogável” aos acordos extrajudiciais homologados na Justiça do Trabalho.

Antes de se abordar o conteúdo da Resolução, algumas considerações são necessárias. A primeira diz respeito à alegada “excessiva litigiosidade”, que segundo o voto do Ministro Barroso, “torna incerto o custo da relação de trabalho antes do seu término, o que é prejudicial a investimentos que podem gerar mais postos formais de trabalho e vínculos de trabalho de maior qualidade”. As premissas e a conclusão em destaque são falsas e não resistem a um confronto com a realidade.

Os conflitos que chegam à Justiça do Trabalho todos os dias não são causa de incerteza quanto ao custo do trabalho para o mercado, ao contrário, são consequências, dentre outros fatores, de uma histórica delinquência patronal que majora o lucro aos custos do descumprimento dos Direitos dos Trabalhadores. Dados oficiais da própria Justiça do Trabalho sobre a natureza das ações ajuizadas; dos pedidos habitualmente deduzidos pelos desempregados e desempregadas (afinal de contas sempre foi a Justiça dos desempregados); a respeito do tempo de duração e efetivação dos direitos em favor de seus titulares e de quem são os litigantes habituais e os maiores devedores listados pelo Poder Judiciário, desmentem as premissas que constaram no Voto do Ministro Luiz Roberto Barroso.

De acordo com o Relatório Geral da Justiça do Trabalho a maior parte das reclamatórias ajuizadas pelos desempregados brasileiros no ano de 2023 trataram de FGTS, adicional de insalubridade, verbas rescisórias e horas extras, “evidenciando que a maior parte dos casos trazidos à Justiça do Trabalho cuida do inadimplemento de direitos básicos”. Segundo o mesmo relatório, o prazo médio de duração de uma demanda, em dias, no país, desde o ajuizamento até “a extinção do processo na fase de cumprimento de sentença”, ou seja, até a satisfação do direito reconhecido em favor do trabalhador, é de 1518 dias, ou, 4,15 anos. Nesse tempo as empresas mantêm os recursos nos seus respectivos patrimônios.

Os setores da economia mais demandados no ano de 2023, foram, nesta ordem, Serviços Diversos; Indústria e Comércio. Entre os campeões de recursos no Tribunal Superior do Trabalho estão: 1º) Correios; 2º) Bradesco S/A; 3º) Petrobrás; 4º) Santander; 5º) Fundação Casa; 6º) Banco do Brasil S/A; 7º) Contax S/A; 8º) Caixa Econômica Federal; 9º) Itaú; 10º) Oi S/A. Aos trabalhadores e trabalhadoras que tiveram os seus direitos tardiamente reconhecidos foram pagos R$ 41.351.596.053,50, só no ano passado. O INSS recebeu, no mesmo período, R$ 4.321.897.861,94 em razão da delinquência patronal.

O silêncio a este respeito escancara os interesses que se pretende atender com esta Resolução, deixando claro que não são os da classe trabalhadora / Agência Brasil

O que estes breves dados denunciam é que a alta litigiosidade a que se refere o Ministro Luís Roberto Barroso, não decorre da má índole, do oportunismo ou da injustificada beligerância de quem trabalha. Deriva da delinquência de quem não quer ter seu poder e seu lucro tolhidos pelas normas de Direito do Trabalho. Um olhar mais detido aos dados enunciados pela Justiça do Trabalho permitirá, com absoluta segurança, reforçar tais conclusões e desmentir a afirmação de que as demandas causam incerteza no mercado. A quantificação do custo da mão de obra é conhecida por quem, habitualmente, descumpre as normas de proteção ao trabalho. Não há insegurança a este respeito. O que há, isto sim, é uma opção consciente e rentável pelo descumprimento da lei.

Também é falsa a afirmação de que a suposta incerteza inibiria investimentos e geração de postos de trabalho mais seguros e mais bem remunerados. O que inibe investimentos e criação de postos de trabalho mais qualificados, na ordem capitalista, são fatores econômicos que nada têm que ver com o Direito do Trabalho. Baixo crescimento econômico e altas taxas de juros que privilegiam o capital financeiros são alguns dos verdadeiros fatores que inibem investimentos focados em gerar riqueza a partir do trabalho humano.

Há segurança jurídica para quem promove trabalho digno e cumpre os compromissos legais, convencionais e contratuais. O custo do trabalho é sabido e o risco de condenação judicial extraordinariamente baixo. Há, de outro lado, concorrência desleal, delinquência patronal, dumping, intensificação desmedida do trabalho e do lucro para quem descumpre a lei e depois recorre aos poderes constituídos para que estes validem suas más práticas e não constranjam os seus interesses.

É a agenda que o movimento sindical bancário se depara, por exemplo, com as negociações coletivas desde 2018. O movimento dos bancos não está só em usurpar, diariamente, os direitos dos bancários, mas também negar-lhes o acesso à Justiça. Querem eliminar o risco não pela efetivação dos Direitos, mas pela impossibilidade de reclamá-los judicialmente.

Se o ataque ao acesso à Justiça se deu, primeiramente, pela via legislativa, agora se dá pela via judicial. A Resolução do CNJ, calcada em premissas e conclusões falsas, quer, na verdade, reduzir o custo da mão de obra e atende aos interesses de quem, repita-se, delinque conscientemente. É mais uma medida aderente à agenda neoliberal que se hegemoniza no âmbito das mais altas Cortes de Justiça brasileiras, destacadamente o Supremo Tribunal Federal.

O discurso da conciliação, que habita o Judiciário, sobretudo o trabalhista, desde a criação da Justiça do Trabalho, sempre serviu, preponderantemente, a um conjunto de interesses: os de quem emprega. Não só porque aumenta o lucro, tornando o trabalho mais barato, mas porque dociliza quem trabalha, evitando que reaja às ilegalidades e abusos que é vítima. Por estas razões, o movimento sindical precisa enfrentar e desconstruir a Resolução do CNJ junto a suas bases. Ela atenta contra os Direitos e interesses da classe trabalhadora e estimula ainda mais delinquência patronal.

Dito isso, passa-se a uma análise dos termos jurídicos da Resolução.

II.

A par de não se ignorar a possível inconstitucionalidade da Resolução 586 do CNJ – posto que Ato Normativo que, por dispor “sobre métodos consensuais de solução de disputas na Justiça do Trabalho”, pode significar usurpação de competência exclusiva do Congresso Nacional (arts. 2º e 22 da Constituição Federal de 1988) – a norma prevê que os “acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho terão efeito de quitação ampla, geral e irrevogável, nos termos da legislação em vigor”, sempre que houver cláusula expressa nesse sentido nos termos do acordo.

Além da exigência de cláusula com eficácia liberatória geral, a norma prevê que as partes proponentes da transação deverão se fazer acompanhar por seus respectivos advogados ou sindicatos, vedada a representação por advogado comum. Ainda no âmbito das exigências que condicionam a legalidade da transação, a Resolução prevê que os trabalhadores menores de 16 anos se façam representar pelos pais, curadores ou tutores e que não existam vícios de vontade ou defeitos dos negócios jurídicos de que cuidam os arts. 138 a 184 do Código Civil brasileiro, vedada a presunção ante a mera hipossuficiência do trabalhador.

Em nenhuma circunstância a quitação alcançará, consoante o parágrafo único do art. 1º da Resolução, as seguintes hipóteses: “I – pretensões relacionadas a sequelas acidentárias ou doenças ocupacionais que sejam ignoradas ou que não estejam referidas especificamente no ajuste entre as partes ao tempo da celebração do negócio jurídico; II – pretensões relacionadas a fatos e/ou direitos em relação aos quais os titulares não tinham condições de conhecimento ao tempo da celebração do negócio jurídico; III – pretensões de partes não representadas ou substituídas no acordo; e IV – títulos e valores expressos e especificadamente ressalvados.”

Acaso as condicionantes previstas para a eficácia liberatória geral não se façam presentes, assevera o art. 2º da Resolução, o acordo terá “eficácia liberatória restrita aos títulos e valores expressamente consignados no respectivo instrumento, ressalvados os casos de nulidade”, permitindo-se ao trabalhador exercer o direito de ação em relação às pretensões não quitadas.

Ainda segundo os termos da norma, eventual transação depende da provocação do Judiciário pelas partes interessadas, e pode ser feita pelo próprio trabalhador ou substituto processual legitimado, como, por exemplo, os Sindicatos profissionais, sendo vedada “a homologação apenas parcial de acordos celebrados” (art. 3º). Perceba-se que qualquer transação

Perceba-se que qualquer transação que preencha as condições previstas no art. 1º da Resolução, teoricamente, poderia ser submetida ao crivo do Poder Judiciário com eficácia liberatória geral. Ressalte-se, no entanto, que momentaneamente, mais precisamente por um prazo de seis meses, a Resolução prevê que as normas nela previstas só se aplicarão “aos acordos superiores ao valor total equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data da sua celebração” (art. 4º).

As rescisões contratuais, por exemplo, que antes da Reforma Trabalhista eram submetidas ao crivo, fiscalização e homologação dos sindicatos obreiros sem eficácia liberatória geral, agora poderão ser submetidas ao Poder Judiciário como proposta de conciliação extrajudicial com quitação ampla e irrestrita do contrato de trabalho, desde que preencham os requisitos condicionais enunciados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Como dito anteriormente, fica evidente que a medida precisa ser combatida pelos sindicatos de trabalhadores pois não só lhes retira o protagonismo na tutela dos interesses de quem trabalha, mas, sobretudo, estimula a delinquência patronal e o descumprimento de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. A conciliação, nos termos postos, serve, primeiro, a reduzir o custo do trabalho e, segundo, a resolver um suposto problema da Justiça do Trabalho: a excessiva litigiosidade. Mas, e os interesses dos trabalhadores e trabalhadoras?

Da leitura do Voto do Ministro Luís Roberto Barroso nos autos Ato Normativo 0005870-16.2024.2.00.0000, que deu azo à Resolução nº 586 do CNJ, ora em análise, não se infere uma única menção à defesa e à promoção dos Direitos Sociais Trabalhistas como justificativa da decisão.

O silêncio a este respeito escancara os interesses que se pretende atender com esta Resolução, deixando claro que não são os da classe trabalhadora.

Por Ricardo Nunes de Mendonça

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