Paulo Nogueira Batista: Brics e os caminhos para a desdolarização

BRICS: como chegar a uma nova moeda de reserva internacional?

Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Os BRICS têm discutido, já há algum tempo, a possibilidade de construir alternativas ao dólar norte-americano e ao sistema de pagamentos ocidentais. A atual ordem — ou melhor, desordem — monetária e financeira internacional, dominada pelos Estados Unidos e seus aliados, tem se mostrado cada vez mais disfuncional e insegura. O sistema foi transformado em uma arma geopolítica, utilizada para a imposição de sanções, punições e confiscos.

Nas últimas semanas, estive em Moscou e participei de três debates sobre essa temática, em eventos precursores da cúpula dos líderes dos BRICS, que ocorrerá em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Tento fazer aqui um resumo das conclusões a que cheguei.

O desafio para os BRICS é, antes de tudo, político. Os americanos sempre foram apegados ao que De Gaulle, nos anos 1960, chamava de “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos — resumidamente, a capacidade de pagar suas contas e dívidas simplesmente emitindo moeda. Os EUA não hesitam em mobilizar aliados e clientes para minar iniciativas que desafiem essa hegemonia.

China, Rússia e Irã provavelmente não são muito vulneráveis a esse tipo de pressão, mas o mesmo não se pode dizer de outros países dos BRICS. Até mesmo Beijing pode hesitar em enfrentar Washington nesse ponto.

O desafio também é técnico. Construir um sistema monetário e financeiro alternativo requer trabalho árduo e especializado, além de negociações prolongadas e complexas. Somos capazes de realizar isso? Acredito que sim, mas será que fizemos progresso desde que o tema ganhou as manchetes? Algum avanço foi feito, mas menos do que o esperado.

Sob a presidência russa dos BRICS, em 2024, houve tentativas parcialmente bem-sucedidas de avançar. Por exemplo, foi criado um grupo de especialistas independentes, do qual faço parte, para discutir a reforma do sistema monetário internacional e a possibilidade de uma moeda dos BRICS. O economista americano Jeffrey Sachs é um dos integrantes desse grupo. Mais importante: a Rússia preparou uma proposta detalhada para um sistema alternativo de pagamentos transfronteiriços, baseado em moedas nacionais, um passo relevante para um novo arranjo monetário e financeiro internacional.

Até o momento, entretanto, poucos avanços foram feitos no que diz respeito à criação de uma nova moeda como alternativa ao dólar. Mesmo a proposta russa de um novo sistema de pagamentos ainda está em fase inicial. O Brasil, que presidirá os BRICS em 2025, terá a oportunidade de coordenar as discussões, aprofundar a proposta russa e preparar novos passos.

Limitações às transações em moedas nacionais e sistemas de pagamento alternativos

O sistema de pagamentos SWIFT, controlado pelos EUA e aliados, é usado sistematicamente como instrumento de punição e ameaça a países considerados hostis. Bancos desses países são sumariamente excluídos do sistema, como aconteceu com a Rússia. Outros países também podem sofrer sanções secundárias ao transacionar com entidades sancionadas.

Por isso, os avanços alcançados durante a presidência russa, na elaboração de alternativas ao SWIFT, são uma iniciativa muito bem-vinda, que ajuda a reduzir a dependência excessiva de moedas e sistemas de pagamento ocidentais. Também têm avançado as transações bilaterais em moedas nacionais entre os BRICS e outros países, além do aumento de swaps bilaterais em moedas nacionais entre bancos centrais, especialmente com o banco central da China.

Contudo, deve-se reconhecer que as transações em moedas nacionais e as alternativas ao SWIFT têm suas limitações. A questão essencial é que a existência de uma moeda de reserva alternativa é uma pré-condição para que a desdolarização funcione plenamente. Sem isso, os países terão de recorrer a mecanismos custosos equivalentes ao escambo — ou voltar ao dólar, o que frustraria o propósito da desdolarização.

Um exemplo é o caso da Rússia, que acumula grandes estoques de rúpias indianas devido ao superávit em transações com a Índia. No entanto, o banco central russo pode não querer manter essas reservas, talvez por questões de conversibilidade e estabilidade da rúpia. As opções para a Rússia incluem investir esses excedentes na Índia ou usá-los em terceiros países interessados em moeda indiana. Essas alternativas, no entanto, podem ser difíceis e remeter ao sistema antiquado de escambo.

Foi justamente para evitar essa ineficiência que o dinheiro foi criado, servindo como meio de pagamento, padrão de valor e reserva. Pelas mesmas razões, os BRICS precisam de uma nova moeda de reserva, como alternativa ao dólar.

Uma nova moeda de reserva – a NMR

Como seria essa nova moeda? Existem várias possibilidades. Vou tentar apresentar uma via que me parece promissora. Para uma explicação mais completa, remeto ao trabalho que preparei para um dos eventos em Moscou (“BRICS: Geopolitics and monetary initiatives in a multipolar world – how could a new international reserve currency look like?”, 23 de setembro de 2024).

Vamos chamar essa nova moeda de NMR, sigla para “nova moeda de reserva”. Um nome anterior interessante era R5, proposto por economistas russos quando os BRICS eram formados por cinco países, cujas moedas começavam com a letra R. Contudo, esse nome perdeu força com a inclusão de novos membros cujas moedas não seguem esse padrão.

A NMR teria algumas características específicas. Não seria uma moeda única, como o euro, mas sim uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais continuariam a existir, sem perda de soberania ou necessidade de coordenação de políticas monetárias.

A NMR seria uma moeda digital, similar às moedas digitais de bancos centrais (MDBCs), e seu uso não estaria necessariamente atrelado à posse de uma conta bancária. Os países participantes poderiam constituir uma Nova Autoridade Monetária de Reserva (NAMR), responsável por criar a NMR e emitir títulos de reserva (NTRs), garantidos pelos Tesouros nacionais dos países participantes.

Um primeiro passo poderia ser a criação de uma unidade de conta baseada em uma cesta de moedas, onde o peso de cada moeda refletiria a participação dos países no PIB do grupo. O renminbi da China teria maior peso, seguido por Brasil, Rússia e Índia. Esse passo simples já foi aventado por economistas russos, mas não foi implementado devido à falta de consenso entre os países.

Há relatos de que Índia e África do Sul são contra a ideia, talvez por razões políticas. A Índia, em particular, pode hesitar em desagradar aos EUA, dada a possibilidade de precisar do apoio americano em eventuais tensões com a China. O Brasil também não é imune a pressões similares, já que muitos em sua sociedade, inclusive dentro do governo, possuem laços com os EUA.

Essas vulnerabilidades e tensões podem ser superadas, e uma coalizão de países dispostos poderia avançar com a criação da NMR. No entanto, isso esbarra na tradição de consenso dos BRICS, o que pode dificultar o progresso.

A alternativa seria a substituição gradual do dólar pelo renminbi chinês, algo que já está acontecendo em certa medida. No entanto, essa via parece limitada, já que a China é uma economia de renda média com suas próprias vulnerabilidades e pode não querer adotar certas medidas, como a plena conversibilidade do renminbi.

Os BRICS, ou um subconjunto deles, devem se preparar para criar uma nova moeda de reserva, que poderia transformar o cenário monetário e financeiro global. Paralelamente, devem continuar expandindo as transações em moedas nacionais e desenvolvendo um sistema alternativo ao SWIFT.

Os BRICS decepcionarão o Sul Global se permanecerem no reino dos discursos sem avançar em iniciativas práticas inovadoras.


Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021.

E-mail: paulonbjr@hotmail.com

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Portal: www.nogueirabatista.com.br

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