Como a China está escrevendo as leis tecnológicas do mundo

Diferente do Ocidente, onde o processo de padronização é liderado por empresas privadas, a China adota uma abordagem centralizada e governamental / Reprodução

Na luta pelos padrões tecnológicos globais, entenda como a China está desafiando o domínio ocidental e redesenhando as regras do jogo


Os smartphones são um exemplo claro do poder da padronização. Compostos por componentes de centenas de fornecedores, eles conseguem se conectar a praticamente qualquer rede no mundo e a uma ampla gama de dispositivos auxiliares, graças a um conjunto comum de especificações técnicas estabelecido por inúmeras empresas. Mas como esses padrões são definidos ainda é um mistério para a maioria das pessoas.

Órgãos globais, como a Organização Internacional para Padronização (ISO) e a União Internacional de Telecomunicações (ITU), periodicamente reúnem empresas e especialistas para discutir e estabelecer esses acordos. Por décadas, esse processo foi dominado por países como os Estados Unidos, Alemanha e Japão, cujas empresas lucraram significativamente com o sistema. A IBM, por exemplo, uma gigante americana com mais de 100.000 patentes, faturou US$ 366 milhões no ano passado com licenciamento de propriedade intelectual. Já a Qualcomm, outra empresa americana, gera cerca de um quarto de seu lucro bruto por meio de licenciamento de tecnologia sem fio.

A ascensão da China no controle de padrões tecnológicos

Reprodução / China2Brazil

Nos últimos anos, a China tem se tornado cada vez mais assertiva na definição desses padrões. No mês passado, a ITU aprovou três novos padrões técnicos, que serão incorporados à tecnologia móvel de sexta geração (6G). Esses novos padrões, que abordam como as redes integram inteligência artificial (IA) e criam experiências imersivas em realidade virtual, foram desenvolvidos pela Academia Chinesa de Ciências (CAS) e pela China Telecom, ambas controladas pelo governo chinês.

Mesmo com os esforços do governo americano para limitar a influência de equipamentos chineses nas redes móveis de outros países, a tecnologia sem fio chinesa continua a se expandir globalmente. A Huawei, por exemplo, ganhou mais dinheiro desde 2021 licenciando sua tecnologia para empresas estrangeiras do que pagou pelo uso de tecnologias alheias.

China expande sua influência além das redes móveis

Ilustração: Nick Kempton para o The Economist

A influência da China na definição de padrões se estende a outras áreas tecnológicas. Empresas como a Xiaomi, fabricante de smartphones, e a BOE Technology, maior produtora mundial de telas LED, têm se beneficiado de royalties relacionados a esses padrões. A Hikvision, uma empresa chinesa de tecnologia de vigilância, também está cada vez mais envolvida na definição de padrões, apesar de estar na lista negra dos EUA. Além disso, a China desempenha um papel de liderança nos primeiros padrões globais para tecnologia quântica.

Diferente do Ocidente, onde o processo de padronização é liderado por empresas privadas e associações industriais, a China adota uma abordagem centralizada e governamental. Em 2018, o governo chinês lançou um plano para posicionar o país na vanguarda dos padrões técnicos em áreas que vão desde telecomunicações até IA, com metas estabelecidas para 2035. Os padrões chineses são desenvolvidos por institutos sob ministérios governamentais, e os esforços são coordenados pela Administração de Padrões da China (SAC), que organiza as interações globais do país.

China busca apoio global para seus padrões

O governo chinês não apenas concentra seus esforços internamente, mas também tenta influenciar os padrões globais. A China tem trabalhado para transferir a autoridade de definições de padrões de associações empresariais para a ITU, órgão da ONU onde exerce maior influência. Além disso, já firmou mais de 100 acordos bilaterais de padrões, principalmente com países do sul global. Em uma conferência recente com líderes africanos, a China adicionou novos acordos com Benin e Níger.

Esses acordos garantem à China maior suporte para suas especificações preferidas em órgãos internacionais como a ITU, conforme observa Alex He, do Centre for International Governance Innovation, um think-tank canadense. Mesmo que a China não consiga aprovar seus padrões globalmente, ela ainda pode se beneficiar ao implementá-los em países com os quais possui acordos bilaterais, excluindo empresas ocidentais que se recusarem a adotar essas normas.

Para a China, os padrões tecnológicos vão além de lucros empresariais — eles também refletem valores sociais e interesses governamentais. A internet ocidental, por exemplo, tende a promover a privacidade individual, o que contraria o controle centralizado desejado pelo governo chinês. Nos últimos anos, a China tem proposto revisões nos padrões que sustentam a internet. Em 2019 e 2022, a Huawei sugeriu novos protocolos à ITU, que permitiriam um maior controle governamental sobre a rede. Embora não tenham sido aprovados, essas propostas foram apoiadas por países como Irã, Rússia e Arábia Saudita.

Em resposta, o Trade and Technology Council — uma plataforma de cooperação entre os EUA e a Europa — emitiu uma declaração alertando que as democracias devem liderar as tecnologias emergentes e os padrões que as sustentam.

Reação do Ocidente: resistência e adaptação

KEVIN LAMARQUE / REUTERS

O aumento da influência chinesa no processo de padronização global tem preocupado os formuladores de políticas na América e na Europa. Agora, assim como a China, eles estão se envolvendo mais ativamente na definição de padrões, segundo Tim Rühlig, do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia.

O CHIPS and Science Act dos EUA, sancionado em 2022, deu ao Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia a responsabilidade de desenvolver padrões para IA e segurança cibernética, ampliando seu papel na coordenação com órgãos internacionais.

Na Europa, algumas políticas sugerem um papel mais ativo para o Instituto Europeu de Padrões de Telecomunicações (ETSI) para contrapor a crescente influência da China.

Com isso, o Ocidente começa a abandonar sua abordagem tradicional de baixo para cima e baseada no mercado. “Estamos sendo forçados a minar um sistema que nos beneficiou por muito tempo”, lamenta Rühlig. De mais de uma forma, a China está fazendo o Ocidente jogar de acordo com suas novas regras.

Com informações da revista The Economist

Rhyan de Meira: Rhyan de Meira é estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Ele está participando de uma pesquisa sobre a ditadura militar, escreve sobre política, economia, é apaixonado por samba e faz a cobertura do carnaval carioca. Instagram: @rhyandemeira
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