O debate de ontem (23/set) no Flow ajudou para consolidar a tendência já vista em pesquisa divulgada no mesmo dia, da Atlas Intel, cuja principal novidade foi confirmar o que outras pesquisas já vinham apontando, que é o esvaziamento acelerado de Pablo Marçal.
Marçal já chegou ao debate tentando arrumar confusão, assim que entrou no estúdio, ao trocar ofensas em voz alta com o prefeito Ricardo Nunes, que tenta a reeleição.
“Você vai ser preso pela Polícia Federal! Eu vou te prender! Ladrão de creche!”
Apesar dessa altercação não ter sido registrada pelas câmeras, a gente sabe que devem ter sido essas as palavras de Marçal, porque ele as repetiu quando sentou para conversar com os jornalistas que estavam na antessala, fazendo o esquenta.
Nunes deve ter rebatido com alguma coisa similar a ladrão de velhinhas, bandido, estelionatário, e ameaças de prisão.
Os ataques de Marçal, contudo, já perderam o efeito surpresa. Ao escalar sua intensidade, Marçal age como um drogado que aumenta a dose de crack para produzir um efeito parecido ao das primeiras vezes.
O debate em si foi um dos melhores, mas o destaque vai mesmo para Guilherme Boulos e Tábata Amaral, que conseguiram expor propostas coerentes. Nunes não foi mal, aparentemente porque deve ter pesquisas que o fizeram se tranquilizar quanto a risco de perder a vaga de segundo turno para Pablo Marçal. Ele está visivelmente mais calmo.
O momento mais interessante, de longe, foi quando a apresentadora Helen Braun chamou o cientista Walter Cintra, da Fundação Getúlio Vargas, que fez uma pergunta, como dizem os jovens paulistanos, cabulosa.
Cintra queria saber dos candidatos (que iriam ser sorteados logo a seguir) o que eles pensavam do que aconteceu no Brasil durante a pandemia de coronavírus, onde o nosso país registrou um dos maiores índices de mortalidade do mundo. O professor então mencionou diretamente a responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, pela onda de negacionismo terrível que tomou conta do país nessa época, com discursos políticos contra o distanciamento social, contra a vacina, e promovendo remédios inúteis como ivermectina e cloroquina. O que os candidatos fariam como prefeitos, caso uma nova pandemia chegasse ao Brasil?
Os sorteados foram… Pablo Marçal e Marina Helena, justamente os mais bolsonaristas dentre os candidatos, e isso foi um grande azar deles, até porque ambos já tinham acabado de ser sorteados na pergunta anterior. Ou seja, era um azar triplo. Primeiro porque para ambos seria melhor serem sorteados para interagir com um candidato líder, como Boulos e Nunes. Segundo porque foram sorteados duas vezes consecutivas para falar juntos. Terceiro porque a pergunta que envolvia a responsabilidade de Bolsonaro na pandemia oferecia uma armadilha política praticamente sem saída para ambos. Ou eles fugiam do assunto, tergiversando ou passando pano para Bolsonaro, perdendo o respeito da imensa maioria de paulistanos que, mesmo sendo conservador, entende a importância da ciência e viu a atitude de Bolsonaro na pandemia como o seu mais grosseiro e trágico erro político. Ou eles criticavam Bolsonaro, ganhando o respeito desse eleitorado mais esclarecido, mas perdendo o voto e a estima dos milhões de bolsonaristas negacionistas, que parece infelizmente existir aos milhões entre os paulistanos. Tanto Marina como Marçal tentam roubar esses eleitores de Nunes.
Ambos tergiversaram vergonhosamente, todavia.
Marçal ainda teve a sorte de que a escolhida para comentar primeiro tenha sido Marina. Ela subiu a tribuna para falar com uma expressão profundamente confusa e constrangida. Dava para ver que Marina não é uma negacionista grosseira. É uma ultra liberal, ex-funcionária de Paulo Guedes no setor privado, cheia de dogmas e preconceitos, mas uma pessoa relativamente educada e normal em se tratando da relação com a ciência.
Mas exatamente por isso mesmo deu pena vê-la fazendo uma ginástica retórica absolutamente ridícula para desviar o assunto para Lula e o problema com a dengue no Brasil. Ora, Lula fez da vacina e do respeito à ciência uma das principais bandeiras de sua campanha em 2022, e o seu governo, assim que assumiu, iniciou uma vasta campanha para recuperar os níveis de vacinação dos brasileiros, que haviam sofrido perigosa queda desde a pandemia, exatamente em função do surgimento de movimentos antivacina, até hoje muito atuantes. Ela chegou a dizer que seu filho, recém nascido, recebeu todas as vacinas, e isso foi uma vingança poética da própria ciência contra o negacionismo tosco da extrema direita e do bolsonarismo, que rechaçam a importância de se vacinas crianças.
Marçal falou em seguida. Primeiramente procurou surfar nos mesmos argumentos e no mesmo tom de Marina, fugindo do tema para falar de Lula e da dengue. Ele estava diante de um dilema. Se corroborasse os absurdos de Bolsonaro, entraria em terreno perigoso, que poderia lhe valer até mesmo uma cassação de candidatura, visto que a justiça brasileira perdeu (ainda bem) a paciência com fake news envolvendo saúde pública. Por outro lado, qualquer crítica a Bolsonaro faria sua campanha morrer no mesmo minuto, visto que o balão de oxigênio que ainda não fez suas intenções de voto desabaram de vez é precisamente a sua conexão com os setores mais reacionários, agressivos e negacionistas do bolsonarismo.
O resultado foi melancólico. Marçal se sentiu obrigado a atacar a vacina, dizendo que o tempo para o seu desenvolvimento tinha sido muito curto, mas foi um ataque sem muita convicção, tímido, medroso. Aliás, toda a participação de Marçal parecia a de um candidato totalmente diferente, em termos de energia e agressividade, daquele Marçal que víamos em outros debates. Parecia um eunuco, um castrado, um homem sem testosterona, como gostam de dizer os próprios bolsonaristas.
Ao final, ambos, Marina e Marçal se queimaram politicamente ao não defenderem, de maneira assertiva, firme, a importância da ciência na preservação da vida, e ao não fazerem uma crítica necessária, corajosa, aos erros trágicos cometidos pelo governo anterior, sobretudo pelo presidente Jair Bolsonaro. Ao apelar para críticas a Lula, os dois soaram politiqueiros, oportunistas e falsos, exatamente a mesma imagem que por vezes procuram afastar de si, ao criticarem o sistema e a classe política tradicional.
Esse trecho do debate está no minuto 1:52:45. O vídeo abaixo já está no ponto:
Ao final, Marçal se envolveu num episódio que, a meu ver, sela o fim de sua carreira política. Alguém pode dizer que é precipitado prever isso, e que muitos eleitores talvez tenham apreciado o showzinho infantil que ele tentou fazer na apresentação final, quando os candidatos tinham 2 ou 3 minutos para fazerem sua última fala.
Antes de explicar, vamos contar o que aconteceu.
De acordo com as regras, não poderia haver ataques a outros candidatos naquele momento, sobretudo ataques muito diretos. Marçal então infringiu uma vez e foi interrompido pelo apresentador, o jornalista Carlos Tramontina. Ele recomeçou e cometeu a mesma infração, dizendo que “a gente vai prender o ex-prefeito por envolvimento com creche”, novamente sendo interrompido por Tramontina, que inicia uma nova altercação com ele.
Marçal havia começado a sua fala final repetindo uma expressão um tanto esquizofrênica sobre “consórcio comunista do Brasil”, um entidade fantasmagórica que, aparentemente, engloba quase todos os canais de tv, quase todos os níveis de governo, além de quase toda a classe cultural, naturalmente. Até o governador de São Paulo, o ultrabolsonarista (segundo suas próprias palavras, em entrevista recente), seria “goiabinha”, ou seja, vermelho por dentro…
Faltavam pouco mais de 30 segundos para acabar o tempo de microfone de Marçal.
O jornalista diz para o candidato ter a “hombridade” de cometer a terceira e última infração (o que, segundo regras assinadas pelos próprios candidatos, implicaria em expulsão do debate) logo que reiniciasse a fala e não esperasse para o último segundo.
Pois foi exatamente o que Marçal fez. Quando o tempo começa a se contado, ele fica em silêncio durante mais de 15 segundos, e quando retoma, faltando um pouco mais dez segundos, ele volta a atacar nominalmente Ricardo Nunes.
Então o jornalista o interrompe pela terceira vez e diz que ele está expulso do debate, perdendo seus últimos dez segundos. Marçal também não participaria do pós-debate, quando os candidatos conversam um pouco com os comentadores do Flow, e tem três minutos de fala final.
Esse trecho pode ser visto no minuto 3:39:34. O vídeo abaixo já está no ponto:
Entretanto, o pior estaria por vir. Marçal sai da sala com uma postura beligerante, empurrando as pessoas, e seguido pelos assessores, que copiam sua postura agressiva. No caminho para saída, um de seus principais assessores, Nahuel Medina, desfere um violento murro em Duda Lima, marqueteiro de Nunes, que imediatamente começa a sangrar muito. Medina corre para atrás de Ricardo Nunes e depois deixa o ambiente. Seria detido logo depois e levado a polícia, onde prestaria depoimento e seria liberado. Duda Lima foi hospitalizado, mas aparentemente passa bem, sofrendo apenas um corte no superfície.
Por que eu entendo que esse vexame de Marçal como uma pá de cal em sua carreira?
Simples, porque ele ficou agora completamente isolado, não apenas politicamente como midiatica e institucionalmente.
Os comentaristas do Flow, juntamente com o apresentador, terminaram de destruir a imagem de Marçal, ao martelar que ele não queria respeitar as regras que ele mesmo tinha assinado.
O soco de seu assessor no marketeiro de Nunes, por sua vez, elimina de vez toda a imagem de “vítima” que ele tentou passar, meio que ridiculamente (pelo exagero), depois que tomou a cadeirada de Datena num dos debates anteriores.
Datena, ao contrário, conseguiu recuperar uma imagem de cavalheiro, e de alguém que tinha “certa razão”, ao fazer o confronto físico com Marçal.
Entretanto, independente desse teatro todo, as pesquisas já vem mostrando, com muita clareza, o derretimento de Marçal. Voltemos à Atlas Intel, que fez alguns cenários de segundo turno que nos ajudam a entender tendências em curso.
Num hipotético (e cada vez mais remoto) segundo turno entre Boulos e Marçal, o influencer vem perdendo pontos de maneira muito forte. Se o segundo turno fosse realizado hoje, Boulos venceria Marçal por 44% X 38%. Na pesquisa anterior, eles estavam empatados em 44% X 43%. Repare que Marçal perdeu votos para brancos e nulos e não para Boulos, indicativo claro de que sua rejeição está explodindo. Os eleitores preferem não votar a optarem por ele. Claro que, na campanha, Marçal pode recuperar esses votos, mas o que estamos vendo agora é isso, e me parece que o debate no Flow apenas reforçará essa tendência.
No cômputo geral dos cenários de segundo turno, chama atenção a força de Tábata Amaral, única candidata que ganha de todos, e com folgada vantagem. Seu problema maior, naturalmente, é chegar ao segundo turno, pois ela tem pontuação baixa no primeiro turno e suas chances de chegar à segunda etapa hoje são virtualmente nulas.
A boa pontuação de Tábata no segundo turno, por outro lado, eleva desmesuradamente seu capital político, nas negociações que se iniciarão assim que a campanha recomeçar após a primeira fase. Com a bolsonarização de Nunes, que aparentemente ele não queria fazer no início da campanha, mas que foi pressionado a tal após começar a perder muitos eleitores para Marçal, dificultará a migração de votos de Tábata para Nunes, e mesmo o apoio oficial ou informal desta ao prefeito. A preço de hoje, diria que Tábata tende a apoiar Boulos no segundo turno.
Aliás, a bolsonarização de Nunes pode explicar a vantagem relativa de Boulos no segundo turno contra ele, sobre o que iremos falar ao final.
Por fim, deixo aqui dois gráficos que fiz com os dados estratificados de um eventual segundo turno entre Nunes e Boulos. No primeiro gráfico, faço uma lista dos principais trunfos eleitorais de Nunes. No segundo, faço a mesma coisa para Boulos.
Segundo a Atlas Intel, Nunes é mais forte entre eleitores com mais de 60 anos, com faixa de renda familiar entre 2 e 3 mil reais, com apenas ensino fundamental e entre os religiosos, católicos e evangélicos.
Já os trunfos de Guilherme Boulos estão entre eleitores sem religião, mais jovens, de renda média para cima e com ensino superior. Boulos também é mais forte entre mulheres.
Deixo para o final a melhor notícia trazida pela Atlas Intel, que é uma queda muito acentuada de Ricardo Nunes no cenário de segundo turno, e uma tendência firme de recuperação de Guilherme Boulos.
A propósito, essa ascensão paulatina de Boulos no segundo turno provavelmente reflete uma estratégia bem sucedida de sua campanha, que é evitar radicalizar no primeiro turno. A militância mais aguerrida reclama de uma campanha morna no primeiro turno, o que provavelmente se dá porque os estrategistas de Boulos querem construir, desde já, um plano para o segundo turno, que envolverá necessariamente uma guinada ao centro e uma aproximação com Tábata Amaral.
A íntegra da pesquisa Atlas Intel pode ser baixada aqui.