Uma mulher francesa, cujo marido admitiu ter recrutado dezenas de estranhos para estuprá-la enquanto ela estava sob efeito de drogas, declarou durante o julgamento nesta quinta-feira (5) que a polícia salvou sua vida ao descobrir os crimes.
“A polícia salvou minha vida ao investigar o computador do Sr. Pelicot”, disse Gisele Pelicot ao tribunal em Avignon, no sul da França, referindo-se ao marido, um dos 51 acusados em julgamento, mencionando-o apenas pelo sobrenome.
Em sua primeira fala desde o início do julgamento na segunda-feira, Gisele Pelicot, agora com 71 anos, expressou suas emoções durante quase 90 minutos de depoimento, relatando seus problemas de saúde inexplicáveis e o momento decisivo em que a polícia revelou a verdade.
Durante anos, Gisele relatou ter sofrido lapsos de memória e outros problemas de saúde, chegando a pensar que poderia ter Alzheimer. Em novembro de 2020, ela foi chamada a depor para os investigadores, que lhe mostraram vídeos documentando uma década de abusos sexuais orquestrados e filmados por seu marido. “Meu mundo desabou”, contou ela ao tribunal.
“Para mim, tudo desmoronou. Tudo que construí ao longo de 50 anos”, disse Gisele Pelicot.
Ela afirmou à polícia que sempre acreditou que seu marido, Dominique Pelicot, com quem foi casada por 50 anos, era um “homem incrível”. Sua filha e seus dois filhos assistiam ao depoimento no tribunal.
Naquele encontro com os investigadores, Gisele foi confrontada com vídeos “bárbaros” que mostravam ela “deitada imóvel na cama, sendo estuprada”, enquanto seu marido, na audiência, mantinha a cabeça baixa. “Essas cenas são um verdadeiro horror para mim”, desabafou.
Ela também disse aos cinco juízes presentes que, nos vídeos, era tratada “como uma boneca de pano”. Gisele só teve coragem de assistir a uma das gravações em maio. Ela acrescentou que nenhum dos agressores denunciou o crime à polícia.
“Até mesmo uma ligação anônima poderia ter salvado minha vida”, afirmou, enquanto seu marido continuava cabisbaixo.
Advogados de alguns dos réus questionaram, na quarta-feira, se o casal poderia ter tido um relacionamento libertino, ou se era possível que Gisele não tivesse percebido o que acontecia durante os 10 anos de abuso.
“Não me fale sobre cenas de sexo. Isso são cenas de estupro”, respondeu Gisele, enfatizando que nunca participou de swing ou qualquer outra prática sexual libertina.
Ela reafirmou que “nunca foi cúmplice” e “nunca fingiu estar dormindo” quando questionada pelo juiz principal, Roger Arata.
Gisele fez questão de que o julgamento fosse público, para que todos os fatos pudessem ser revelados. Após seu depoimento, sua família autorizou que seu nome completo fosse divulgado. Ela também expressou seu desejo de alertar sobre os perigos da chamada submissão química, em que pessoas são drogadas sem seu conhecimento para serem abusadas.
“Estou falando em nome de todas as mulheres que foram drogadas sem saber”, disse Gisele. “Estou retomando o controle da minha vida para denunciar a submissão química. Muitas mulheres não têm provas, mas eu tenho as provas do que vivi.”
Ela também desafiou os acusados a “assumirem a responsabilidade por suas ações, pelo menos uma vez na vida”. “Sinto-me enojada”, acrescentou. “Perdi 10 anos da minha vida. Por dentro, sou um campo de ruínas.”
Gisele Pelicot está se divorciando do marido, que admitiu as acusações contra ele. Ele foi descoberto por acaso, ao ser flagrado filmando por baixo das saias de mulheres em um supermercado. Dominique, pai de três filhos, de 71 anos, documentou seus crimes meticulosamente em um disco rígido, com uma pasta rotulada como “abuso”, o que levou a polícia a identificar 50 suspeitos além dele.
Os investigadores contabilizaram cerca de 200 casos de estupro, a maioria cometida por Dominique Pelicot, e mais de 90 por estranhos. Gisele disse que reconheceu apenas um de seus supostos estupradores, um homem que frequentava sua casa para discutir ciclismo com seu marido. “Eu o via ocasionalmente na padaria, cumprimentava, nunca imaginei que ele me estupraria”, relatou.
As agressões ocorreram entre julho de 2011 e outubro de 2020, principalmente na casa do casal, em Mazan, uma vila de 6.000 habitantes na região da Provença.
A maioria dos suspeitos pode enfrentar até 20 anos de prisão por estupro agravado, caso sejam condenados. Dezoito dos 51 acusados estão sob custódia, incluindo Dominique Pelicot. Outros 32 réus estão respondendo ao processo em liberdade.