Entre as vítimas estão mulheres, que sofreram violência de gênero; ação pede medidas de combate ao machismo estrutural na atividade policial
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação para que 46 ex-agentes da ditadura sejam responsabilizados na esfera cível por envolvimento na tortura, na morte ou no desaparecimento de militantes políticos contrários ao regime militar. Os réus eram ligados a unidades do sistema de repressão que funcionavam em São Paulo, sobretudo o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do II Exército, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e o Instituto Médico Legal (IML).
A ação busca o cumprimento de recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para que o Estado brasileiro promova medidas de reparação, preservação da memória e elucidação da verdade sobre fatos ocorridos na ditadura. Os réus foram alvo de investigações do MPF que apontaram a participação direta ou indireta deles em atos de violência cometidos contra 15 vítimas no período. Os pedidos de responsabilização civil somam-se a requisições do mesmo tipo que o Ministério Público Federal ajuizou em março contra 42 ex-agentes envolvidos na repressão de outros 19 militantes.
A declaração de responsabilidade constituiria o reconhecimento jurídico de que os réus fizeram parte dos atos de sequestro, tortura, assassinato, desaparecimento forçado e ocultação das verdadeiras circunstâncias da morte dos opositores da ditadura. O MPF pede que, a partir disso, todos sejam condenados a ressarcir os danos que as práticas ilegais causaram à sociedade e as indenizações que o Estado brasileiro já pagou às famílias das vítimas, entre outras obrigações. No caso dos ex-agentes já falecidos, os herdeiros ficariam incumbidos de cumprir eventual ordem judicial para reparação financeira.
O episódio que motivou as recomendações da CIDH, e que também foi objeto de apurações da CNV, é o da morte de Eduardo Collen Leite, o Bacuri, em 1970, e da prisão de sua companheira, Denise Peres Crispim, torturada apesar de estar grávida. O MPF destaca, entre as requisições da Corte, que o Estado brasileiro deve adotar todas as medidas necessárias para identificar e punir os responsáveis, levando em conta especialmente a violência de gênero praticada contra Denise. Segundo o Ministério Público Federal, ela e outras mulheres foram vítimas de um aparato repressivo que fazia da condição feminina um elemento adicional para as atrocidades.
“Este sistema cruel utilizava o corpo, a sexualidade e a maternidade como ferramentas para intensificar a tortura ou até mesmo exterminar brutalmente algumas militantes mulheres”, afirmou a procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da ação do MPF. “É crucial reconhecer as violações de direitos humanos cometidas contra as mulheres durante esse período e garantir que esses crimes sejam investigados e punidos. A justiça para as mulheres do passado é essencial para a consolidação da democracia igualitária no presente”, concluiu.
Eduarda Crispim Leite (filha de Eduardo e Denise, nascida em circunstâncias de elevado risco devido à tortura de sua mãe), Criméia Alice Schmidt de Almeida e Neide Alves dos Santos também são vítimas da repressão na ditadura citadas pelo MPF. Os outros militantes cujos casos embasam os pedidos da ação são Devanir José de Carvalho, Dorival Ferreira, João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, Joaquim Câmara Ferreira, José Idésio Brianezi, José Guimarães, José Maximino de Andrade Netto, José Wilson Lessa Sabbag, Luiz Fogaça Balboni e Olavo Hanssen.
Réus
O ex-delegado do Dops Sérgio Paranhos Fleury e o ex-comandante do DOI-Codi Carlos Alberto Brilhante Ustra, dois dos mais destacados agentes de extermínio aos opositores da ditadura, estão entre os réus da ação do MPF. Além deles, devem ser responsabilizados 30 ex-integrantes do sistema de repressão: Absalon Moreira Luz, Adhemar Augusto de Oliveira, Alcides Cintra Bueno Filho, Antonio Chiari, Ary Borges dos Santos, Astorige Correa de Paula e Silva, Benoni de Arruda Albernaz, Carlos Alberto Augusto, Dirceu Antonio, Durval Ayrton Moura de Araujo, Erar de Campos Vasconcelos, Ernesto Milton Dias, Humberto de Souza Melo, Ivahir Freitas Garcia, João Carlos Tralli, João Ricardo Bernardo Figueiredo, José Carlos Campos Correa Filho, José Geraldo Ciscato, Josecyr Cuoco, Maurício José de Freitas, Nelson da Silva Machado Guimarães, Oswaldo Machado de Oliveira, Raul Nogueira de Lima, Renato D’Andrea, Roberto Quass, Rubens Cardoso de Mello Tucunduva, Salvio Fernandes do Monte, Sylvio Pereira Machado, Waldir Coelho e Walter Francisco.
Também compõem a lista de réus da ação 14 ex-membros do IML: Abeylard de Queiroz Orsini, Aloysio Fernandes, Antonio Valentini, Cypriano Oswaldo Monaco, Decio Brandão Camargo, Harry Shibata, Irany Novah Morais, João Pagenotto, Mario Santalucia, Octavio D’Andrea, Orlando José Bastos Brandão, Paulo Augusto de Queiroz Rocha, Pérsio José Ribeiro Carneiro e Ruy Barboza Marques. Eles foram responsáveis pela elaboração de laudos que omitiam sinais de tortura nos corpos de militantes políticos mortos. O IML foi um dos mais ativos colaboradores dos órgãos de repressão, atuando para encobrir as graves violações cometidas nos porões da ditadura.
Ao mesmo tempo em que pede a responsabilização civil dos ex-agentes, o MPF requer que a União e o Estado de São Paulo sejam obrigados a executar uma série de medidas de reparação e preservação históricas e esclarecimento das violações de direitos cometidas entre 1964 e 1985. Caberia aos governos federal e estadual, entre outras providências, criar espaços de memória (online e físicos) que tratem do período e promover módulos educacionais para integrantes das Forças Armadas e de órgãos de segurança pública sobre igualdade de gênero.
Sem prescrição nem anistia
Os atos de tortura foram cometidos em um contexto de ataque sistemático e generalizado contra a população civil e, portanto, são considerados crimes contra a humanidade, aos quais não se aplica a prescrição nem a anistia, inclusive na esfera cível. Além disso, o MPF lembra que não existe prescrição em demandas indenizatórias relacionadas a violações da ditadura, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Constituição também afasta prazos prescricionais para ações de ressarcimento ao patrimônio público, como é o caso de parte dos pedidos do MPF.
A imprescritibilidade dos atos de violação a direitos humanos foi fixada ainda em duas condenações ao Brasil na CIDH. As determinações também proíbem o Judiciário de barrar processos com base na Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79), que, segundo a Corte, não possui efeitos jurídicos por constituir um instrumento de autoperdão a membros do aparato repressivo.
Publicado originalmente pelo MPF em 30/08/2024 – 08h35