Demora na regulamentação permitiu crescimento desordenado do setor e mudou padrão de consumo de parte da população
O Brasil encerrou, nesta semana, mais um passo no processo de regulamentação de casas de apostas online. Foram recebidos mais de 100 pedidos de autorização de funcionamento de empresas de jogos e apostas virtuais.
A partir da finalização desse processo, todas as iniciativas que não tiverem autorização do governo serão consideradas ilegais. Quem descumprir regras e normas legais sofrerá sanção. Essa é uma das etapas finais do processo de legalização dessas atividades no Brasil, que começou no governo de Michel Temer (MDB), em 2018.
No entanto, dados relativos aos impactos sociais e econômicos dessas atividades apontam que a efetivação das regras legais de operação chega tarde e pode já estar defasada.
Na economia do país e das famílias, as consequências das chamadas bets e de jogos conhecidos como tigrinho estão aparecendo e causando preocupação: elas vão do aumento do endividamento e diminuição de recursos para itens básicos ao adoecimento mental e até suicídio.
Uma pesquisa do banco Itaú, um dos maiores do Brasil, estima que brasileiros e brasileiras perderam quase R$ 24 bilhões em jogos e apostas online em um ano.
Recentemente, o diretor de Política Monetária do Banco Central, Gabriel Galípolo, apontou que alguns estudos mostram que o aumento de renda no Brasil não elevou o consumo e nem as economias das famílias como poderia. A explicação pode estar no consumo dos jogos e das apostas online.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a consultora do programa de Serviços Financeiros do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), Ione Amorim, afirma que a demora na regulamentação da atividade trouxe prejuízos consideráveis.
“Há um ambiente com muitos recursos financeiros, que fez com que essas empresas capturassem influenciadores que passaram a ser os seus grandes patrocinadores. Os seguidores foram induzidos para esse ambiente de jogos, que se alastrou muito rapidamente, com o atrativo de se ganhar recursos rapidamente.”
Segundo ela, o setor de apostas e jogos online já preocupa diversos setores da cadeia produtiva brasileira. “O comportamento de consumo das famílias já afeta o ambiente de entretenimento e de lazer. As pessoas estão modificando os seus hábitos. Já afeta o sistema bancário, já impacta fortemente a questão do endividamento e a saúde mental das pessoas.”
“O Hospital das Clínicas aqui em São Paulo já admite não ter mais estrutura para receber pessoas para tratar esse problema este ano. Estamos falando de saúde pública, de um problema que é uma epidemia”, explica.
Análise da a empresa de consultoria Strategy&, as apostas representam o equivalente a 76% das despesas de “lazer e cultura” das classes D e E. O total gasto com os jogos corresponde a 5% do que é destinado à alimentação.
O relatório expressa preocupação com a ampliação desse tipo de atividade frente ao índice de brasileiros e brasileiras que revelam não ter segurança financeira. Segundo a pesquisa Hopes and Fears 2024, ele chega a 43%.
Ainda de acordo com a consultoria, as apostas já representam 1,38% do orçamento familiar nas classes com menor poder aquisitivo. A análise aponta também que boa parte do dinheiro ganho é colocado novamente no jogo, o mostra que o eventual lucro de quem joga não tem impacto significativo na economia real.
A informação é reafirmada em um estudo de 2023, divulgado pelo Instituto Locomotiva, que mostra que somente 36% dos ganhos são usados em outros gastos. O levantamento estima que 20% da população de baixa renda aposta pelo menos uma vez por mês.
“Precisamos trabalhar a educação financeira e o risco do endividamento. As pessoas precisam estar cientes de que este ambiente não é saudável. A maioria das pessoas que hoje estão perdendo mais dinheiro são as que já estão negativadas. Elas estão sendo expostas a agiotagem em redes sociais”, alerta Ione Amorim.
Confira a entrevista na íntegra a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Quais são as consequências que o crescimento das apostas e jogos virtuais trazem para a economia brasileira.
Ione Amorim: Os impactos podem ser e já estão sendo gigantescos. Ficamos esse período sem regulamentação. Essas empresas já estavam operando desde que a lei foi aprovada. E ao longo desse período, o que vimos foi essa disseminação totalmente sem respaldo legal, porque a regulamentação estava sendo discutida paralelamente. Então esse problema já se alastrou.
Podemos fazer um paralelo desse impacto na economia com o que aconteceu há algumas décadas com bingos e máquinas caça-níqueis. Elas já tinham causado grandes danos financeiros para as famílias, com muito foco nos idosos.
Quando retomamos esse ambiente de jogos e apostas, chegamos nesse ambiente de forma eletrônica. Isso mudou o comportamento da população e criou um ambiente muito favorável para a atuação dessas empresas. Hoje, não temos uma população afetada somente de idosos. Temos jovens e crianças.
Há um ambiente com muitos recursos financeiros, que fez com que essas empresas capturassem influenciadores que passaram a ser os seus grandes patrocinadores. Os seguidores foram induzidos para esse ambiente de jogos, que se alastrou muito rapidamente, com o atrativo de se ganhar recursos rapidamente.
O problema está instalado e nós estamos vivendo uma epidemia de jogos de apostas bets e jogos eletrônicos. A maioria dessas empresas, neste momento, não tem sede no Brasil, atuam todas lá fora. Os recursos que a população, de modo geral, disponibiliza para essa finalidade já impactam a economia.
O comportamento de consumo das famílias já afeta o ambiente de entretenimento e de lazer. As pessoas estão modificando os seus hábitos. Já afeta o sistema bancário, já impacta fortemente a questão do endividamento e a saúde mental das pessoas.
Temos um problema extremamente severo e esse conjunto de medidas ainda vai ser adotado para consolidar a regulamentação – quando chegar em sua plenitude – já vai estar muito ultrapassado.
Que consequências o fato de essas empresas estarem fora do país pode trazer?
É um dinheiro que não entra na economia, porque se deixa de consumir bens e serviços. É pior neste momento que o país está em recuperação econômica, saiu de uma pandemia e de um ambiente político e econômico extremamente frágil. Esse recurso adicional que vem sendo criado, que poderia ser o motor para estimular novamente o consumo, empresas, arrecadação, está indo lá para fora.
A promessa das empresas de jogos e apostas no Brasil é aumentar a arrecadação e a geração de emprego, mas onde? Que emprego vai gerar se o produto é desenvolvido lá fora e se a receita é transferida?
Há um impacto no campo macroeconômico bastante expressivo. Talvez, até o momento em que essas medidas entrarem em vigor, o dano já estará bastante consolidado.
Como os gastos com apostas e jogos online prejudicam a economia doméstica das famílias?
O jogo é classificado como entretenimento, um ambiente para um momento de lazer e de descontração. Mas hoje, por exemplo, não se assiste futebol pelo prazer de assistir à partida, mas pelas expectativas de ganho que o desempenho daquela partida vai te proporcionar financeiramente.
Isso no caso das bets. Os jogos online, como o jogo do tigrinho, lembram muito os caça-níqueis. É um desafio de ganho rápido. Essa facilidade de acesso ao recurso contamina e estimula a ficar nesse ambiente apostando. As empresas trabalham muito bem esses critérios de estímulo para a busca de resultados.
Por isso falamos dessa rápida dependência. Temos acompanhado centenas de casos. Assim como em outros vícios, a pessoa entra achando que vai apenas experimentar e conhecer. Mas nesse caso, a aposta é o próprio recurso financeiro, então ela vai direto no bolso.
Já há um comprometimento no consumo de alimentos, bens e serviços, inclusive de lazer. O problema escalou para diversas esferas sociais. Temos grandes corporações altamente preocupadas, porque profissionais de diversas categorias estão antecipando férias, tomando crédito, antecipando e vendendo o 13º salário para pagar as dívidas que foram contraídas nesse ambiente.
Temos mudanças de comportamento, crises dentro da família porque as economias estão sendo perdidas, assim como imóveis e bens de qualquer outra natureza. No ambiente de trabalho, há perda de produtividade, problemas nos relacionamentos e perda do emprego.
Nas pesquisas que acompanho, as classes mais altas pensam que jogam como entretenimento porque têm um bom domínio, mas elas não estão isentas de problemas severos. As classes mais baixas de renda não estão pelo lazer, estão pela monetização, então ali é que ocorre o maior problema, porque a pessoa está na expectativa do ganho.
Você menciona que a legislação pode já chegar defasada frente à realidade. A publicidade massiva e desregulada é um exemplo disso?
O primeiro ponto que não é suficiente é o fato de se adotar o conceito de jogos responsáveis e que a empresa vai observar se o apostador tem uma tendência a ser um dependente. Que empresa está preocupada em saber disso?
Não faz nenhum sentido pensar que estratégias como essa vão atender à necessidade de conter o avanço da forma como já colocamos aqui. Quase todos os 20 times da primeira divisão são patrocinados por essas empresas. Os influenciadores digitais são pagos por elas. Muitos têm como razão de existir fazer esse trabalho de divulgação. O dinheiro que elas têm para colocar em publicidade é gigantesco.
O trabalho de uma publicidade responsável de apostas seria fazer o mesmo que foi feito com o cigarro: acabar. Não tem publicidade na televisão, não tem publicidade durante o intervalo de jogos sobre esse tipo de produto, porque eles são danosos à saúde mental e financeira das pessoas.
Essa questão é um grande desafio para o governo, para poder colocar uma regulação que seja, de fato, efetiva, uma vez que a legalização já foi aprovada. Então você tem que ter uma regulação que venha atender essa expectativa. Um outro ponto importante é o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) criar as regras de publicidade.
Estamos falando de uma questão de saúde. Uma empresa que está ofertando um serviço ou colocando essa plataforma para ser consumida no mercado não tem mecanismos para dizer quem tem tendências ao vício.
O que eu entendo que ainda não foi discutido nesse ambiente é trazer todas as plataformas que estão no exterior. Uma das medidas propostas é fazer com que todas elas tenham sede no Brasil. Porque um dos problemas também é a falta de transparência nas regras.
Muitas dessas empresas não permitem o saque de todo o recurso ganho. Você tem que apostar ou acumular uma parte na plataforma. É preciso continuar jogando até estabelecer um patamar de valor que pode ser sacado. Observe que estamos falando de estratégias de retenção, de fidelização dessas pessoas enquanto apostadores.
Isso configura falta de transparência. Há casos em que o apostador ganhou e a empresa disse que ele burlou as regras da empresa sobre jogos. Ao trazê-las para o ambiente com sede no Brasil, isso poderá ser questionado. As regras são muito leoninas e muito favoráveis às empresas, elas não são favoráveis aos apostadores nesse sentido.
Uma questão que também que preocupa é que há muitos consumidores que entendem que esse ambiente é um ambiente de investimento. Há segmentos que entendem que isso é investimento, porque quem tem alta renda tem estratégias para jogar. Quem ganha não é quem mais aposta, quem mais aposta é quem mais perde.
Precisamos trabalhar a educação financeira e o risco do endividamento. As pessoas precisam estar cientes de que este ambiente não é saudável. A maioria das pessoas que hoje estão perdendo mais dinheiro são as que já estão negativadas. Elas estão sendo expostas à agiotagem em redes sociais.
Paralelo a isso, tem a questão da saúde. O Hospital das Clínicas aqui em São Paulo já admite não ter mais estrutura para receber pessoas para tratar esse problema este ano. Estamos falando de saúde pública, de um problema que é uma epidemia.
Essas empresas precisam, dentro desse contexto de regulamentação, serem responsabilizadas, colocar dinheiro para reduzir os impactos dos danos que vêm sendo causados pela atividade delas. Precisamos debater muito como iremos responsabilizá-las financeiramente para dar suporte para que hospitais possam tratar, para que haja programas de educação financeira, para que haja uma publicidade mais responsiva, que possa informar que há riscos.
Publicado originalmente pelo Brasil de Fato em 26/08/2024 – 07h33
Por Nara Lacerda – São Paulo (SP)
Edição: Thalita Pires