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A vitória de Maduro e a questão democrática

Antes de nossas considerações sobre a vitória de Nicolas Maduro nas eleições presidenciais da Venezuela, pela terceira vez consecutiva, examinemos rapidamente as manifestações de três presidentes da região: “Parabenizamos o povo venezuelano e o presidente Nicolás Maduro pela vitória eleitoral deste histórico 28 de julho. Ótima maneira de lembrar o Comandante Hugo Chávez. Acompanhámos de […]

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Foto: Nicolás Maduro, em Caracas / REUTERS / Leonardo Fernandez Viloria

Antes de nossas considerações sobre a vitória de Nicolas Maduro nas eleições presidenciais da Venezuela, pela terceira vez consecutiva, examinemos rapidamente as manifestações de três presidentes da região:

“Parabenizamos o povo venezuelano e o presidente Nicolás Maduro pela vitória eleitoral deste histórico 28 de julho. Ótima maneira de lembrar o Comandante Hugo Chávez. Acompanhámos de perto esta festa democrática e congratulamo-nos com o facto de a vontade do povo venezuelano nas urnas ter sido respeitada. Queremos ratificar a nossa vontade de continuar a fortalecer os nossos laços de amizade, cooperação e solidariedade com a República Bolivariana da Venezuela, no quadro da integração soberana dos nossos povos e no objectivo comum de avançar para um mundo multipolar.” Luis Arce, presidente da Bolívia

“O regime de Maduro deve compreender que os resultados que publica são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e especialmente o povo venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exigem total transparência das atas e do processo, e que observadores internacionais não comprometidos com o governo prestem contas pela veracidade dos resultados. Do Chile não reconheceremos nenhum resultado que não seja verificável.” Gabriel Boric, presidente do Chile.

“DITADOR MADURO, FORA!!!

Os venezuelanos escolheram acabar com a ditadura comunista de Nicolás Maduro. Os dados anunciam uma vitória esmagadora da oposição, e o mundo aguarda que ele reconheça a derrota após anos de socialismo, miséria, decadência e morte.

A Argentina não vai reconhecer outra fraude e espera que as Forças Armadas desta vez defendam a democracia e a vontade popular.

A Liberdade Avança na América Latina.” Javier Milei, presidente da Argentina.

***

Das três manifestações, a de Milei é seguramente a mais vulgar. Mais que isso, ao convocar as Forças Armadas da Venezuela a interferir no processo político, ele adota um tom odiosamente golpista. A extrema direita latina tem essa marca esquizofrênica, de encher a boca para falar em democracia, ao mesmo tempo em que opera para destruí-la sempre que a democracia não lhe convém. É um comentário autoritário em todas as acepções, na história, na forma, no conteúdo.

A manifestação de Boric, por sua vez, é uma postura tristemente servil aos interesses geopolíticos dos EUA. Mas eu também procuro sempre preconizar cuidado e tolerância da esquerda com relação a Boric, porque me parece que suas posturas refletem uma correlação de forças do próprio Chile, onde os setores conservadores são muito agressivos e fortes, e apenas se mantém neutralizados, alijadas do poder, porque Boric tem conseguido mantê-los divididos. E sua estratégia é justamente posar de “menino bonzinho”, em especial em temas internacionais, tentando agradar sobretudo esses setores reacionários de classe média, que constituem, desde os anos 50, a tradicional massa de manobra do golpismo em toda a América Latina.

Já o presidente da Bolívia, Luis Arce, teve a atitude mais digna e correta, que é respeitar integralmente o processo democrático da Venezuela, cuja instituição eleitoral central já decretou a vitória de Nicolás Maduro.

Naturalmente, o processo ainda não terminou. Pelas reações da oposição venezuelana, que não aceitou o resultado, adotando um discurso estridente de “fraude”, e pela imediata adesão dos EUA, via Anthony Blinken, ao discurso que põe em dúvida a lisura do processo, está claro que o país terá que superar mais uma série de obstáculos políticos, internos e externos, antes de poder efetivamente comemorar sua vitória.

No Brasil, o debate sobre a Venezuela permanece muito contaminado pela influência norte-americana e dos veículos de imprensa tradicionais, que historicamente se submetem caninamente aos interesses do império. Essa imprensa conseguiu, há tempos, envenenar a opinião pública brasileira, incluindo (eu diria até sobretudo) muitos setores intelectualizados, sobre a questão venezuelana. Essa é quase uma batalha perdida no debate político brasileiro, e por isso mesmo constitui um ponto extremamente sensível, e até mesmo perigoso, para a esquerda e para o governo Lula.

Também aqui é preciso muito cuidado, paciência e tolerância, para não deixar que a crise política na Venezuela seja importada para o Brasil, o que não nos permitiria nem ajudar nosso vizinho, nem a nós mesmos. A última coisa de que precisamos no momento é de uma crise política no Brasil motivada pela crise no governo Maduro.

A atitude mais adulta e mais prudente da esquerda e do governo será esperar que passe o momento de frustração e histeria, por parte daqueles que realmente acreditavam na vitória da oposição venezuelana, sem entrar em embates desnecessários. Essa é a razão pela qual o presidente Lula está esperando a volta de Celso Amorim, que foi à Venezuela acompanhar de perto o processo, para ouvir seu relato e tomar uma decisão sobre a melhor estratégia.

O chamado “chorus espernandis” é um direito sagrado dos perdedores. Deixemo-los chorar à vontade, livremente, sem serem incomodados.

Cabe aos vencedores, uma postura de magnanimidade.

Digo isso porque me preocupa a atitude bélica, faca nos dentes, de um setor importante da esquerda, tratando com truculência todos aqueles que optam por uma atitude mais crítica em relação ao regime venezuelano e à maneira como as eleições foram conduzidas.

A esquerda brasileira precisa ser extremamente estratégica, porque ainda temos muitos desafios a serem vencidos por aqui, neste segundo semestre. O mais perigoso será, naturalmente, chegar a um acordo com o centro político sobre a sucessão de Arthur Lira. Para terminar o mandato sem sobressaltos, e garantir a sua reeleição, Lula vai precisar de um presidente da Câmara comprometido com a democracia e a governabilidade. Não pode ser um bolsonarista raíz, e ao mesmo tempo precisa ser alguém com habilidade política suficiente para não empurrar o centro e a direita liberal para a extrema-direita.

Além disso, o tema Venezuela vai passar (e com sorte, o país se normalizará) e iremos precisar de todos, de Boric, de Arce, dos liberais democráticos, da esquerda moderada, do centro político, além de toda a esquerda brasileira e latino-americana, neste desafio gigantesco de promovermos um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo em nosso continente. Não podemos nos dar ao luxo de queimar pontes com ninguém!

Sobre o processo venezuelano em si, minha opinião é simples e direta: cabe respeitar a soberania do país e a decisão de suas instituições. A asserção de que o conselho eleitoral da Venezuela é “controlado por Maduro”, e que, portanto, estaria disposto a cometer fraudes, não me parece nem séria, nem ética, nem democrática. Quando se participa de um processo eleitoral, implica-se que se está de acordo com a sua lisura. Caso contrário, a denúncia precisa ser feita antes, não depois. É muito irresponsável participar de uma eleição e comemorar, em caso de vitória, e acusar fraude, em caso de derrota.

De qualquer forma, há observadores internacionais, e, ao longo das próximas horas e dias, teremos mais detalhes sobre a higidez do processo eleitoral venezuelano. Naturalmente, nenhum grupo político, de esquerda ou direita, deve ser lenientes com fraudes eleitorais, mas fraudes devem ser denunciadas com provas cabais.

Não se pede para aprovar o governo Maduro, ou gostar do regime venezuelano. Mas trata-se de um país independente, com uma sociedade politizada, perfeitamente capaz de resolver seus próprios problemas.

Além do mais, qualquer análise sobre os conflitos políticos e as dificuldades econômicas da Venezuela, que não considere a consequência devastadora das sanções unilaterais, criminosas, profundamente antidemocráticas, dos Estados Unidos, também não me parece honesta.

O Brasil precisa defender o fim das sanções à Venezuela, a soberania e autodeterminação de seu povo, e trabalhar para ajudá-lo a superar suas crises, pois uma América do Sul estável, capaz de se desenvolver economica e tecnologicamente, será fundamental para o futuro do Brasil, além de constituir uma contribuição importante para um mundo multipolar mais equilibrado e pacífico.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Tiago Silva

30/07/2024 - 00h01

Reitero o comentário que fiz antes aqui no blog:

Não deveriam comemorar a “democracia” atual da Venezuela e nem a “democracia” atual dos EUA. (Apesar de concordar com Miguel do Rosário que devemos respeitar a auto-determinação dos povos e soberania da Venezuela).

Em ambos países não há igualdade de condição entre candidatos. Na Venezuela houve cerceamento de candidatura de opositores. Nos EUA apenas é visto essa igualdade de condições apenas entre Democratas e Republicanos, mas não em relação a demais postulantes… E ainda com o poder financeiro que desiguala em muito a comunicação dos candidatos para os eleitores).

Talvez o método de votação da Venezuela seja mais “democrático” e “verificável” que nos EUA, pois na Venezuela vota-se em urna eletrônica, mas também se tem o complemento de voto impresso para que se possa auditar resultados de sessões eleitorais, porém não possibilitaram a participação de eleitores que moram no exterior (majoritariamente contrários ao governo venezuelano). Nos EUA, o voto acontece em um método “estranho” através do voto indireto em “delegados” e que ainda pode nem refletir o resultado da votação em relação à votação desses “delegados”, pois contabiliza-se o resultado por Estados e não por “delegados”… e ainda declarar um vencedor que teve menos votos da população dos EUA.

Óbvio que os sistemas eleitorais da Venezuela e EUA são mais democráticos e com maior igualdade de condições entre candidatos do que na Coreia do Norte ou Ditaduras familiares em alguns países árabes. Porém, deveríamos exigir mais desses países que estão sempre no foco dos noticiários (até principalmente porque o poder econômico busca alguma forma de roubar as reservas de petróleo da Venezuela, assim como os EUA ditam princípios de “democracia” que nem são seguidos internamente no próprio EUA, além de que os EUA inclusive utilizam desses valores abstratos como “democracia” como motivo para poderem fazer bloqueios econômicos contra determinados países, apropriarem-se de recursos desses países ou de pessoas desses como forma de sanção, promovem golpes também muitas vezes utilizando de termos como “democracia”, “transparência” ou até mentiras como no caso do Iraque para muitas vezes buscar ter domínio sobre recursos naturais de outros países (como o Petróleo na Venezuela).

O tema “democracia” é um tema complexo, mas que além de respeitarmos a auto-determinação dos povos, também seria necessário que também a crítica fosse entendida para a necessária melhora da democracia na Venezuela, mas como também da melhora na democracia nos EUA, países Árabes, Coreia do Norte, além de alguns outros países como Hungria, Ucrânia, Rússia, Azerbaijão ou parlamentarismos com pouca oxigenação política e ainda muito influenciada por monarquias como Inglaterra ou Austrália.

Ao Brasil, apenas cabe sugerir melhoras para esses sistemas eleitorais, sem esquecer que também temos muito o que melhorar aqui que até outro dia era baseado em um financiamento privado que desigualava candidaturas e que ainda temos um sistema eleitoral que ainda não dá muito espaço para mulheres, negros e pobres.

Assim, antes de fazer arroubos como de Milei… deveriam é buscar tentar uma parceria estratégica com todos os países, inclusive Venezuela, para que o Brasil possa ajudar e ser ajudado a enfrentar os problemas que ainda são muitos para a Venezuela que vive bloqueio econômico de décadas (assim como Cuba ou Irã) e buscar parcerias estratégicas para desenvolvimento do Brasil, América do Sul, Brics e Sul Global.


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