Em 21/07, Joe Biden desistiu de sua candidatura, o que alterou profundamente os rumos das eleições presidenciais nos EUA. O atentado contra Donald Trump (13/07) não é mais o fato novo. A novidade passa a ser a indicação da vice-presidente kamala Harris como candidata do Partido Democrata.
Na temporalidade digital que condiciona a vida contemporânea tudo torna-se obsoleto com muita velocidade. A capacidade de dominar a atualização das notícias é fundamental nas disputas políticas. Hoje, a novidade é Harris e a candidatura de Trump é quem está na defensiva.
É importante discutir as eleições nos EUA à luz da jornada global de enfrentamento à extrema direita. Pois sim, o fortalecimento desses grupos radicais pode ser observado em diversos países do mundo, o que naturalmente convida os estudiosos ao exercício da análise comparada. Porém, as semelhanças entre os cenários políticos desses diversos países não deveriam ofuscar as particularidades.
Muitas vezes, as estratégias de enfrentamento que funcionam em um determinado país são ineficazes em outros lugares.
Começamos pelos próprios EUA
Pesquisas eleitorais já apontam Harris na frente de Donald Trump, o que Joe Biden não conseguiu em nenhum momento nesta jornada eleitoral. Nos EUA, portanto, a indicação de uma mulher negra e descendente de imigrantes parece ser algo promissor no enfrentamento ao identitarismo branco, masculino, anglo saxão e protestante encarnado em Donald Trump.
Não é de hoje que a história dos EUA é atravessada de um modo bem peculiar pelo conflito racial. Por lá, o racismo ganhou a forma de um apartheid institucionalizado que negava direitos civis aos negros. O regime foi legalmente extinto somente em meados da década de 1960, depois de grande movimentação da população negra em defesa dos direitos civis. Essa cultura de mobilização ainda permanece vibrante nos EUA, como demonstra a força das movimentações populares lideradas pelo movimento Black Lives Matter, fundado em 2013.
Grande parte da popularidade de Donald Trump pode ser explicada como uma espécie de reação desses grupos sociais brancos, ainda inconformados com a Lei dos Direitos Civis (1964). Especialistas na política estadunidense utilizam o termo “White Trash” para definir parte da base social trumpista, formada por pessoas brancas de baixo estatuto social, como operários, trabalhadores rurais e pobres em geral.
Nos EUA, portanto, os marcadores identitários têm grande apelo, à esquerda e à direita. Restam poucas dúvidas de que Kamala Harris possui mais condições de liderar a reação ao trumpismo do que o cansado e frágil Joe Biden.
Em França, Portugal e Alemanha, os aspectos identitários também são importantes, mas com contornos bem diferentes em relação aos EUA.
O Partido da Reunião Nacional, liderado por Marine Le Pen, também é resultado de uma reação identitária contra os imigrantes e a um suposto ataque à “essência nacional francesa”. Em Portugal e na Alemanha, respectivamente, o “Chega” e o “Alternativa para a Alemanha” também estão fundados num certo identitarismo de extrema-direita contra a imigração, sobretudo islâmica.
As extremas-direiras francesa, portuguesa e alemã estão voltadas, prioritariamente, contra os grupos considerados “invasores”, ou seja, contra os imigrantes, especialmente os muçulmanos.
Na Espanha, a situação é diferente, pois o separatismo catalão é o grande tema mobilizado pelo Vox, partido de extrema-direita liderado por Santiago Abascal. Ainda que também tenha componente islamofóbico, o aspecto identitário não está no primeiro plano das causas que explicam o fortalecimento da extrema-direita espanhola.
Já na Argentina, a vitória de Javir Milei foi impulsionada por uma dramática crise econômica que se arrasta há décadas. O elemento racial tem pouquíssima importância para a compreensão do populismo mileista.
E no Brasil?
Não é de hoje que o debate racial estadunidente exerce grande influência sobre o Movimento Negro brasileiro, o que pode ajudar e entender as dificuldades em elaborar um discurso antirracista mais adequado às especificidades do racismo que temos por aqui.
É de se esperar, portanto, que o que acontece nos EUA tenha potencial colonizador junto à esquerda identitária brasileira. Tão logo Biden desistiu de sua candidatura, diversas lideranças de esquerda mostraram-se animadas com a possibilidade de uma “mulher negra” derrotar Trump nos EUA, sugerindo que o Brasil deveria trilhar caminho semelhante. Mas é preciso ter cuidado com a emoção, pois a comparação entre Brasil e EUA apresenta limites muito estreitos.
Primeiro, é importante destacar que no Brasil nunca existiu um apartheid institucionalizado e a mestiçagem tão difundida tornou as fronteiras raciais menos evidentes. Também não temos histórico de grandes movimentos populares impulsionados pelo identidarismo racial. Isso não quer dizer, é claro, que o racismo brasileiro seja mais brando que o racismo tal como se manifesta nos EUA, como já foi dito inúmeras vezes na história do pensamento social brasileiro. São experiências distintas e é evidente que, entre nós, o discurso identitário não tem a mesma capacidade de mobilização, em que pese ser forte nas universidades e em alguns partidos e movimentos sociais de esquerda.
O componente identitário também não é o aspecto mais importante no crescimento da extrema-direita brasileira, liderada por Jair Bolsonaro. O desgaste do sistema político impulsionado pela espetacularização midiática promovida pela Operação Lava Jato, o colapso na segurança pública e a popularidade das igrejas evangélicas neopentencostais são elementos muito mais relevantes.
Não é razoável supor que em 2026, o campo democrático brasileiro deve imitar a solução inventada pelo Partido Democrata. O desejável sucesso de kamala Harris nas eleições dos EUA diz mais sobre as especificidades da crise democrática vivenciada naquele país do que sinaliza para um modelo universal possível de ser aplicado em outras regiões do mundo.
Por Rodrigo Perez, professor e pesquisador de História na UFBA.