Em encontro do G20 que aprovou proposta brasileira de criar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, presidente diz que disposição política é capaz de solucionar a desigualdade persistente
“Nunca, tantos tiveram tão pouco, e tão poucos concentraram tantas riquezas. Nada é tão absurdo e inaceitável quanto a persistência da fome e da pobreza, quando temos à disposição tanta abundância. Esta é uma constatação que pesa na nossa consciência. Nenhum tema é mais desafiador e atual para a humanidade”. Este trecho do discurso preparado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva resume a proposta feita pelo Brasil, e aprovada por aclamação pelo G20 no início da tarde desta quarta-feira, de criar uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
Para Lula, conforme destacou em sua fala, acabar com esses dois males é uma questão de escolha. “A fome não resulta apenas de fatores externos. Ela decorre, sobretudo, de escolhas políticas”. Em outro trecho, resumiu: “Não podemos naturalizar tais disparidades”.
Após ser apresentado pelo ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, como “a voz da esperança”, Lula iniciou seu discurso criticando o oportunismo, justificado por preconceitos e interesses, que mantém a pobreza e a fome no plano internacional. Além de ter sido o autor da proposta de criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, enquanto líder da Presidência brasileira do G20, Lula chegou ao encontro amparado pelo relatório da ONU, divulgado no mesmo dia, que atesta a drástica redução da fome no Brasil nos últimos 19 meses.
Lula encontra Daniel de Souza, da Ação da Cidadania, e Josué Fernando de Castro, filho do autor do clássico Geografia da Fome
Lula atacou “falsas teorias” que atribuem a miséria à “indolência inata”, enquanto fazem da pobreza um bom negócio. “Muitos viam os pobres como mal necessário e mão de obra barata para produzir as riquezas das oligarquias”. Assim, prosseguiu o presidente, a pobreza tem sido tratada apenas um “estorvo” que, “quando muito”, era enfrentada com “medidas paliativas”.
Ao fazer menção às altas taxas de concentração de renda, o discurso de Lula evoca paralelo com uma declaração de guerra. Winston Churchill, primeiro-ministro quando da entrada da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial, havia declarado “nunca tantos deveram a tão poucos”. Aqui, como um chamado à comunidade internacional para o combate ao principal mal que assola o mundo, Lula inverteu a fórmula. Afinal, nunca tão poucos – no caso, os detentores das maiores fortunas – deveram a tantos.
Antes dele, os ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Wellington Dias, haviam apresentado dados e propostas sobre a concentração de renda no mundo e formas de enfrentá-la, com distribuição dos recursos decidida coletiva e internacionalmente, conforme proposta da Aliança oficialmente criada nesta quarta-feira, no Galpão da Cidadania, no Rio de Janeiro. O galpão é sede da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, entidade criada nos anos 1990 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho – figura citada em diferentes discursos ao longo da manhã.
Íntegra do discurso do presidente Lula
“Participar dessa reunião ministerial da Força Tarefa, que lança as bases para a Aliança contra a Fome e a Pobreza, é um dos momentos mais relevantes dos 18 meses deste meu terceiro mandato.
Neste espaço tão simbólico – o Galpão da Cidadania – damos um passo decisivo para recolocar esse tema de uma vez por todas no centro da agenda internacional.
Ao longo dos séculos, fome e pobreza estiveram cercadas de preconceitos e interesses.
Muitos viam os pobres como um “mal necessário” e mão-de-obra barata para produzir as riquezas das oligarquias. Falsas teorias os consideravam responsáveis pela própria pobreza, atribuída a uma indolência inata, sem qualquer evidência nesse sentido. Foram ignorados por governantes e setores abastados.
Mantidos à margem da sociedade e do mercado. Os que não puderam ser incorporados à produção e ao consumo ainda hoje são tidos como um estorvo. Quando muito, tornaram-se objeto de medidas compensatórias paliativas. Nas últimas décadas, a globalização neoliberal agravou esse quadro.
Nunca tantos tiveram tão pouco e tão poucos concentraram tanta riqueza.
Em pleno século 21, nada é tão absurdo e inaceitável quanto a persistência da fome e da pobreza, quando temos à disposição tanta abundância, tantos recursos científicos e tecnológicos e a revolução da inteligência artificial.
Esta é uma constatação que pesa em nossas consciências.
Nenhum tema é mais atual e mais desafiador para a humanidade.
Não podemos naturalizar tais disparidades.
A fome é a mais degradante das privações humanas. É um atentado à vida, uma agressão à liberdade.
A fome, como dizia o grande cientista social brasileiro Josué de Castro “é a expressão biológica dos males sociais”.
Os dados divulgados hoje pela FAO sobre o estado da insegurança alimentar no mundo são estarrecedores.
A pobreza extrema aumentou pela primeira vez em décadas.
O número de pessoas passando fome ao redor do planeta aumentou em mais de 152 milhões desde 2019.
Isso significa que 9% da população mundial (733 milhões de pessoas) estão subnutridas.
O problema é especialmente grave na África e na Ásia, mas ele também persiste em partes da América Latina.
Mesmo nos países ricos, aumenta o apartheid nutricional, com a pobreza alimentar e a epidemia de obesidade.
Em 2023, 29% da população mundial (2,3 bilhões de pessoas) enfrentou graus moderados ou severos de restrição alimentar.
A fome tem o rosto de uma mulher e a voz de uma criança.
Mesmo que elas preparem a maioria das refeições e cultivem boa parte dos alimentos, mulheres e meninas são a maioria das pessoas em situação de fome no mundo.
Muitas mulheres são chefes de família, mas ganham menos.
Trabalham mais no setor informal, se dedicam mais aos cuidados não-remunerados, e têm menos acesso à terra que os homens.
A discriminação étnica, racial e geográfica também amplifica a fome e a pobreza entre populações afrodescendentes, indígenas e comunidades tradicionais.
Crises recorrentes e simultâneas agravam esse quadro.
A pandemia de Covid-19 aumentou drasticamente a subnutrição, e esses níveis elevados se mantêm inalterados.
Conflitos armados interrompem a produção e distribuição de alimentos e insumos, contribuindo para o aumento dos preços.
Eventos climáticos extremos ceifam vidas, devastam cultivos e infraestruturas. Subsídios agrícolas em países ricos solapam a agricultura familiar no Sul Global. O protecionismo discrimina contra os produtos de países em desenvolvimento.
Mas a fome não resulta apenas de fatores externos. Ela decorre, sobretudo, de escolhas políticas. Hoje o mundo produz alimentos mais do que suficiente para erradicá-la. O que falta é criar condições de acesso aos alimentos.
Enquanto isso, os gastos com armamentos subiram 7% no último ano, chegando a 2,4 trilhões de dólares.
Inverter essa lógica é um imperativo moral, de justiça social, mas também essencial para o desenvolvimento sustentável.
No Brasil, combatemos a fome por meio de um novo contrato social, que coloca o ser humano no centro da ação de governo.
Retomamos as políticas de valorização do salário mínimo, de erradicação do trabalho infantil e de combate a formas contemporâneas de escravidão.
Temos uma sólida política de geração de postos de trabalhos formais. O desemprego é o mais baixo em uma década.
Aprovamos uma lei sobre igualdade de remuneração entre homens e mulheres.
Formulamos um Plano Nacional de Cuidados que considera as desigualdades de classe, gênero, raça, idade, deficiências e territórios, com olhar especial para trabalhadores e trabalhadoras domésticos.
Programas como o Bolsa Família, de Aquisição de Alimentos e de Alimentação Escolar permitem que refeições saudáveis cheguem aos mais vulneráveis, estimulem a produção agrícola e promovam o desenvolvimento local.
A agricultura familiar é componente essencial dessa estratégia. São quase 5 milhões de propriedades rurais de até 100 hectares produzindo parte expressiva dos alimentos consumidos no país.
Em síntese, tomamos a decisão política de colocar os pobres no orçamento.
Como resultado, só em 2023 retiramos 24 milhões e 400 mil pessoas da condição de insegurança alimentar severa.
Ainda temos mais de 8 milhões de brasileiras e brasileiros nessa situação.
Este é o compromisso mais urgente do meu governo: acabar com a fome no Brasil, como fizemos em 2014.
Meu amigo Diretor Geral da FAO, pode ir se preparando para anunciar em breve que o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome.
Senhoras e senhores,
A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza nasce dessa vontade política e desse espírito de solidariedade. Ela será um dos principais resultados da presidência brasileira do G20. Seu objetivo é proporcionar renovado impulso às iniciativas existentes, alinhando esforços nos planos doméstico e internacional. Queremos colocar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis de volta nos trilhos.
Em 2008, o G20 foi fundamental para evitar o colapso da economia internacional.
Agora, os líderes mundiais têm diante de si a oportunidade de responder a esse outro desafio sistêmico.
Precisamos de soluções duradouras, e devemos pensar e agir juntos.
A Aliança representa uma estratégia de conquista da cidadania.
A melhor maneira de executá-la é promovendo a articulação de todos os atores relevantes.
Com esse fim, reunimos as duas trilhas, de Finanças e dos Sherpas, nesta Força Tarefa.
É gratificante ver aqui hoje ministros de trinta países membros e convidados ao lado de organizações internacionais e bancos de desenvolvimento.
O papel das Nações Unidas e, particularmente, da FAO, do FIDA e do Programa Mundial de Alimentos será decisivo.
Vamos seguir dialogando com governadores, prefeitos, sociedade civil e setor privado.
Nossa melhor ferramenta será o compartilhamento de políticas públicas efetivas.
Muitos países também tiveram êxito em combater a fome e promover a agricultura e queremos que esses exemplos possam ser conhecidos e utilizados.
Aproveitaremos essas experiências e o conhecimento acumulado e ampliar o alcance dos nossos esforços.
Nenhum programa vai ser mecanicamente transposto de um lugar a outro.
Vamos sistematizar e oferecer um conjunto de projetos que possam ser adaptados às realidades específicas de cada região.
Toda adaptação e implementação deverá ser liderada pelos países receptores, porque cada um conhece seus problemas.
Eles devem ser os protagonistas de seu sucesso.
A Aliança será gerida com base em um secretariado alojado nas sedes da FAO em Roma e em Brasília.
Sua estrutura será pequena, eficiente e provisória, formada por pessoal especializado e funcionará até 2030, quando será desativada.
Metade dos seus custos serão cobertos pelo Brasil. Quero registrar minha gratidão aos países que já se dispuseram a contribuir com este esforço.
A Aliança tampouco criará fundos novos. Vamos direcionar recursos globais e regionais que já existem, mas estão dispersos.
Recebemos com satisfação os anúncios feitos hoje pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pelo Banco Africano de Desenvolvimento.
Ambas as instituições estabelecerão um mecanismo financeiro inovador para o uso do capital híbrido dos Direitos Especiais de Saque em apoio à Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza.
É gratificante saber que a segurança alimentar será um tema central na agenda estratégica do Banco Mundial nos próximos anos e que a Associação Internacional para o Desenvolvimento fará nova recomposição de capital para ajudar os países mais pobres.
Todos os que queiram se somar a esse esforço coletivo são bem-vindos.
A Aliança Global nasce no G20, mas é aberta ao mundo.
Senhoras e senhores,
Em 22 de julho de 1944, há exatos 80 anos, encerrava-se a Conferência de Bretton Woods.
Desde então, a arquitetura financeira global mudou pouco e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas.
A representação distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é um obstáculo ao enfrentamento dos complexos problemas da atualidade.
Sem uma governança mais efetiva e justa, na qual o Sul Global esteja adequadamente representado, problemas como a fome e a pobreza serão recorrentes.
Essa é outra prioridade da nossa presidência do G20.
Lidar com a desigualdade também será parte desse esforço.
A riqueza dos bilionários passou de 4% do PIB mundial para quase 14% nas últimas três décadas.
Alguns indivíduos controlam mais recursos do que países inteiros. Outros possuem programas espaciais próprios.
Vários países enfrentam um problema parecido. No topo da pirâmide, os sistemas tributários deixam de ser progressivos e se tornam regressivos.
Os super-ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que a classe trabalhadora.
Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem insistido no tema da cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global, fortalecendo as iniciativas existentes e incluindo os bilionários.
Juntamente com a União Africana, que participa pela primeira vez como membro pleno do G20, temos alertado sobre o problema do endividamento.
O que vemos hoje é uma absurda exportação líquida de recursos dos países mais pobres para os mais ricos.
Não se pode financiar o bem-estar coletivo, se parte expressiva do orçamento é consumido pelo serviço da dívida.
A fome e a mudança do clima são dois flagelos que se agravam mutuamente.
Quem sente fome tem sua existência aprisionada na dor do presente. Torna-se incapaz de pensar no amanhã.
Reduzir vulnerabilidades socioeconômicas pavimenta o caminho para a transição justa, constrói resiliência frente a eventos extremos e fortalece os esforços contra o aquecimento global.
A transição energética e a descarbonização do planeta são oportunidades nessa luta contra a fome.
Senhoras e senhores,
O lema da presidência brasileira do G20 “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável” parece inalcançável, mas hoje damos um passo decisivo para sua realização.
A fome e a pobreza inibem o exercício pleno da cidadania e enfraquecem a própria democracia.
Erradicá-las equivale a uma verdadeira emancipação política para milhões de pessoas.
Enquanto houver famílias sem comida na mesa, crianças nas ruas e jovens sem esperança, não haverá paz.
Um mundo justo é um mundo em que as pessoas têm acesso desimpedido à alimentação, à saúde, à moradia, à educação e empregos decentes.
Essas são condições imprescindíveis para construir sociedades prósperas, livres, democráticas e soberanas.
Espero revê-los em novembro, aqui no Rio de Janeiro, para a reunião de Cúpula do G20.
Será uma ocasião para lançar oficialmente a Aliança Global e anunciar seus membros fundadores.
Contamos com todas e todos para que ela seja um sucesso.
Muito obrigado.”
Publicado originalmente pela Agência Gov em 24/07/2024 – 13h35
Por Isaías Dalle
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