Celso Amorim, principal assessor internacional do presidente Lula, e que, por seu peso político pessoal, é quase o ministro de relações exteriores do país, entrou na cova do leões há poucos dias e, qual Daniel no Velho Testamento, saiu ileso!
A cova, no caso, é a sede da Carnegie Endowment for International Peace, um think tank de Washington financiado por corporações de petróleo, indústrias de armas, agências governamentais do norte global e representações diplomáticas atlantistas.
Para simplificar: é um dos think tanks oficiais da Otan.
Amorim participou de uma conversa com Dan Baer, um dos diretores da instituição, que cometeu, a meu ver, algumas grosserias vulgares com nosso embaixador que somente o vício imperialista explicaria.
Mas Amorim se saiu muito bem, e levou tudo com bom humor, inclusive fazendo a plateia dar umas gargalhadas (ao mesmo tempo em que irritava maravilhosamente o entrevistador).
A primeira faísca entre Amorim e Baer foi criada, a bem da verdade, pelo próprio Amorim, que inicia a sua resposta já lançando algumas provocações, como a de que o Brasil teria divergências de ordem geopolítica com os Estados Unidos. Ele enfatiza, porém, que ambos os países tem muitos pontos de afinidade, como o combate à desigualdade e a defesa do meio ambiente.
Apesar dos momentos de agressividade do entrevistador, Amorim foi muito bem recebido na instituição. O discurso de abertura de seu presidente, Mariano-Florentino (Tino) Cuéllar, é quase laudatório, e não somente ao Brasil, mas ao presidente Lula, pela imagem que ele construiu nos EUA de ser uma liderança com valores democráticos firmes.
A descrição no vídeo da conversa, no Youtube, começa dizendo que “muitos defensores da democracia ao redor do mundo suspiraram aliviados após a eleição do Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, também conhecido como Lula”. Logo em seguida, porém, na mesma descrição, um tom de lamentação: “[mas] esperavam uma maior cooperação no cenário global.”
Essa “maior cooperação”, como fica patente nas perguntas, e mesmo nos acessos de irritação do entrevistador, seria um alinhamento do Brasil com as posições geopolíticas dos EUA, o que não aconteceu.
A segunda provocação de Amorim vem também no início da conversa, quando o entrevistador ensaia a entrada em temas mais pesados, e usa a expressão “rules based order”, ou ordem baseada em regras, que é a expressão usada pelos atlantistas para essa ordem mundial ancorada na dominação norte-americana.
Amorim quase pula da cadeira ao ouvir a expressão, como faria qualquer representante decente do Sul Global, e rebate sem papas na língua: “não gosto dessa expressão”.
O entrevistador então retruca que “ninguém gosta” mas que até o momento não haveria nenhuma melhor.
“Tem sim”, corta Amorim, “leis internacionais”.
É o primeiro punch mais forte de Amorim no representante da Ota… quer dizer, da Carnegie, que faz uma pausa dramática. Alguns minutos depois, quando já conversavam sobre o G-20, que Amorim tinha defendido como uma “inspiração” para um modelo de governança mais democrático, Baer volta à ofensiva para emplacar a expressão tão querida, perguntando se Amorim não considerava necessário que o mundo fosse governado por “regras reais”.
Aí se dá o primeiro nocaute de Baer, porque o murro de Amorim é devastador. Ele responde o seguinte:
“Bem, você sabe, o estado de direito ou uma ordem legal, ou seja, a ordem baseada em regras é mais ou menos como Alice no País das Maravilhas. É uma ordem baseada em regras que muda conforme você deseja. O G20 é um órgão inspirador. Quero dizer, se eles concordarem, é porque possivelmente pode se tornar lei, mas tem que se tornar lei, tem que ser algo que todos devem obedecer, porque na ordem baseada em regras você realmente não sabe a quais regras está se referindo e como elas mudam. É uma ordem baseada em regras que os EUA querem ou o que a Rússia quer? Não sei. Não concordo com isso. Acho que a lei internacional é como em nossa própria vida. Você pode dizer que tem uma ordem baseada em regras com seu vizinho, mas há uma lei que permite que você faça algumas coisas e não permite que faça outras. A ordem baseada em regras pode ser um acréscimo, mas não é um substituto para a lei internacional.”
Ouch!
Amorim faz uma longa explanação sobre a necessidade de aprimorar o Conselho de Segurança da ONU, incorporando uns dois países africanos e removendo um europeu (ele dá um olhar irônico à plateia ao falar isso, e a platéia ri. Ele irá repetir, ao final da conversa, a ideia de remover um país europeu do Conselho de Segurança, e a plateia rirá mais forte).
Os EUA não são poupados das críticas. Tenho impressão, inclusive, que Amorim participou daquele evento sobretudo para saborear a deliciosa irritação inevitável, em seus interlocutores, quando ele fizesse a crítica à postura dos Estados Unidos, sobretudo em relação à guerra da Ucrânia.
“O que temos hoje no Conselho de Segurança são países que têm o veto e que são os países que mais desrespeitam o direito internacional. Você pode julgar a situação conforme sua vontade, mas, do ponto de vista formal, a invasão do Iraque foi a mesma coisa que a invasão da Ucrânia. Em ambos os casos, você tem uma grande potência usando seu poder para fazer o que acha certo. Não estou entrando nos detalhes do que é certo e o que é errado, é uma questão legal.”
Mais uma pausa dramática por parte do entrevistador.
Outro ponto de atrito entre Amorim e o entrevistador apareceu na tentativa deste último de apontar uma contradição entre o Brasil e os “regimes autoritários” dos Brics, como Irã, Egito e Emirados Árabes.
Amorim respondeu com muita calma, com um sorriso cheio de generosidade e ironia, apontando um certo fundamentalismo religioso na abordagem geopolítica hegemônica entre os americanos. E diz que tinha críticas a forma como o Irã trata suas mulheres, mas que também não concordava com a pena de morte nos EUA, de maneira que a melhor postura era não se meter tanto em outros países.
Mais pausa dramática, seguida de uma pequena explosão de fúria por parte do entrevistador. Baer diz que a comparação entre a pena de morte nos EUA e o regime iraniano não é “respeitável” e que usá-la afetaria a credibilidade moral de quem a faz. Achei uma grosseria vulgar. Amorim rebate isso apenas abrindo os braços, como quem diz “desculpa, mas essa é minha opinião”, enquanto mentaliza algum palavrão.
Em determinado momento, ainda quando defendia a importância dos Brics, Amorim explica que ele tem uma função geopolítica extremamente importante para os paises que o compõem. Por exemplo, não fossem os Brics, diz ele, o mundo ainda estaria mais focado no G7, que é um grupo extremamente fechado de países ricos do Norte Global. Com o Brics, o G7 precisa olhar para a China, Brasil e África do Sul, e por consequência para o G20, onde esses países tem participação.
Um dos pontos mais interessantes abordados por Amorim é a necessidade do mundo ampliar a política internacional de saúde. Ele lembra que a verba total disponibilizada pela Organização Mundial de Saúde é de pouco mais de US$ 5 bilhões, a maior parte da qual já vem com um carimbo para ser usada contra alguma doença. Isso seria um valor irrisório para as necessidades de se proteger a humanidade de novas pandemias, por exemplo.
O último embate se deu quando Baer tentou constranger Amorim por sua amizade com Sergey Lavrov, ministro de relações exteriores da Rússia, contra o qual ele faz uma insinuação incrivelmente vulgar, dizendo que ele carrega “relógios cada vez mais bonitos”.
Abaixo o trecho do diálogo, que traz o nocaute final do entrevistador. Amorim defende que o mundo precisa de um Kissinger, referindo-se ao mais longevo diplomata americano. Mas não o Henry Kissinger do golpe no Chile, naturalmente, mas aquele famoso por seu pragmatismo, visto como fundamental para evitar um confronto entre EUA e União Soviética, e reestabelecer as relações políticas e comerciais entre EUA e China. Após mais uma intervenção grosseira de Baer, quase adolescente, onde ele fala uma coisa realmente idiota, que os que não gostam de obecer às leis costumam apelar para a história, Amorim rebate com uma citação de Pascal, o filósofo francês que destruiu o castelo de prepotência, arrogância, e violência moral, que caracteriza a Inquisição Católica e o sistema de justiça da idade média.
Ah, Baer faz ainda outra grosseria incompreensível, ao dizer quer “suspeita de pessoas que ´respondem por um lado e por outro´ para tudo”. Claro que suspeita: o pensamento atlantista, representado por Baer e pela Carnegie, é essencialmente dogmático e fundamentalista. Só há uma verdade. Aquela que emana dos documentos de thinks tanks como a Carnegie, naturalmente após serem aprovados por todas as fundações e corporações bilionários que aparecem nas intermináveis listas de doadores.
No final da resposta, Amorim ainda rebate, com elegância, o comentário infame de Baer sobre os “relógios” do ministro russo, ao dizer que Lavrov”é uma boa pessoa”. A lividez de Baer diante dos elogios a Lavrov é impagável.
Confira o trecho:
Dan Baer: “Os Estados Unidos e o Brasil obviamente tiveram discussões privadas e públicas sobre a posição do Brasil em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia. Sei que você tem uma longa amizade pessoal com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov.”
Celso Amorim: “Tenho uma longa amizade com Bill Burns [ex-embaixador dos EUA na Rússia] também, então não posso negar isso.”
Dan Baer: “Deixe-me confessar que sou profundamente suspeito de pessoas que respondem ‘por um lado e por outro’ para tudo, mas também gosto muito de Bill Burns e trabalhei com Sergey Lavrov”.
Celso Amorim: “Como deveria ser.”
Dan Baer: “Quando você pensa nos interesses do Brasil na lei internacional, entendendo suas críticas aos Estados Unidos e à Rússia, o que você acha que o Brasil precisa fazer para garantir seus interesses na manutenção da lei internacional? Isso requer mais liderança política do Brasil no cenário global, sendo um porta-voz disso?”
Celso Amorim: “Sim, claro, houve uma violação da lei internacional por parte dos russos ao invadir a Ucrânia, não tenho dúvida disso e já disse isso várias vezes. Mas uma coisa é condenar um país, talvez mesmo que seja da maneira certa. Quero dizer, você não pode impor sanções da maneira que é feita pela Europa ou pelos Estados Unidos. Teria que ser o Conselho de Segurança o único órgão que pode fazer isso. Se você me disser que o Conselho de Segurança não faz isso, reforme-o, mas não use nenhum subterfúgio. Mas, por outro lado, se você quiser encontrar uma solução, às vezes tem que ser um pouco pragmático. Outro dia, eu estava dizendo, ele foi muito criticado na América Latina por causa do que aconteceu no Chile e em outros países, Kissinger. Mas acho que o mundo precisa de um Kissinger hoje em dia, alguém que seja capaz de olhar para as coisas de uma maneira mais pragmática. Você não pode destruir a Rússia e nosso objetivo não é destruir. O que você está fazendo está indo nessa direção. Isso nunca aconteceu, só reforça a posição deles contra a pobre Ucrânia, que está sendo esmagada entre a prepotência moral do Ocidente e, se você quiser chamar de brutalidade ou seja lá o que for, dos russos. Acho que você precisa de pessoas que possam falar com ambos os países. Tenho falado sobre a Ucrânia muitas vezes com Jake Sullivan e outros, não concordamos, mas falei muitas vezes. Fui à Rússia também para falar com eles, fui à França, fui à Alemanha, temos que encontrar uma maneira que seja pragmática. Não sei exatamente qual é a solução, não vou pregar a solução, mas deve haver um ponto em que ambos os lados estejam cansados e tenham que chegar a uma conclusão, e é isso que temos que fazer. Você tem que ter pessoas que possam de alguma forma estar no meio do caminho e tentar ajudá-los. Não sei exatamente qual é a solução, não quero pregar nenhuma solução, mas há. Se você entrar na história, é muito complicado, muito complicado, porque a história antes era uma coisa, antes disso era outra coisa, antes disso era outra coisa.”
Dan Baer: “As pessoas que não obedecem à lei gostam de falar sobre a história em vez disso.”
Celso Amorim: “Sim, mas você sabe, há um ditado de Pascal, Blaise Pascal, o francês, que disse que, não sendo capaz de fazer o que é justo ser forte, é preciso fazer o forte ser justo. Então, é mais ou menos o que acontece. Quero dizer, você tem que encontrar uma solução que possa ser aceita por ambos os lados. Não quero entrar nos méritos porque é muito longo. Claro, o que os russos dizem é que, se a Ucrânia entrar na OTAN, estará a 300 quilômetros de Moscou e isso é algo que eles não podem suportar e não podem aceitar, e assim por diante. Então, não sei, mas acho que você tem que lidar com ambos. Não pode ignorá-los e não pode pensar que vai derrotá-los, porque, como disse muito claramente no início da guerra, algumas pessoas muito importantes, não estou exagerando, disseram que temos que destruir a Rússia. Lembro-me disso, não estou inventando, e sabe o que vem a seguir? O que vem depois? Não quero mencionar, Tchetchênia, Daguestão, todos se tornando países independentes, e se eles se tornarem, se tornarão focos de um novo tipo de al-Qaeda. O que você vai fazer? Acho que você tem que realmente ver as coisas de uma maneira mais realista.”
Dan Baer: “Então, vou fazer uma última pergunta antes de passar para o público, que é uma pergunta pessoal. Tino mencionou o fato de que você é o ministro das Relações Exteriores do Brasil que mais tempo serviu, quando somamos seu tempo como ministro das Relações Exteriores. Sergey Lavrov é o ministro das Relações Exteriores da Rússia há 20 anos e, pela minha observação, não pela sua, ele tem conseguido relógios cada vez mais bonitos em seu pulso ao longo desses 20 anos, mas cada vez mais distante de realmente fazer política externa. E me pergunto se você acha que ele alguma vez se cansa, em privado, de se tornar cada vez mais um vendedor de políticas. Ele é um diplomata talentoso, como deveria ser depois de 20 anos, mas você acha que, como amigo dele, ele se cansa de ser um vendedor de políticas em vez de um criador de políticas?”
Celso Amorim: “Você está exagerando nossa amizade, de qualquer forma, passamos anos sem nos ver. Conheço Lavrov há muito tempo, assim como conheço outras pessoas há muito tempo. Acho que ele tem uma grande capacidade de adaptação, o que é certamente verdade. Outros também têm. Quando falamos dos grandes diplomatas do mundo, lembre-se de que Talleyrand serviu ao reino francês, à Revolução Francesa e ao Napoleão. Uma coisa é ser um grande diplomata, outra coisa é concordar com suas ideias. Na época em que lidei intimamente com Lavrov, foi a época em que os EUA estavam preparando a invasão do Iraque e ambos tínhamos a mesma posição, assim como os franceses, De Villepin também no Conselho de Segurança. De Villepin, que foi provavelmente um dos meus melhores professores em termos de diplomacia multilateral. Então, não precisamos concordar com uma pessoa o tempo todo, quero dizer, discordamos. Uma vez, Lavrov veio até mim, anos atrás, e disse: ‘Oh, o Brasil é o único país que ainda não aceitou as condições russas para se tornar membro da OMC’. E eu disse: ‘O que você acharia se eu dissesse que a Rússia é o único país na Europa Oriental que ainda não aceitou o Brasil?’ É um padrão completamente errado. Então, não concordo com ele sempre, mas ele é um grande diplomata e uma boa pessoa.”
***
Resumindo: no dia 18 de julho de 2024, Celso Amorim aceitou participar de uma conversa sobre geopolítica com o pessoal da Carnegie Endowment for International Peace, um think tank de Washington.
O evento foi apresentado pelo presidente da instituição, Mariano-Florentino Cuéllar, mais conhecido apenas como Tino, e o encarregado de fazer perguntas e interagir com Amorim foi Dan Baer, um dos diretores da entidade.
O video está aqui. Eu preparei uma transcrição em português de toda a fala de Amorim, que pode ser acessada aqui.
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