Vitória da esquerda na França: uma conquista amarga

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“Devagar com o andor que o santo é de barro” é a expressão popular que melhor descreve o cenário pós-eleição na França. É fato que a virada sobre a extrema-direita de Marine Le Pen foi histórica e deve ser celebrada. As projeções feitas ao final do primeiro turno, no dia 30 de junho, pintavam um quadro assustador, mas a maré virou e a França respirou aliviada.

A possibilidade de uma vitória acachapante do Reagrupamento Nacional (RN) fomentava os rumores de uma nova onda conservadora, racista e xenófoba na Europa. Por pouco a França deixou de ser governada por uma legenda extremista pela primeira vez desde a ocupação nazista na II Guerra Mundial.

Antes de celebrar, porém, é preciso entender o que levou a coligação de partidos de esquerda, a Nova Frente Popular (NFP), a agrupar-se para derrotar a nova face do fascismo francês. Sem dúvida, o envolvimento dos jogadores negros da seleção francesa de futebol teve um peso importante sobre o pleito.

Liderados pelo atacante Kylian Mbappé, os atletas fizeram uma campanha nas redes sociais contra o voto no partido de Marine Le Pen.

Com isso, a França registrou recorde de participação nas eleições legislativas, com o comparecimento às urnas mais alto desde 1981, numa demonstração de que a democracia ainda pulsa forte no coração dos franceses.

Além disso, a esquerda francesa compreendeu a importância de uma frente única contra o extremismo. Ao focar em candidaturas com chances reais de vitória em um acordo multipartidário, mais de 200 candidatos de centro e de esquerda se retiraram da disputa para concentrar votos nos mais bem colocados.

Até mesmo o presidente Emannuel Macron, massacrado no primeiro turno, lucrou com a estratégia e obteve um resultado sensivelmente melhor no primeiro turno, principalmente porque a esquerda deixou de concorrer em vários distritos, possibilitando que o seu partido de centro fosse o segundo mais votado no pleito.

Isso, porém, não apaga o descontentamento generalizado com o governo Macron e o seu modelo neoliberal, que causou profundas cicatrizes na segunda maior democracia da Europa e conduziu a sociedade a um processo de cisão social.

Em um anúncio vibrante na Praça da República lotada, Jean-Luc Mélenchon, da Nova Frente Popular, fez promessas de investimentos em setores negligenciados pelo governo, como educação, cultura e saúde. O meio ambiente também ganhou uma agenda forte, assim como as políticas sobre imigração, tema que tem dividido a França nas últimas décadas.

Haverá redução da tarifa de transporte público, reforma no imposto de renda, reversão do aumento da idade de aposentadoria, aumento do salário mínimo, reconhecimento do Estado da Palestina e planos para reduzir o antissemitismo e a islamofobia.

As boas promessas, contudo, esbarram na conjuntura. Macron governará ao lado de um primeiro-ministro que se opõe a seus projetos ultraliberais, o que pode resultar em impasses parlamentares e, possivelmente, uma nova dissolução do parlamento.

A extrema-direita foi derrotada, mas está longe de ser vencida. Há uma divisão na sociedade francesa e o RN continua a angariar apoio popular, principalmente enquanto a França enfrenta índices altos de inflação, desindustrialização e desemprego.

No parlamento francês, composto por 577 deputados, a maioria absoluta depende de 289 cadeiras. Segundo as projeções, nenhum dos blocos políticos alcançou este número. Assim, os próximos dias serão de intensas negociações. É uma vitória, mas com gosto amargo.

O cenário político continuará dividido, polarizado, radicalizado e violento nos próximos anos na França, na Europa e no mundo. As semelhanças com a Alemanha de 1930 estão cada vez maiores e não podem ser negligenciadas. Já dizia o povo: “Devagar com o andor que o santo é de barro”.

Edson Santos é vereador pelo PT do Rio de Janeiro

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