Entrevista exclusiva com Aline Burni, doutora em ciência política e pesquisadora do Observatório da Extrema Direita.
“As instituições terão que trabalhar bastante e se manter vigilantes”, diz Aline Burni, doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora do Observatório da Extrema Direita (ODE), ao comentar sobre o avanço do Rassemblement National (RN), liderado por Marine Le Pen, que conquistou 33% dos votos nas eleições legislativas na França. Esse resultado histórico reflete a estratégia de longa data de desdiabolização e normalização do partido, tornando-o uma força política significativa.
Burni analisou o acordo entre o bloco de esquerda e o campo de Emmanuel Macron, indicando que, apesar de frágil, é essencial para barrar o avanço da extrema-direita. O acordo consiste na retirada de candidatos em situações onde a união contra o RN é necessária, mas a falta de clareza e consenso completo pode limitar sua eficácia.
Além disso, Burni destacou os maiores temores do campo progressista diante de um possível governo Le Pen, como a influência da Rússia e a possibilidade de direitos desiguais para diferentes categorias de cidadãos, especialmente imigrantes e minorias. Segundo ela, a normalização de medidas extremistas representa um risco significativo para a democracia francesa, que pode se deteriorar gradualmente dentro das próprias instituições.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
O Cafezinho: Como você avalia o resultado das eleições de domingo?
Aline Burni: Foi um resultado excepcional para o partido da direita radical, liderado por Marine Le Pen, o Rassemblement National, que pela primeira vez chegou em primeiro nas eleições legislativas (com 33%) – um tipo de eleição que dificulta o desempenho de partidos mais extremos e ‘anti-sistema’ -, em um contexto de alta participação eleitoral. O RN já elegeu 39 candidatos no primeiro turno e tem chances reais, pela primeira vez, de obter uma maioria absoluta na Assembleia Nacional e indicar o Primeiro Ministro, formando um governo de coabitação com Emmanuel Macron. Na minha visão, ainda que o campo de Macron tenha resistido com 20% e mobilizado um pouco mais do que nas Eleições para o Parlamento Europeu há 3 semanas, foi uma grande derrota do presidente, devido à responsabilidade imensa e direta que ele tem nessa aproximação da direita radical às portas do poder. Macron assumiu uma aposta arriscada ao convocar as eleições antecipadas. Entretanto, é importante enfatizar que o crescimento da direita radical na França é um projeto iniciado por Marine Le Pen há mais de 15 anos, através de uma estratégia de ‘desdiabolização’, ‘normalização’ e ‘profissionalização’ do partido. O RN conseguiu se implantar nos territórios mais remotos da França, assim como nas redes sociais, criando um exército de apoiadores, quadros e influenciadores que permite o partido ser visto como uma alternativa credível para assumir o poder hoje.
O Cafezinho: Esse acordo entre Mélenchon e Macron será suficiente para barrar o avanço da extrema-direita (Rassemblement)?
Aline Burni: O acordo não está claro e já nasce frágil, pois de um lado o bloco da esquerda, a Nova Frente Popular, indicou que irá retirar seus candidatos das chamadas ‘triangulares’ (disputas em segundo turno entre três candidatos) quando este tiver chegado em terceiro lugar, deixando espaço para o candidato da lista de Macron tentar vencer a direita radical. Os sinais do campo macronista foram ambíguos, com algumas personalidades propondo o mesmo – retirar o candidato macronista quando este não tiver chances de vencer a direita radical -, mas outros defendem que isso seja feito apenas no caso de candidatos da esquerda que compartilhem dos valores ‘republicanos’ – ou seja, seria caso a caso. Alguns macronistas convocam a oposição tanto em relação à direita radical quanto ao bloco de esquerda quando representado por candidato do LFI (La France Insoumise), tratando os dois extremos como equivalentes. Precisamos aguardar as decisões de retirada de candidatura ao decorrer dessa semana, mas na minha leitura parece que a forma mais eficaz de conter o RN e dificultar / impedir que ele consiga uma maioria absoluta na Assembleia Nacional é de fato que Macron e o bloco de esquerda cheguem a um acordo e consigam apresentar apenas uma candidatura diante do RN. Ou seja, o acordo não será o suficiente, mas me parece a única forma possível de conter o RN.
O Cafezinho: Caso não seja e o Rassemblement consiga votos suficientes para entrar no governo e reivindicar ministérios importantes, você acha que a sociedade civil francesa (universidades, mídia, intelectuais, instituições, etc.) terá força para conter medidas mais agressivas ou extremistas? Aliás, quais são os temores maiores que o campo progressista tem em relação a um possível governo Le Pen?
Aline Burni: Muitos setores da sociedade francesa já estão radicalizados e aderem ao RN de um lado, ou aos grupos mais radicais da esquerda de outro. Assim como vivido em outros países (Brasil, Estados Unidos, etc.), a sociedade francesa está bastante polarizada. A democracia francesa é muito forte e as instituições são sólidas. O fato de a França fazer parte da União Europeia também é um fator que contém a margem de manobra para eventuais mudanças drásticas por parte da direita radical. Então, eu acho que o sistema tem condições de conter determinadas medidas extremistas, mas as instituições terão que trabalhar bastante e se manter vigilantes. A verdadeira questão é que muitas medidas do RN hoje são tidas como ‘normalizadas’ e vistas como ‘atenuadas’, não são mais vistas como anti-democráticas ou extremas – e este é o verdadeiro problema, pois a degradação da democracia pode acabar acontecendo de forma gradual e ‘por dentro’ das próprias instituições – do parlamento, da burocracia, etc. Acho que dois dos maiores temores dos progressistas em relação ao RN são a influência da Rússia em um governo Bardella / Le Pen, tendo em vista que o RN é um partido com alegadas conexões com o regime de Putin e que coloca em questionamento o continuado apoio à Ucrânia na guerra. O outro temor diz respeito a direitos desiguais para ‘categorias diferentes de cidadãos’, ou seja, um temor em relação a direitos diminuídos de imigrantes, franceses bi-nacionais e minorias em geral. Há um temor que a direita radical coloque em prática uma categorização dos cidadãos de acordo com quem é ‘mais francês ou menos francês’ e conceda direitos e serviços públicos de maneira desigual e injusta em função dessa distinção.