Liderados por um general que prometeu “restaurar a democracia”, veículos blindados cercaram o palácio do governo da Bolívia na quarta-feira, em uma ação que o presidente chamou de tentativa de golpe, e depois recuaram rapidamente – a mais recente crise no país sul-americano, que enfrenta uma batalha política e uma crise econômica.
Em poucas horas, a nação de 12 milhões de habitantes assistiu a um cenário em rápida evolução, no qual as tropas pareciam assumir o controle do governo do Presidente Luis Arce. Ele prometeu permanecer firme e nomeou um novo comandante do exército, que imediatamente ordenou a retirada das tropas.
Logo, os soldados recuaram, junto com uma fila de veículos militares, encerrando a rebelião depois de apenas três horas. Centenas de apoiadores de Arce correram para a praça em frente ao palácio, agitando bandeiras bolivianas, cantando o hino nacional e aplaudindo.
A retirada dos soldados foi seguida pela prisão do chefe do Exército, general Juan José Zúñiga, depois que o procurador-geral abriu uma investigação.
O ministro do Governo, Eduardo del Castillo, disse que, além de Zúñiga, o ex-vice-almirante da Marinha Juan Arnez Salvador também foi detido.
“Qual era o objetivo deste grupo? O objetivo era derrubar a autoridade eleita democraticamente”, disse del Castillo aos jornalistas ao anunciar as prisões.
Na noite de quarta-feira, o ministro da Defesa, Edmundo Novillo, afirmou que “tudo está agora sob controle”. Cercado pelos novos chefes militares nomeados por Arce, Novillo disse que a Bolívia viveu um “golpe fracassado”.
A aparente tentativa de golpe ocorreu num momento em que o país enfrenta meses de tensões e lutas políticas entre Arce e seu antigo aliado, o ex-presidente de esquerda Evo Morales, pelo controle do partido no poder. Além disso, a situação se desenvolveu em meio a uma grave crise econômica.
Os confrontos paralisaram os esforços do governo para lidar com a crise econômica. Por exemplo, os aliados de Morales no Congresso têm consistentemente frustrado as tentativas de Arce de contrair dívidas para aliviar parte da pressão.
Zúñiga referiu-se a essa paralisia durante a rebelião, dizendo aos jornalistas que os militares estavam cansados das lutas internas e procuravam “restaurar a democracia”.
“Estamos ouvindo o grito do povo porque, durante muitos anos, uma elite tomou o controle do país”, disse, acrescentando que os políticos estão “destruindo o país: vejam em que situação estamos, que crise nos deixaram”.
“As forças armadas pretendem restaurar a democracia, torná-la uma verdadeira democracia”, afirmou ele.
A crise, que se desenrolava rapidamente, começou no início da tarde, quando as ruas de La Paz começaram a se encher de soldados. Arce tuitou que o envio de tropas foi irregular e, logo depois, ele e outras figuras políticas alertaram sobre uma tentativa de golpe.
Líderes bolivianos temem tentativa de golpe
O presidente da Bolívia alertou na quarta-feira que tropas estavam se movimentando pela capital, levantando preocupações de que um golpe estava em andamento.
Ainda assim, a aparente tentativa de depor o presidente em exercício parecia carecer de qualquer apoio significativo, e até os rivais de Arce cerraram fileiras para defender a democracia e repudiar a revolta.
Numa reviravolta, Zúñiga afirmou em comentários aos jornalistas antes da sua prisão que o próprio Arce disse ao general para invadir o palácio numa medida política. “O presidente me disse: ‘A situação está muito complicada, muito crítica. É necessário preparar algo para aumentar minha popularidade’”, disse Zúñiga, citando o líder boliviano.
Zúñiga disse que perguntou a Arce se ele deveria “retirar os veículos blindados” e Arce respondeu: “Tire-os”.
O Ministro da Justiça, Iván Lima, negou as alegações de Zúñiga, dizendo que o general estava mentindo e tentando justificar suas ações, pelas quais enfrentará a justiça.
Os promotores buscarão a pena máxima de 15 a 20 anos de prisão para Zúñiga, disse Lima por meio da plataforma de mídia social X, “por ter atacado a democracia e a Constituição”.
O espetáculo chocou os bolivianos, que não são estranhos à agitação política; em 2019, Morales foi destituído do cargo de presidente após uma crise política anterior.
À medida que a crise se desenrolava na quarta-feira, Arce confrontou Zúñiga no corredor do palácio, conforme mostrado em vídeo na televisão boliviana. “Eu sou seu capitão e ordeno que retire seus soldados e não permitirei essa insubordinação”, disse Arce.
Cercado de ministros, acrescentou: “Aqui estamos, firmes em Casa Grande, para enfrentar qualquer tentativa de golpe. Precisamos que o povo boliviano se organize.”
Menos de uma hora depois, Arce anunciou novos chefes do Exército, da Marinha e da Força Aérea em meio ao clamor dos apoiadores e agradeceu à polícia do país e aos aliados regionais por apoiá-lo. Arce disse que as tropas que se levantaram contra ele estavam “manchando o uniforme” dos militares.
“Ordeno a todos os mobilizados que retornem às suas unidades”, disse o recém-nomeado chefe do Exército, José Wilson Sánchez. “Ninguém quer as imagens que vemos nas ruas.”
Pouco depois, os veículos blindados saíram da praça, seguidos por centenas de combatentes militares, enquanto a polícia com equipamento de choque montava bloqueios em frente ao palácio do governo.
O incidente foi recebido com uma onda de indignação por outros líderes regionais, incluindo a Organização dos Estados Americanos, o presidente chileno Gabriel Boric, o líder de Honduras e ex-líderes bolivianos.
Gustavo Flores-Macías, professor de governo e políticas públicas com foco na América Latina na Universidade Cornell, disse que é importante que os líderes e organizações mundiais continuem a condenar a tentativa de golpe à medida que os acontecimentos se desenrolam.
“Se permitirmos que a interrupção da ordem constitucional aconteça na Bolívia, isso pode servir como um efeito de demonstração”, disse Flores-Macías de Nova York em uma entrevista à The Associated Press. “Isso pode enviar um sinal de que, se isso é aceitável na Bolívia, pode acontecer em outros lugares.”
A Bolívia tem assistido a protestos cada vez mais intensos nos últimos meses devido ao declínio vertiginoso da economia, que passou de uma das economias com crescimento mais rápido do continente, há duas décadas, para uma das mais afetadas pela crise.
Arce e Morales têm lutado pelo futuro do fragmentado Movimento pelo Socialismo da Bolívia, conhecido pela sigla espanhola MAS, antes das eleições de 2025.
Após o caos de quarta-feira, reportagens na mídia local mostraram bolivianos estocando alimentos e outros itens essenciais nos supermercados, preocupados com o que aconteceria a seguir.
Mas, dirigindo-se aos apoiadores fora do palácio presidencial, o vice-presidente do país, David Choquehuanca, prometeu: “Nunca mais o povo boliviano permitirá tentativas de golpe”.