Por Miguel do Rosário, editor do portal O Cafezinho
Um mundo sem dólar é possível?
Em sua última visita à China, em abril de 2023, o presidente Lula fez um discurso ousado em Xangai, na cerimônia de posse de Dilma Rousseff como nova chefe do banco dos BRICS.
Lula resumiu, na linguagem simples e profunda que é sua grande qualidade retórica, um dos desafios mais centrais do mundo contemporâneo: por que os países precisam fazer negócios em dólar? Por que não podem fazê-lo em suas próprias moedas nacionais?
Apesar da imprensa brasileira “tradicional” ter ignorado, minimizado ou manipulado solenemente a intervenção do presidente da república, ele teve um enorme impacto no Sul Global. Não por ter sido pronunciado por Lula ou por ter vindo do Brasil, mas porque esta tem sido, de facto, uma das questões econômicas mais complexas dos últimos tempos, especialmente para os países do Sul Global.
A mais recente edição da Wenhua Zongheng, “revista trimestral do pensamento chinês”, como ela se denomina, é focada exatamente nesse tema: os desafios da desdolarização.O primeiro artigo desta edição é do economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr, que já foi vice-presidente do banco dos BRICS, além de diretor indicado pelo Brasil para o FMI. Os outros textos são escritos por economistas chineses.
A revista traz quatro artigos fundamentais para entendermos a questão do dólar sob uma perspectiva rigorosamente científica. Não se assuste com o termo científico, porque os textos são escritos, apesar da sofisticação intelectual dos autores, com linguagem jornalística, ou seja, didática e acessível a todos.
O artigo de Ding Yifan analisa o tema através da pergunta do título: “O que impulsiona o debate sobre a desdolarização no BRICS?”
Assim como os outros textos, Yifan é bem direto: a questão do dólar tornou-se urgente a partir do momento em que os Estados Unidos decidiram “congelar” (eufemismo para roubar) as reservas de mais de 300 bilhões de dólares do banco central da Rússia.
No entanto, Yifan lembra que o problema não é novo. Trecho de seu artigo:
“(…) Nessa época em que o mundo está caminhando para uma ordem multipolar, a hegemonia do dólar estadunidense dificulta a cooperação internacional entre muitos países. Desde sua ‘guerra ao terror’, os Estados Unidos descobriram que, em comparação com as guerras comerciais tradicionais, é muito mais eficaz usar a hegemonia do dólar para impor sanções financeiras aos países que violam a ‘ordem baseada em regras’ liderada pelos EUA. Essa lógica foi detalhada por Juan Zarate, ex-funcionário dos EUA durante o governo de George W. Bush, em seu livro de 2013, Treasury’s War: The Unleashing of a New Era of Financial Warfare [Os tesouros da guerra: a deflagração de uma nova era de guerra financeira]. Nas últimas décadas, os EUA têm usado o dólar como uma arma para impor sanções financeiras a países que não lhes agradam.”
O livro de Zarate citado pelo articulista é uma obra-prima do cinismo imperialista americano. Decidi estudá-lo antes de escrever essa resenha e confesso que fiquei, mais uma vez, espantado com a candidez com que os americanos admitem agir sob uma filosofia absolutamente autoritária em relação a outros países.
Zarate conta que trabalhou dentro da secretaria do tesouro (equivalente ao ministério da fazenda no Brasil) e que ajudou a implementar, dentro da instituição, uma cultura de guerra. O tesouro americano deveria ser usado, sobretudo a partir da “guerra ao terror”, como uma ferramenta de subjugação de todos aqueles que se punham no caminho dos EUA para dominação total do planeta. Nem os aliados estavam à salvo, pois há trechos em que ele relata casos em que Reino Unido e França tiveram que ser “convencidos”, a custa de “pressões financeiras” a obedecerem lealmente as orientações da Casa Branca em suas políticas para o Oriente Médio.
Zarate é direto: “O dólar serve como reserva monetária global, além de moeda de troca para o comércio internacional, e Nova York permanece como o centro financeiro do capital internacional e eixo de todas as transações em dólar. Com essa concentração de poder financeiro e comercial, vem a habilidade de transformar o acesso aos mercados americanos, aos bancos americanos e aos dólares americanos em armas financeiras.”
Ou seja, o dólar americano é visto pelo governo americano como uma arma de guerra. Uma arma financeira, mas tão ou mais letal e eficiente que uma bateria de mísseis de longa distância.
Há um ponto meio cômico, no entanto, no livro de Zarate, que eu gostaria muito de trazer aos leitores.
Ao abordar os antecedentes do uso destas armas econômicas para subjugar outros países, ele resgata alguns fatos históricos famosos.
O mais antigo deles, e um dos mais célebres, lembra Zarate, é o cerco econômico que os atenienses fizeram a Megara, uma cidade grega aliada de Esparta.
Atenas vivia o auge de sua prosperidade econômica e cultural, até que… resolveu aplicar sanções econômicas a Megara. Os motivos dessa agressão são vários. O humorista ateniense Aristófanes chega a escrever que foi vingança de Péricles, porque alguém em Megara raptou uma das empregadas de Aspasia, sua esposa.
O bloqueio econômico proibiu os megarenses de acessarem portos e mercados em todo o grande Império Ateniense, o que efetivamente estrangulou a economia megarense. As sanções também teriam afetado os aliados de Megara e podem ter sido vistas como uma manobra de Atenas para enfraquecer seus rivais e estender sua influência. Megara controlava as rotas importantes entre o Peloponeso e a Ática, tornando-a crucial tanto para Atenas quanto para Esparta.
Os espartanos imediatamente enviaram diplomatas a Atenas, para implorar que as sanções fossem levantadas, explicando que elas estavam provocando graves problemas econômicos e sociais tanto em Megara como em muitas cidades gregas, especialmente aquelas sob influência de Esparta.
Atenas ignorou os apelos dos espartanos e tem início a Guerra do Peloponeso, que seria o equivalente, inclusive em número proporcional de mortos, das grandes guerras mundiais do século XX.
O resultado seria trágico especialmente para Atenas, que seria derrotada e dominada por Esparta, representando o fim do império ateniense.
Ou seja, as sanções econômicas contra Megara foram uma péssima ideia de Atenas! Zarate parece não se dar conta disso ao mencioná-las como um “exemplo”.
Ele lembra de outras sanções econômicas da história, e todas são igualmente desastrosas. Em nenhum momento, Zarate reconhece esse fato: de que sanções econômicas, em qualquer época, costumam explodir contra quem as aplica.
O Tratado de Versalhes, por exemplo, também citado por Zarate, promovia um terrível cerco econômico contra a Alemanha. O primeiro livro de Keynes, As Consequências Econômicas da Paz, trazia um poderoso alerta contra a estupidez inerente a esse tipo de agressão econômica. Apesar de ter sido um sucesso de público e crítica na Europa, os governos que haviam vencido a Primeira Grande Guerra ignoraram Keynes. Em suas brilhantes memórias sobre a guerra, Winston Churchill faz igualmente uma crítica devastadora ao que ele chama de “loucura dos vencedores”, mencionando sanções econômicas inventadas por políticos populistas e burocratas insensíveis, que ignoravam a complexidade das relações econômicas da época. As sanções contra a Alemanha não enfraqueceram o país. Ao contrário, transformaram-na na maior potência militar da época, mas fragilizaram sua democracia e criaram as condições para a emergência do nazismo.
Repito, todos os exemplos de sanções econômicas citados por Zarate resultaram em desastre para quem as tinha aplicado.
O mais recente exemplo confirma a regra. As sanções econômicas que os EUA e seus vassalos europeus aplicaram contra a Rússia, a partir do início da guerra na Ucrânia, resultaram em crise econômica na própria Europa, ao passo que aceleraram o desenvolvimento da Rússia.
Entretanto, a consequência mais visível da obsessão americana em sancionar metade do planeta é o aumento da vontade, por parte sobretudo dos países do Sul Global, os mais prejudicados por estas sanções, e os mais vulneráveis a esse tipo de ameaça financeira, de se livrarem dessa chantagem insuportável.
Chegamos num momento da história, portanto, em que as ameaças dos Estados Unidos aos países, de que serão sancionados se não obedecerem aos éditos imperiais, e usando sempre a hegemonia do dólar como uma arma financeira realmente perigosa e eficaz, têm como resultado, ironicamente, o enfraquecimento do dólar, e a proliferação de debates, estudos e exercícios de como inaugurar uma verdadeira ordem financeira multipolar, em que os países possam participar do comércio internacional e estabelecer suas reservas usando como referência um pool de moedas, e não mais apenas uma moeda específica de um só país.
Os artigos da Wenhua Zongheng denunciam a contradição cada vez mais aguda entre um comércio internacional cada vez mais pujante, variado e ágil, e a dependência de uma moeda vinculada a um país com déficits em conta corrente cada vez maiores, e ainda assim um país mais e mais agressivo e egoísta no uso militar dessa moeda.
Os chineses já iniciaram um processo de distanciamento do dólar. Parte crescente do comércio internacional da China é feito em renminbi. A Rússia foi obrigada, pela própria truculência financeira americana, a fazer mudanças bruscas em suas trocas com o mundo, e hoje negocia a maior parte de seu produto em rublos, renminbi ou moedas locais. A Índia também tem aumentado dramaticamente o uso de sua própria moeda, a rúpia, em suas trocas com outros países.
Entretanto, os países menores têm muito mais dificuldade de usar suas próprias moedas, e isso os deixa muito vulneráveis a ataques especulativos, flutuações cambiais nas bolsas, e sobretudo às truculências e ameaças oriundas dos EUA. Uma pequena nação que deseja negociar com a China ou a Rússia terá, frequentemente, que avaliar as consequências geopolíticas dessa transação.
O Brasil também sofre terrivelmente as consequências da hegemonia do dólar, pois a nossa riqueza nacional é precificada, muitas vezes, antes por especuladores em Nova York do que pelo custo de produção em nosso território. Os preços da nossa soja, da nossa carne, do nosso café, do nosso petróleo, ficam expostos às intempéries financeiras de uma nação com déficit fiscal que cresce 1 trilhão de dólares a cada 100 dias. Não é possível que uma população com mais de 200 milhões de habitantes continue exposta a esse tipo de risco.
Em outubro, haverá um encontro dos BRICS em Kazan, na Rússia, e o tema da desdolarização já foi anunciado como prioridade. Em 2025, o Brasil assume a presidência dos BRICS, e caberá, portanto, aos economistas e jornalistas econômicos brasileiros aumentar sua participação nesse debate. Como grande exportador e importador, tendo obtido uma corrente de comércio de quase US$ 600 bilhões em dois anos seguidos, 2022 e 2023, e que deve se repetir este ano, o Brasil se tornou um dos principais players do comércio internacional. A questão cambial, por isso mesmo, tornou-se absolutamente estratégica para a nossa estabilidade econômica, social e política. Para o Brasil, o dólar também se tornou um estorvo e um perigo, o que foi agravado pelo fato de que nossos principais parceiros comerciais hoje estão no Sul Global, ou seja, são justamente aqueles mais agredidos pelas guerras financeiras promovidas pelos EUA através da manipulação descarada do dólar.
A desdolarização do mundo tornou-se, portanto, uma das principais bandeiras da independência geopolítica do Sul Global e do Brasil!
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Links importantes:
Você pode baixar a íntegra da Wenhua Zongheng e das edições anteriores aqui.]
A propósito, eu conheço um dos editores dessa revista, o pesquisador carioca Marco Fernandes, o qual tenho entrevistado regularmente para o Jornal da Forum, programa que ancoro no canal da TV Forum no YouTube. Nossa última conversa pode ser assistida aqui.
Discurso do presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva na cerimônia de posse da presidenta do novo banco de desenvolvimento.
Bibliografia:
– Treasury’s War*, por Juan C. Zarate
– The Economic Weapon*, por Nicholas Mulder