Autoras:
Giulia Gouveia – Doutoranda PPGCS/UFRRJ
Mayra Goulart – Professora DCP/UFRJ e PPGCS/UFRRJ
1. A conjuntura política em torno do debate sobre o aborto
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12), sem o registro de votantes, o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, proposto no dia 17 de maio pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares. Este projeto de lei equipara o aborto de uma gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio. Com a urgência aprovada, o projeto poderá ser votado diretamente no Plenário, sem a necessidade de passar previamente pelas comissões da Câmara.
Ele é o resultado de uma investida do campo autodenominado conservador, porém melhor denominado como reacionário, uma vez que se apresenta nos cenários nacionais e internacionais sob a bandeira de restaurar os pilares da sociedade tradicional, baseada na família patriarcal. Neste sentido, é crucial destacar que, também no dia 17 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que impede o uso de uma técnica médica (assistolia fetal) para interromper gestações de mais de 22 semanas resultantes de estupro. A decisão provisória foi concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1141).
No sistema patriarcal no qual estamos ainda inseridos, os corpos situados na base da pirâmide são frequentemente selecionados para serem sacrificados em nome de projetos de poder que não lhes pertencem. Este sistema perpetua desigualdades ao impor sacrifícios desproporcionais sobre cidadãos que carregam em seu ser os marcadores sociais da diferença, cujas necessidades e direitos são frequentemente ignorados. Ao concentrar o poder e os privilégios nas mãos de poucos homens, o patriarcado mantém estruturas de opressão que exploram e marginalizam aqueles que se encontram nas posições mais vulneráveis, utilizando-os como instrumentos para a manutenção de uma ordem social que perpetua a desigualdade de gênero. Como explica Carole Pateman (1988, p. 197), o mercado capitalista e as instituições políticas estruturaram-se sob a lógica patriarcal, promovendo uma segregação às mulheres e preservando esses locais como “arenas da solidariedade fraterna” entre homens.
O projeto de poder em questão envolve uma série de estratégias políticas calculadas para consolidar influência e testar limites. O avanço de iniciativas demandadas por bolsonaristas na Câmara tem sido interpretado por alguns como uma estratégia de Arthur Lira (PP-AL) para garantir o apoio do PL, que conta com 95 deputados, e fortalecer a escolha de seu sucessor na liderança da Câmara. Em vista disso, é possível entender que Lira está demonstrando seu poder e capacidade de controlar os rumos da Casa, mesmo sem o apoio do governo e do PT.
Além disso, essa ação também visa testar a posição do Presidente Lula sobre um possível veto ao projeto. Ao avançar rapidamente com uma proposta controversa, os proponentes buscam forçar o Presidente a se posicionar, o que pode ter implicações significativas para sua base de apoio e para a opinião pública. É importante destacar que o Palácio do Planalto tem enfrentado semanas consecutivas de derrotas em votações ideológicas que favorecem agendas bolsonaristas.
Neste contexto, Villazzón (2014) infere que atores religiosos, especialmente protestantes, mas também católicos, atuam em prol da defesa das pautas morais como uma reação aos avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Machado (2015) argumenta, neste sentido, que a política pode ser utilizada como instrumento pelos atores que mobilizam o cristianismo para realizar essa performance através de duas frentes: a) defesa da família tradicional (patriarcal e heterossexual), em contraposição aos direitos LGBTQIAPN+ e à tentativa de transformação das relações de gênero; b) defesa da vida, fortalecendo os discursos antiaborto.
Luna e Owsiany (2019, p. 1) explicam que no Poder Legislativo “o debate sobre aborto ocorre em termos de disputas por reivindicações de direitos e no reconhecimento ou não de entes como sujeitos”. Contudo, como afirmado por Judith Butler (2017), parte do problema da vida política contemporânea é que nem todo mundo conta como sujeito. A criminalização do aborto, e a tentativa de deslegitimar mesmo as exceções legais, é aqui analisada como uma forma de impedir que as mulheres exerçam plena autonomia sobre seus corpos (Biroli, 2014), reduzindo-as a instrumento de suporte para o desenvolvimento do feto, considerado e afirmado como pessoa (Luna; Owsiany, 2019). Isto é, o Estado, apoiado por segmentos da sociedade e grupos religiosos, coloca-se como detentor de certo controle e autoridade sobre a mulher.
Frente a isso, a estratégia do campo progressista tem se dividido em duas abordagens distintas. Fora do governo, a esquerda tenta impor sua própria versão e linguagem, centrada em direitos reprodutivos, direitos das minorias e questionamento da biologia, sem diálogo ou escuta, resultando em uma arrogância moral. Essa abordagem se mostra ineficaz entre os pobres, para quem a linguagem de direitos não ressoa, levando à baixa efetividade dessa estratégia. No governo, a esquerda evita disputas culturais e foca exclusivamente na temática econômica, o que tem produzido resultados insatisfatórios e queda de popularidade. Essa situação é comparável ao campo da segurança pública, onde tanto a falta de uma abordagem abrangente quanto a ausência de uma narrativa inclusiva resultam em desempenho fraco e perda de apoio popular.
2. Tendências e prognósticos no contexto político brasileiro
Considerando essa conjuntura, Mattos e Paradis (2014, p. 108) afirmaram que “as nossas históricas forças conservadoras (especialmente as religiosas e políticas)” já haviam identificado que essas iniciativas estavam transformando as relações entre Estado brasileiro e sociedade civil. As autoras acertaram: mesmo com a reeleição de Dilma em 2014, o governo petista perdia força em parte da sociedade civil, nos setores da burguesia e, especialmente, no campo político. Dessa maneira, em agosto de 2016, nossa primeira Presidenta foi impeachmada. Em 2018, como ápice de um processo de reconfiguração de forças na sociedade civil que deu vazão aos sentimentos e grupos conservadores, Jair Bolsonaro chegou à presidência. Em 2022, a extrema-direita é derrotada na disputa presidencial em uma eleição apertada. Não obstante a isso, quando se trata do campo legislativo nacional, não é possível dizer que houve uma derrota: o Congresso Nacional permanece dominado por partidos da direita e da extrema-direita. Também, tanto o Senado Federal quanto a Câmara dos Deputados, continua a ser presidido por seus expoentes.
Diante desse panorama, torna-se evidente a essência segregatória da democracia brasileira (Sacchet, 2012), uma vez que a agenda parlamentar encontra-se submetida a conservadores que integram uma elite política hegemônica em termos de classe social, raça e gênero. Essa hegemonia reflete-se até mesmo na disparidade de aprovação de proposições legislativas pelos parlamentares: no ano de 2020, as aprovações de proposições apresentadas por homens superaram em 31% as apresentadas por mulheres (Mello, 2022). Em 2022, a disparidade de gênero nas aprovações ultrapassou os 100%, em favor dos parlamentares homens.
Observar o que está implícito nas reivindicações políticas e, sobretudo, na forma como estas são recebidas, demonstra como as instituições reproduzem hierarquias presentes na sociedade, privilegiando alguns grupos em detrimento de outros (Lombardo; Meier, 2019). Mais do que isso, até mesmo prerrogativas consideradas legítimas pelo Estado, são colocadas em xeque em prol de projetos de poder, como observado no caso do projeto de lei 1904/2024. Sobretudo quando consideramos o contexto brasileiro, no qual as relações de gênero são regidas pela divisão sexual do trabalho e “as hierarquias e o grau de liberdade dos indivíduos na esfera privada têm impacto direto sobre sua vida na esfera pública” (Biroli, 2014, p. 77). Logo, o Estado permanece a plena autonomia dos corpos femininos.
Em conclusão, o Supremo Tribunal Federal se apresenta como o último bastião diante de uma maioria conservadora, atuando como um poder contramajoritário, similar ao papel desempenhado por forças resistentes durante a Segunda Guerra Mundial – quando as constituições passaram a materializar a esperança de que um diploma jurídico assegurasse a todos uma vida digna, pacífica e livre. Em contraste, o parlamento se mostra vulnerável a maiorias iliberais, com o uso de expedientes como o requerimento de urgência reforçando o enfraquecimento do modelo liberal, onde o parlamento deveria ser o locus dos processos de formação de consenso. Esse problema é agravado pelo fato de que muitos parlamentares concentram-se mais em alimentar suas próprias redes sociais, visando aumentar seu poderio de influência virtual, do que em legislar em benefício do público. Assim, as iniciativas no parlamento refletem mais projetos de poder individualizados e desvinculados da ideia de bem comum, comprometendo a integridade do processo democrático.
As reações de diferentes personalidades públicas e da sociedade, em manifestações realizadas em diferentes cidades do Brasil, podem ser o início de um processo importante, já inaugurado com o rechaço massivo à PEC 3/2022, relatada pelo Senador Flávio Bolsonaro, que visava privatizar as praias. Nele, a sociedade parece ter começado a desenhar os limites do que seria aceitável em relação ao avanço do conservadorismo. Para além dos campos progressistas, nesses eventos, houve uma reação de integrantes do próprio campo conservador, a despeito do silêncio e mesmo do posicionamento defensivo de suas lideranças. Ao campo progressista, cabe investir nesse desencontro entre as manifestações de lideranças que falam em nome dos evangélicos mas que na maioria das vezes não expressam os reais interesses de pessoas que são evangélicas, mas também são pessoas negras, são mães e definem suas preferências políticas a partir desses vários marcadores sociais.
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