Por Jacqueline Muniz – DSP/UFF
Passei esses últimos dias pensando qual seria o ganho de Ronnie Lessa com a divulgação no Fantástico, da TV Globo, de trechos da sua “delação premiada” sobre o assassinato brutal de Marielle e Anderson em 2018? Bem, ele já era uma conhecida celebridade do mundo político-bandido do Rio. Qual teria sido a real serventia para o ex-caveira matador, um profissional reputado da governança política-criminal do Rio, se deixar exibir objetivo e tranquilo no Fantástico, diante da suposta conclusão do trabalho investigativo da PF? Tenho algumas inquietações motivadas pelo reforço insistente de versões e enredos repetidos, com uma retórica calculada e conveniente, que já havíamos tomado conhecimento ao longo de anos de lambança político-investigativa no caso.
A delação publicizada, em cadeia nacional, em maio de 2024, parece ter servido como uma prestação de contas do matador aos seus patrões e sócios, uma reafirmação de sua lealdade ao “esquema” político-criminal com seus comandos e ramificações no Rio. Pode ter sido uma preciosa oportunidade para revalidar o acordo de só delatar o combinado para cima, entregando alguns anéis medianos à polícia e preservando outros mais valiosos como ativos para barganhas futuras. Tratava-se de, pelas telas das TVs, manter invisíveis as mãos criminosas daqueles que têm votos, fazem a diferença nos mercados ilegais e foram beneficiados com um assassinato sob encomenda política que, com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais caro de quitar seguindo a espiral crescente de sua projeção nacional e internacional.
Ao reproduzir a narrativa que já estava na resenha da crônica política-policial do Rio faz tempo, Ronnie seguiria salvando a sua própria pele com os seguros garantidos pelos federais (PF e da Polícia Penal), permanecendo bem guardado, até agora, fora das cadeias do Rio e distante do jogo de chantagens recíprocas entre os envolvidos. É, assim, que ele se manteria bem vivo e longe de seus colegas de farda e discípulos de ofício, interessados em mostrarem serviço, queimando o arquivo Ronnie, (se preciso for), para ascenderem à sua cadeira no escritório do crime.
Ao falar só o que já estava acertado com chefes e parças, antes de sua presumível prisão, em 2019, Ronnie renovaria também os seguros informais de seu patrimônio ilegal e invisível sob tutela de terceiros e garantiria fluxo de caixa para suas despesas advocatícias. E, principalmente, revalidaria a proteção e a manutenção assistida de sua família e chegados. E, isto, enquanto sua colaboração presente e futura com a justiça seguir afinada aos termos do mundo criminoso político-empresarial e suas agendas eleitorais. Ressalte-se que no Rio de Janeiro, ano de eleição municipal costuma ser um ano próspero para matadores com mais encomendas de mortes de políticos e assessores. E, tragicamente, Marielle entrou para esta contabilidade fúnebre que totalizava mais de 30 pessoas assassinadas vinculadas à política local, entre 2016 e 2021, no Estado do Rio de Janeiro. É certo que se ganha muito com o crime de políticos e gasta-se bastante para sustentar a sua impunidade bancando auxiliares como o parceiro Ex-PM Élcio de Queiroz, preso também em 2019, e que com a interrupção da paga pelo seu silêncio, entregou o Ronnie, em delação premiada homologada em 2023.
Ronnie teria muito a ganhar em não dedurar o esquema político-criminal, e só entregar os famosos, desgastados e, por hora, dispensáveis “Irmãos Brazão” que começaram a incomodar menos pelos malfeitos e mais pelo excesso de bravatas e ostentação. Aparecerem além da conta, gastarem poder e influência abusivamente para se manterem intocáveis e ascendentes na elite política-empresarial do crime no Rio, tem um preço alto e parcelado a pagar: honrarem quem está acima no jogo, caindo junto e de “forma acordada” com o Ronnie diante de desacordos quanto ao valor final a ser pago pelo assassinato, cuja dívida, por óbvio, seguiria sistematicamente aumentada. E isto na razão direta da ampliação dos riscos com o crescimento vertiginoso da repercussão das mortes e do clamor social.
Os Brazão que, desde 2023 com a PF no caso, aguardaram pacientemente por sua sabida prisão, ficarem silenciosos e discretos por um certo tempo, separados em alguma cadeia federal e cientes do que podem revelar, tem sido útil à sua defesa. E, ainda, parece que possibilita a demonstração de gratidão da rede de políticos devedores de favores e receitas, por meio de apoios discretos dentro e fora do parlamento.
Ronnie parece ter falado, portanto, o que era esperado e desejado que falasse. Agradou muitos e a si mesmo, beneficiado pela limitação técnica na obtenção de provas robustas pela PF que confrontassem suas versões. A escassez de indícios e os rastros perdidos, após 6 anos de desmandos estaduais na investigação do assassinato de Marielle e Anderson, favorece que se permaneça no terraplanismo das “disputas de narrativas” entre criminosos que ainda têm o que perder em seus mundos. Manter o dito pelo não dito das falas de Ronnie e dos Brazão, permite uma troca teatralizada de acusações entre eles que, além de satisfazer o público com uma encenação de verdades ocultas enfim reveladas na simulação de um confronto, beneficia a todos eles que, no bastidor dos esquemas, não estariam em lados tão radicalmente opostos. Chantagens trocadas sobre a verdade que serve para (des)complicar a vida dos envolvidos, presta para ser denunciada e pode vir a público fazem parte do back stage dos negócios da proteção.
Ao que tudo indica, o ex-caveira Ronnie caiu em pé com uma fala autorizada, mantendo o esquema intacto e entregando quem podia e devia ser entregue, como um ex-chefe de polícia, para a vida política-criminal no Rio seguir rentável e com a colaboração regular das bandas podres policiais. O Dr. Delegado, mandachuva com prazo de validade vencido e já descartado como mercadoria política, não seria a primeira autoridade policial de peso a ser queimada na fogueira da delação, embalado e entregue como um “peixe grande”, independente de sua efetiva contribuição na economia política do crime no Rio. O que incluía, por exemplo, a empatia de fachada com familiares de vítimas assassinadas e com o pessoal dos direitos humanos que costuma fazer barulho e atrapalhar a eficiência dos policiais corruptos no atendimento à sua clientela.
A derrocada do delegado, preso em março de 2024 junto com os irmãos Brazão, soa como mais um capítulo da tradicional lógica de aparelhar a polícia civil e usar a carteira de autoridade para fins particulares. E, com isso, atender aos projetos de poder que buscam seguir governando com o crime. Ela reflete, antes, as disputas internas entre grupelhos pela colonização da polícia civil e seus embates com o Ministério Público, os quais tem negociado uma mudança cíclica das pás para manter intocável o rodízio das panelas políticas na cadeia de comando e controle policial.
Pode-se dizer que o ex-chefe de polícia caiu desmoronado e sozinho para um nível mais baixo do que o ex-policial matador e os políticos fisiológicos apontados como mandantes. Isto porque fora da máquina policial-investigativa e pericial, sem amigos internos e do alto que produzam blindagem com desinformações, atrasos nas investigações e displicência na coleta de provas, a serventia do ex-chefe revelou-se barateada. A sua narrativa, até o momento, não o situou como credor de seus agrados para dentro e dos seus feitos para fora que indicassem alguma lealdade de antigos aliados. Registre-se que o pior para um policial sob suspeita, e que chegou ao topo da carreira, não é a chantagem de criminosos e nem a ameaça de políticos oportunistas. É ter a sua própria polícia unida para morder seu calcanhar, com policiais honestos e corruptos juntos fazendo o jogo do contra.
Há, ainda, na narrativa autorizada de Ronnie, um evento que soa inusitado nos negócios políticos-criminais tal como temos sido forçados a conviver no Rio de Janeiro. O matador confesso diz que sua remuneração pelo assassinato político teria sido exclusivamente uma promessa futura dos Brazão de participação em um grande loteamento clandestino na Zona Oeste do Rio, a se realizar, ainda em um futuro anunciado como próximo, e que, também futuramente, renderia milhões com a venda dos terrenos loteados.
Em resumo, o matador de elite experiente, teria gastado o seu tempo disputado, seu dinheiro disponível, sua competência acumulada durante meses para executar um assassinato de vulto, que se esperava ter implicações, apenas afiançado na sua esperança de fazer um pé de meia, mudar de patamar, deixando o serviço braçal do mundo político do crime para virar empresário miliciano de vez. Como tal justificação romântica de chão de fábrica se tornou uma narrativa válida?
Soa exótico que um profissional do crime maduro e astuto como Ronnie Lessa teria aceitado e se autoconvencido do suposto caô dos Brazão de que iria receber 100 milhões de reais com a sociedade na venda varejista e a conta-gotas de lotes ilegais no porvir, enfim, em um eterno amanhã que poderia ser embarreirado e não acontecer. Sobretudo diante da retomada de ofensivas do Comando Vermelho que se faz acompanhar de perdas de lideranças milicianas e da frequente e instável redefinição dos arranjos políticos-criminais na Zone Oeste marcados por disputas fundiárias violentas e posses provisórias de territórios.
Um assassinato político é um trabalho de elevado custo operacional que requer garantia de cobertura, uma parte da remuneração antecipado e outras em parcelas garantidas e com liquidez. Sua consumação traz um grande risco que é ampliado com a magnitude de seu impacto público, gerando graves consequências para os executores, nas quais se incluem despesas com prisão, morte, represálias, chantagens, suspensão de novas atividades remuneradas, despesas com fuga e honorários advocatícios.
Mesmo após a repercussão internacional e a cobrança pública pela identificação e prisão dos executores e mandantes da morte de Marielle e Anderson, Ronnie seguiria por meses supostamente silencioso, descapitalizado, enfim, de boca fechada e resignado por entrar numa roleta russa, convertendo assassinato por encomenda, com pagamento garantido no curto prazo em um investimento financeiro incerto e de longo prazo. Tudo isso sem qualquer ressarcimento pelo menos do seu custeio antes e durante sua prisão?
Como um matador com grande reputação e tirocínio contaria só com o ovo dentro da galinha e não teria qualquer compensação vinda de seu mundo político-criminal? Mesmo que o assassinato fosse tratado como uma missão voluntarista que iria além de um trabalho comum, ainda assim haveria custos a serem partilhados entre os envolvidos e interessados.
É razoável supor que o valor acordado do assassinato seguiria subindo de valor à medida que o relógio andava e ia crescendo a repercussão, as complicações para os implicados e a demanda pública por justiça. É razoável supor que a dívida contraída pelos Brazão com o Ronnie Lessa, em um acerto prévio, não seria saldada com uma entrada seguida de sucessivas prestações em dinheiro e outros bens móveis ou acessíveis.
É aqui que a proposta de partilha de um terreno milionário parece surgir para tentar estancar novas chantagens, servindo como uma nota promissória a ser descontada lá na frente, quando a impunidade voltasse à sua normalidade, mediante a manutenção do silêncio de Ronnie. Pode-se, portanto, imaginar que o assassinato de Marielle, uma mulher negra e favelada, teria sido barateado na precificação inicial apresentada por Ronnie em contraste com os valores mais altos de outros possíveis alvos masculinos e brancos de seu partido. E que este primeiro orçamento foi se tornando cada vez mais caro após a trágica execução de sua morte, alcançando a estimativa dos 100 milhões de reais, segundo a conta relatada por Ronnie Lessa.
Mas nada disso que foi problematizado aqui é trazido pela narrativa autorizada de Ronnie Lessa e se restringe ao território livre das especulações com maior ou menor sentido e desconhecimento da verdade dos autos. Na fala de Lessa, ele aparentemente teria assimilado o golpe do loteamento denunciando seus mandantes e ex-parceiros 171 – os irmãos Brazão.
Fica-se com a impressão que a narrativa de Ronnie Lessa, funcionou como um seriado de suspense com um episódio final, guardado a sete chaves, mas que todo mundo já sabia o que ia acontecer. Foi um requentar bem-feito do mais do mesmo, de uma fala autorizada e sob medida que nos cansamos de ler e ouvir antes dos flashes televisivos. A delação não deixou de ser reveladora por isso. Além de desfazer leituras conspiratórias do protagonismo da extrema-direita e da existência de um cérebro do mal por trás de tudo, ela revelou pelos não-dito as implicações da política organizando o crime. E, de forma ainda mais contundente e trágica, explicitou pelo dito a banalidade do matar e a sua gestão prosaica no Rio de Janeiro. E tudo isso não é fantástico! Sabota nosso horizonte de futuro democrático.