Os funcionários acusam o governo Biden de não dizer a verdade sobre a obstrução de ajuda a palestinos em Gaza por parte de Israel.
Mais dois funcionários dos EUA renunciaram devido à guerra em Gaza, dizendo que o governo Biden não está dizendo a verdade sobre a obstrução israelense da assistência humanitária a mais de dois milhões de palestinos presos e famintos na pequena faixa costeira.
Alexander Smith, um contratado da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), disse que recebeu a opção entre renúncia e demissão após preparar uma apresentação sobre mortalidade materna e infantil entre palestinos, que foi cancelada na última hora pela liderança da USAID na semana passada.
Smith, um conselheiro sênior em gênero, saúde materna, saúde infantil e nutrição, escolheu renunciar na segunda-feira após quatro anos na USAID. Em sua carta de renúncia à chefe da agência, Samantha Power, ele reclamou das inconsistências na abordagem da USAID em diferentes países e crises humanitárias, e do tratamento geral dos palestinos.
“Não posso fazer meu trabalho em um ambiente em que pessoas específicas não podem ser reconhecidas como totalmente humanas, ou onde os princípios de gênero e direitos humanos se aplicam a alguns, mas não a outros, dependendo de sua raça”, escreveu ele.
Em outra renúncia na terça-feira, uma funcionária do Departamento de Estado do escritório de população, refugiados e migração, Stacy Gilbert, enviou um e-mail aos colegas explicando que estava saindo devido a uma conclusão oficial do departamento de que Israel não estava deliberadamente obstruindo o fluxo de alimentos ou outras ajudas para Gaza.
Segundo o Washington Post, Gilbert discordou em particular de um relatório formal do Departamento de Estado ao Congresso em 10 de maio, que afirmava que Israel “não cooperou totalmente” nos primeiros meses da guerra em Gaza, mas que “aumentou significativamente o acesso humanitário” mais recentemente. Na verdade, após um aumento nas entregas humanitárias no final de abril e início de maio, elas caíram para quase zero nas semanas seguintes.
Questionado sobre a renúncia de Gilbert, um porta-voz do Departamento de Estado disse que “deixamos claro que acolhemos pontos de vista diversos e acreditamos que isso nos fortalece”.
Smith e Gilbert elevam o número total de funcionários da administração Biden que renunciaram publicamente devido à política dos EUA em relação a Gaza para nove, embora Josh Paul, o primeiro funcionário a renunciar, tenha dito que pelo menos mais duas dezenas haviam deixado silenciosamente, sem uma declaração pública.
“Estou ciente de que há outras renúncias pendentes no futuro próximo de funcionários com preocupações semelhantes em suas próprias áreas de trabalho”, disse Paul, agora um conselheiro sênior na Dawn, um grupo que defende a democracia e os direitos humanos no Oriente Médio e no norte da África.
As renúncias ocorreram enquanto a fome se espalha em Gaza, com apenas uma pequena quantidade de assistência humanitária chegando através das passagens terrestres controladas por Israel, e o colapso de um cais fabricado nos EUA destinado à entrega de alimentos, gravemente danificado por uma tempestade no Mediterrâneo no início desta semana.
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e seu gabinete de guerra desafiaram Biden ao perseguir uma ofensiva na cidade mais ao sul de Gaza, Rafah, onde mais de um milhão de gazenses buscaram refúgio do ataque israelense. Mais de 900.000 deles foram forçados a fugir dos bombardeios mais uma vez nas últimas semanas.
O presidente dos EUA ameaçou cortar o fornecimento de armas para uso em qualquer ofensiva em Rafah, mas sua administração não cumpriu essa ameaça, argumentando que o ataque à cidade não constituía uma operação importante, pois não envolvia um grande número de tropas. No entanto, o impacto humano, como apontou Power, a administradora da USAID, tem sido tão catastrófico quanto se fosse uma grande ofensiva.
“Apesar das operações militares atualmente mais limitadas ao redor de Rafah e na fronteira Egito/Gaza, as consequências catastróficas que temos alertado há muito tempo estão se tornando realidade”, disse Power em uma reunião de governos doadores na quarta-feira. Ela acrescentou que os parceiros da USAID na região disseram que “as condições estão piores agora do que em qualquer período anterior”.
“Centenas de funcionários em toda a agência estão trabalhando incansavelmente para acelerar a ajuda, defender maiores proteções para civis e melhorar a desescalada, e avançar nos esforços diplomáticos”, disse um porta-voz da USAID. “Além disso, a liderança da agência continua a se envolver francamente com a equipe sobre o trabalho da USAID e as perspectivas sobre o conflito por meio de uma série de reuniões, assembleias e outros fóruns.”
Desde o início da guerra em Gaza, os EUA anunciaram cerca de US$ 180 milhões em ajuda para os palestinos em Gaza e na Cisjordânia, enquanto a ajuda militar anual dos EUA a Israel supera os US$ 3,3 bilhões.
Power tem sido mais crítica a Israel do que outros membros da administração, mas Smith argumentou que ela deveria ir muito mais longe e denunciar crimes de guerra.
“Mesmo que você esteja respondendo a um ataque, ou sob quaisquer circunstâncias, nunca é legal deixar a população civil faminta”, disse ele. “Todos no Departamento de Estado sabem disso, e Samantha Power sabe disso. Ela escreveu três livros sobre genocídio e outras questões de desenvolvimento. Eu li todos os seus livros.”
Smith disse que o ponto de ruptura para sua carreira como contratado do Departamento de Estado ocorreu na semana passada, quando estava programado para apresentar um artigo em uma conferência interna da USAID sobre mortalidade materna e infantil em Gaza e na Cisjordânia.
O artigo havia sido aprovado para publicação pelos organizadores da conferência, mas, quando chamou a atenção da seção do Oriente Médio da USAID em 20 de maio, Smith foi solicitado a fazer redações. Ele disse que essas edições incluíam a remoção de um slide que delineava o direito humanitário internacional aplicável e qualquer linguagem que implicasse reconhecimento de um estado palestino, incluindo referências a agências que têm Palestina no título, como a Associação de Planejamento Familiar da ONU (UNFPA) Palestina.
Após 24 horas de discussões sobre as edições, a liderança da USAID mudou de ideia e ordenou que a palestra de Smith fosse cancelada por completo, excluindo a menção dela do site da conferência.
Um funcionário da USAID disse que a palestra de Smith foi cancelada porque estava fora de sua área de especialização.
“As responsabilidades de trabalho deste indivíduo não incluíam apoiar a resposta da USAID à crise humanitária em Gaza ou os impactos devastadores do conflito sobre mulheres e crianças”, disse o funcionário. “A apresentação proposta não passou pelo processo padrão de revisão e aprovação da agência com seus supervisores e especialistas em assuntos específicos que trabalham neste tópico. Esses procedimentos estão em vigor para garantir a precisão das informações públicas.”
Smith argumentou que sua expertise em saúde materna e infantil e nutrição era relevante em todas as áreas de crise humanitária.
Quanto às razões para sua demissão, o funcionário da USAID disse que não poderia discutir “questões específicas de pessoal e por que este indivíduo não está mais empregado pelo seu contratante para a USAID”.
Em 23 de maio, dois dias após o cancelamento de sua palestra, Smith foi chamado pela Highbury, a contratada que era sua empregadora direta, e foi informado de que seu contrato seria encerrado antecipadamente, citando “diferenças de personalidade”. Ele também foi informado de que o “cliente”, a seção de doenças infecciosas da USAID, não estava satisfeito com ele “independentemente de [seu] desempenho”. Smith mostrou ao Guardian evidências de que suas avaliações de trabalho tinham sido muito positivas nos anos anteriores à guerra em Gaza, e ele havia recebido aumentos salariais correspondentes.
A Highbury deu a Smith a opção de se demitir se ele escolhesse, e ele optou por aproveitar a oportunidade para falar.
“A USAID sempre se orgulhou de nossos programas de apoio à democracia, aos direitos humanos e ao estado de direito”, escreveu Smith em sua carta de renúncia. “Na Ucrânia, pedimos reparação legal quando as pessoas são vitimadas e nomeamos os perpetradores da violência… Declaramos corajosamente ‘Slava Ukraini’ em vídeos promocionais animados.”
“Quando se trata dos palestinos, no entanto, evitamos dizer qualquer coisa sobre o direito deles à soberania, os abusos que estão sofrendo atualmente ou quais poderes têm violado seus direitos básicos à liberdade, autodeterminação, meios de subsistência e água potável”, disse ele.
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