Sejamos francos.
A possibilidade de Guilherme Boulos vencer as eleições para a maior e mais rica cidade do país desperta sonhos tão ardentes no campo progressista, que deflagra, paradoxalmente, aquele velho dispositivo mental do “é bom demais pra ser verdade”.
Esse pensamento nos lembra, por alguma razão, uma das máximas rebeldes de Nietzsche: “A prudência é uma velha solteirona, rica e feia, cortejada pela Impotência”.
Boulos tem uma aura de esquerda pura, jovem, idealista, exatamente aquela que… não vence eleições.
Só que não.
Boulos é diferente. Em primeiro lugar, ele lidera as pesquisas. Na Atlas Intel/CNN, divulgada há alguns dias, o deputado do PSOL aparece com uma vantagem impressionante de 17 pontos em relação ao atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB).
A distância tão elevada do segundo lugar se dá por uma razão simples: a entrada de Pablo Marçal na disputa, que roubou uma parte do eleitor bolsonarista de Nunes.
Acho difícil que Marçal tenha fôlego para substituir Nunes num eventual segundo turno, mas as pesquisas já mostram que ele consegue, efetivamente, dividir a direita, e diminuir o desempenho de Nunes no primeiro turno.
Mesmo num cenário sem Marçal, porém, a pesquisa Atlas traz um desempenho positivo de Boulos: ele tem 37,2%, contra 32,6% de Nunes. Neste cenário, chama atenção a queda de Tábata Amaral (PSB), que despencou de15% para 11%.
A deputada decidiu seguir por um caminho de “terceira via” que, pelo jeito, está soando artificial e pusilânime. O mais irritante, porém, foi sua tentativa de explorar o “senso comum” sobre algumas questões de altíssima complexidade.
Com essa história de dizer que é uma esquerda que “não defende ditaduras”, por exemplo, Tábata ficou parecendo, como diria Bezerra, “malandra demais”. Isso deixou claro, para o eleitor antenado, que ela pretendeu surfar no antipetismo, e com isso incorreu na antipatia dos eleitores de Lula em São Paulo.
Me pareceu equivocado seu esforço para tentar explorar temas internacionais, o que pode ter soado ridículo e forçado para o paulistano progressista.
Além do mais, a deputada cometeu dois erros estratégicos logo no início de sua pré-campanha, os quais meio que “queimaram sua largada”.
O primeiro, mais grave, foi deixar que sua imagem fosse associada demais à turma do dinheiro, aos “ricaços” dos bairros nobres da cidade, o que foi reforçado por sua obsessão, nas primeiras entrevistas, em falar de política internacional, ainda mais naquele diapasão carregado de senso comum, típico de quem tem o cérebrado atrofiado pela leitura excessiva da Folha de São Paulo.
Mas o 11% da Tábada na Atlas Intel, e os 8% a 9% no Datafolha, são números importantes. São Paulo tem 9 milhões de eleitores aptos a votar, então se alguém tiver 11% dos votos no município, significa que pode mobilizar cerca de 1 milhão de eleitores!
Já que mencionamos o Datafolha, também divulgado há pouco, façamos logo uma análise preliminar dessa pesquisa. Aqui o Boulos aparece com 24%, encostado em Nunes. Datena, Tabata e Marçal se embolam no terceiro lugar, com 7% a 8%.
Na espontânea do Datafolha, que é o tipo de pesquisa onde não são apresentados nomes ao eleitor – ele tem que dizer espontaneamente quem prefere -, a polarização entre Boulos (13%) e Nunes (9%) fica ainda mais nítida.
Vamos adiantar a conclusão, antes de passar para uma análise dos estratos das pesquisas. Tudo indica que as eleições em São Paulo terão um segundo turno extremamente polarizado entre Nunes e Boulos, direita e esquerda.
Nunes pode até tentar posar de centrista, para fugir de uma polarização que poderia lhe prejudicar, porque Lula teve mais voto que Bolsonaro em 2022, na cidade, e Bolsonaro é mais rejeitado que Lula em São Paulo.
Mas não vai conseguir.
A lógica da polarização numa campanha eleitoral hoje em dia é avassaladora. As redes sociais ficam absolutamente carregadas de paixões, de uma tal forma que, se Nunes não deixar claro que é simpático a Bolsonaro, pode perder muitos votos bolsonaristas, a ponto mesmo de bolsonarista votar em Boulos para “se vingar” da traição de Nunes.
Então vai ser assim: eleitores de Lula votarão em Boulos e eleitores de Bolsonaro votarão em Nunes. Será uma antecipação da disputa de 2026, embora o resultado final não deva, a meu ver, impactar muito nas próximas eleições presidenciais. Explico melhor: a questão nacional deve influenciar a eleição em São Paulo, mas a eleição em São Paulo não deve influenciar muito a questão nacional.
Essa polarização deve ser determinante em São Paulo, mas só São Paulo. Acho que em nenhuma outra cidade do país isso se repetirá. Digo, claro que será importante, mas não determinante.
Em 2022, Lula obteve 3,67 milhões de votos na cidade de São Paulo, ou 53,54% dos votos válidos, contra 3,19 milhões de votos para Bolsonaro, correspondentes a 46,4% dos votos válidos. A abstenção na cidade foi de 21%. Essa vantagem de Lula na cidade, de mais de 600 mil votos sobre Bolsonaro, é o grande trunfo de Boulos.
Voltemos à Atlas Intel, e examinemos a tabela das intenções de voto por estratos de gênero, idade, religião, instrução e renda. Falamos aqui do cenário 2, com Marçal e Datena. Neste cenário, alguns pontos chamam atenção:
- Boulos pontua 41% entre mulheres, mais de 20 pontos à frente de Nunes (18,6%), confirmando a tese, que já está quase ficando clássica, de que as mulheres se tornaram mais progressistas que os homens.
- O deputado do PSOL tem um desempenho absolutamente extraordinário entre os mais jovens, com mais de 51,5% das intenções entre eleitores com 25 a 34 anos, mais de 30 pontos à frente dos 19,1% de Nunes. Esse eleitor é estratégico numa era em que as redes sociais adquiriram um papel tão crucial nas campanhas eleitorais, pela razão muito simples de que reúne gente com mais conhecimento sobre as novas tecnologias. Isso ajudará muito a campanha de Boulos a neutralizar fake news, emplacar hashtags, e movimentar as redes que atraem mais jovens e que mais tem crescido, como tik tok e instagram.
- Repare que não falamos aqui da primeira juventude, de 16 a 24 anos, que é numericamente menos relevante, e que costuma ter enormes índices de abstenção (nesta faixa, curiosamente, os campeões são Datena e Kim Kataguiri, com 37% e 32%, respectivamente). Tenho a impressão, todavia, que Boulos também deverá ampliar sua votação nessa faixa à medida que sua campanha se desenvolver.
- Boulos se destaca entre eleitores de classe média, em especial com renda familiar acima de R$ 2.000. Chama atenção que tenha quase 50% entre eleitores com renda entre R$ 5 mil e R$ 10 mil, que é justamente a grande classe média cosmopolita, liberal (nos costumes) e progressista, que caracteriza a cidade de São Paulo. Também é um ativo estratégico para Boulos, porque é um eleitorado altamente intelectualizado, formado em sua maior parte por profissionais liberais com tempo livre e recursos para trabalhar gratuitamente em sua campanha.
De qualquer forma, com sua presença garantida no segundo turno, o principal desafio de Boulos será construir, desde já, uma vitória nesta segunda etapa. Segundo o Atlas Intel, Nunes ainda está em vantagem, embora no limite do empate técnico, com 46% versus 43,5% para Boulos.
Vamos olhar a divisão por estrato segundo o Datafolha, que havia mostrado empate entre os dois principais candidatos.
Aqui, as principais observações que podemos fazer são as seguintes:
- Boulos precisa melhorar seu desempenho entre os eleitores mais pobres. Seu grande trunfo aí será, naturalmente, o apoio de Lula, mas também de Marta Suplicy, que goza, dizem, de forte prestígio nas densamente povoadas periferias da cidade. Boulos tem 17% entre eleitores com renda familiar até 2 salários, contra 25% de Nunes. Mas não acho esses números bons para Nunes, porque se ele tivesse apoio popular, deveria ter mais que isso a essa altura do campeonato.
- A força de Boulos nas camadas médias de renda confirma o que vimos na Atlas Intel. E vale o mesmo raciocínio. Voto de classe média é estratégico, porque ajuda a mobilizar muito as redes sociais, e como Boulos terá, desta vez, uma quantidade mais generosa de recursos para investir em sua campanha (pois terá apoio do PT desde o primeiro turno), a soma de redes fortes com um bom tempo de TV e rádio, o ajudarão muito a construir uma estratégia eficaz.
- Tábata Amaral, por sua vez, reparem, concentrou excessivamente sua força entre eleitores ricos: ela tem 19% entre eleitores com mais de 10 salários. A essa altura, sendo tão conhecida, deveria ter um eleitorado mais espalhado pelas outras camadas.
- O trunfo de Tábata no início de sua carreira era a sua entrada forte entre o eleitorado jovem, progressista e de periferia, em função de sua origem humilde e de sua adesão a um partido de esquerda, o PDT. Mas ela criou conflitos demais com a esquerda, associou-se excessivamente aos ricos, e vem se tornando, nos últimos tempos, em quase um meme gerador de memes de senso comum, o que desgastou muito a sua imagem.
Por fim, o Datafolha também avaliou como o eleitor de São Paulo vê o presidente Lula, o governador Tarcísio e o prefeito Nunes.
Os números não são ruins para Lula. Apesar dele ter perdido alguns pontos de aprovação, ainda tem 35% de ótimo e bom, o que é um excelente ponto de partida. O governador Tarcísio, queridinho da mídia paulista, por exemplo, tem o mesmo nível, 36%. Já Nunes tem 26% de aprovação, o que não é um bom desempenho para um prefeito em ano eleitoral, apesar de que sua rejeição não é tão alta, apenas 25%, o que é um de seus trunfos.
Tudo indica que será uma disputa eletrizante, disputada voto a voto no segundo turno. Não será fácil enfrentar a máquina bolsonarista, vitaminada pelo apoio dos ultraliberais, muito fortes na capital financeira do país, mas Boulos tem experiência, know how e energia para vencer.
Íntegra da pesquisa Datafolha.